Índice
Índice
José Bracinha Vieira “nem sempre” pensou assim. Mas hoje, terminado o longo capítulo da recapitalização pública, está convencido que o acordo de venda de 75% do Novo Banco ao fundo Lone Star, que incluiu um mecanismo para a injeção de capitais públicos, foi “o melhor possível para o Estado português e para o Fundo de Resolução“.
Em entrevista ao Observador, o presidente da (agora extinta) Comissão de Acompanhamento do Novo Banco reconhece, porém, que o organismo a que presidiu nunca teve mais do que “poderes consultivos”, sem poderes para “vetar” decisões do banco como o registo de imparidades nos créditos tóxicos (o principal fator que, ao provocar prejuízos, esteve na base da maior parte das injeções públicas feitas desde 2018). Ainda assim, mesmo que tal fosse possível, Bracinha Vieira não considera que esse “veto” devesse ter sido usado. Isto porque o Novo Banco começou com um terço da carteira de crédito em incumprimento, o que punha o banco sob grande pressão do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia.
Acabaram por ser injetados 3,4 mil milhões de euros no Novo Banco, através do chamado “mecanismo de capital contingente” (CCA), 500 milhões abaixo do plafond máximo. José Bracinha Vieira admite que, a dada altura, pensou que o Lone Star iria esgotar todo o plafond disponível. Mas garante que, na sua cabeça, é “um pouco injusto” especular que o Lone Star se aproveitou da vantagem de ter aquele mecanismo para injeção de capitais públicos.
“Num caso ou outro, pode ter havido a constituição de imparidades excessivas“, mas, no geral, Bracinha Vieira acredita que o fundo norte-americano não teve uma “utilização abusiva” do mecanismo, embora tenha sido “conservador” e “cauteloso” na avaliação de certos ativos. “Quando se tem, à cabeça, um terço da carteira de crédito qualificada como não produtiva – com boas razões para assim ser qualificada – compreende-se que seja necessário descer rapidamente o valor dessa carteira e constituir imparidades de forma mais agressiva“, afirma.
“Na realidade, tínhamos poderes puramente consultivos”
Nos últimos sete anos, José Bracinha Vieira foi membro da Comissão de Acompanhamento do Novo Banco. Foi mesmo presidente deste organismo nos últimos quatro anos. O que fazia esta Comissão?
A Comissão de Acompanhamento foi criada pelo acordo que instituiu, em 2017, o mecanismo de capital contingente, o CCA. Foi criada como um órgão estatutário do banco, tendo por objeto fazer um acompanhamento do andamento do CCA e, a pedido das partes, [ter] uma intervenção no sentido de dar orientações sobre a estratégia do mecanismo.
Mas como é que vocês trabalhavam, como é que estavam presentes no banco?
[Além do contrato de venda] houve um outro instrumento contratual, que data de maio de 2018, que foi o contrato de servicing, pelo qual o Novo Banco assumia a gestão de todo o crédito malparado – e outros tipos de ativos, como imóveis não produtivos, etc. – que compunha aquele património a que se chamava, depois, em sentido estrito, o CCA. Esse património tinha um valor bruto de 12,7 mil milhões de euros no início, que era reportado a 30 de junho de 2016. Esse património foi sendo gerido pelo Novo Banco e, com base nesse contrato de servicing, qualquer deliberação, qualquer posição definitiva sobre uma operação proposta pelo Novo Banco tinha de ser aprovada pelo Fundo de Resolução. Mas qualquer dessas decisões tinha de passar necessariamente por um parecer prévio da Comissão de Acompanhamento.
Sempre que o Novo Banco queria vender alguma coisa, se isso implicasse custos para o Estado, vocês tinham de dar um parecer a dizer se fazia sentido vender aquele ativo por aquele valor?
Exatamente. Em teoria, mesmo que não implicasse custos, até mesmo se implicasse ganhos – por exemplo, uma reversão de imparidades que levasse a ganhos líquidos –, mesmo assim tudo teria de ir ao Fundo de Resolução.
Quem é que suportava os custos desta Comissão, nomeadamente as remunerações dos seus membros?
A Comissão era um órgão estatutário do próprio banco. Nos estatutos do banco, havia um artigo, que agora é revogado, que previa a existência da Comissão. Portanto, nós éramos remunerados pelo Novo Banco. Tínhamos acesso a três tipos de reuniões, que nos permitiam conhecer praticamente tudo o que se passava no banco: a reunião semanal do Conselho Financeiro de Crédito, que também tratava de créditos fora do CCA, o Comité de Imparidade Alargado, o comité que trabalhava, analisava e deliberava mensalmente ou quinzenalmente sobre as imparidades a constituir sobre os ativos do banco, incluindo os ativos CCA, e tínhamos lugar no Conselho Geral e de Supervisão, que se reúne mensalmente, onde todas as políticas gerais do banco são discutidas…
“Num caso ou outro, pode ter havido a constituição de imparidades excessivas”
Tendo a Comissão Europeia impedido que o Fundo de Resolução tivesse um administrador – mesmo tendo [inicialmente] 25% do capital – foi uma espécie de solução de recurso? Mas não é a mesma coisa de ter um administrador, ou é?
Tem razão, não é a mesma coisa. Basicamente, a diferença é que o órgão ‘Comissão de Acompanhamento’ tinha competências exclusivamente consultivas. Podia ter algum poder de influência sobre os participantes no acordo (Fundo de Resolução e Novo Banco), principalmente através dos nossos relatórios anuais e semestrais. Mas, na realidade, tínhamos poderes puramente consultivos. E, portanto, na prática, [tínhamos] o poder de emitir os nossos pareceres e de fazer, depois, um balanço ao fim de cada ano, de cada semestre, no relatório.
Apenas isso?
Esse era o limite dos nossos poderes. Por exemplo, nós não tínhamos capacidade de impedir a formação de imparidades. A imparidade, em princípio, é algo que se faz com base em critérios estritamente técnicos, contabilísticos…
Não podiam dizer nada sobre as imparidades? Não tinham voto na matéria?
Podíamos dar a nossa opinião, mas não tínhamos qualquer poder para reduzir ou para aumentar as imparidades.
Mas foi sobretudo com imparidades que se fizeram as calls, ou seja, que se reconheceram prejuízos que levaram a que se fosse buscar dinheiro ao Fundo de Resolução, ou seja, ao Estado…
Na realidade acaba por ser verdadeiro isso. Eu diria o seguinte: o perfil temporal das imparidades – que caíram sobretudo, como era natural, em 2018 e 2019 – levou a que, nesses anos, houvesse calls muito elevadas. Isso foi um elemento, de facto, decisivo. A partir daí as imparidades foram-se reduzindo, o que era natural, porque da carteira de crédito do banco uma parte é vendida, outra é reestruturada e, portanto, é natural que as imparidades se fossem reduzindo, até porque os ativos líquidos do CCA se iam reduzindo também.
Maiores injeções no Novo Banco foram em 2018 e 2019: mais de mil milhões de euros
↓ Mostrar
↑ Esconder
Logo na primeira injeção de capital, em 2018, o Fundo de Resolução entregou 792 milhões de euros ao Novo Banco, fruto das perdas que o banco reconheceu e que, sem a injeção pública, teriam levado os rácios de capital do banco para menos do que os mínimos regulatórios.
A maior injeção pública de todas, porém, veio no ano seguinte: 1.149 milhões de euros em 2019, relativamente a perdas reconhecidas ao longo de 2018, o primeiro ano completo em que o Lone Star controlou a gestão do Novo Banco. No ano seguinte, ainda com António Ramalho ao leme da instituição, o montante injetado no Novo Banco baixou um pouco mas voltou a superar os mil milhões de euros: foram 1.035 milhões entregues nesse ano de 2020, relativamente a 2019.
Depois disso, em 2021, a chamada de capital feita pelo Novo Banco junto do Fundo de Resolução caiu para menos de metade: 429 milhões de euros – num ano em que o Novo Banco tinha pedido mais: 598 milhões, o que levou a um diferendo jurídico entre as duas partes. Nos dois anos seguintes (2022 e 2023) já não houve quaisquer transferências.
Quem também se pronuncia sobre as imparidades, depois, são os auditores…
Quem decide as imparidades são os departamentos que têm a seu cargo a gestão do risco dentro do banco. É daí que vem, de dentro do banco, o impulso para as imparidades. O auditor, no fim do ano, pode criticar ou não a suficiência ou insuficiência de imparidades, o excesso ou o défice de constituição de imparidades.
Aqui, os auditores foram dizendo o quê?
Ao longo dos anos, os auditores foram, de uma forma geral, considerando que as imparidades eram adequadas… Podia haver, marginalmente, valores, que eu consideraria imateriais… Mas, basicamente, os auditores sempre concordaram com o volume de imparidades que, na realidade, tinham sido constituídos de acordo com os tais critérios puramente objetivos, técnicos. Num caso ou noutro, pode haver alguma discricionariedade na forma como se vê um determinado ativo, como se vê a deterioração de um crédito. Bom, e nessa pequena margem de discricionariedade, num caso ou noutro, pode ter havido a constituição de imparidades excessivas, ou pelo contrário, insuficientes… De uma forma geral, excessivas.
É a sua perceção?
A minha perceção é que houve uma atitude conservadora, que é normal, porque… O Novo Banco é quase um milagre que se conseguiu fazer ao longo destes anos, porque partiu de ter 33% da carteira em crédito malparado. Era uma situação que só tinha paralelo nos bancos gregos, naquela altura. Nos primeiros anos, houve uma atitude conservadora da parte do Novo Banco.
O que quer dizer com “atitude conservadora”?
Na forma como [a gestão do Novo Banco, controlada pelo Lone Star] via os ativos não produtivos… À cautela preferiram colocar as imparidades em níveis mais elevados, porque eles consideravam que havia uma probabilidade de recuperação muito baixa.
Se não houvesse o CCA eles teriam sido igualmente… conservadores?
Eu estou convencido que sim. Estou convencido que, se não tivesse havido o CCA, se tivesse havido qualquer outro esquema de recapitalização do banco, por hipótese, a atitude iria ser a mesma. Porque quando se tem, à cabeça, um terço da carteira de crédito qualificada como não produtiva – e assim qualificada com boas razões – compreende-se que seja necessário descer rapidamente o valor dessa carteira e constituir imparidades de forma mais agressiva. Lembro, já agora, que o facto de o banco ter uma carteira de crédito improdutivo muito elevada tinha uma outra consequência: da parte do BCE havia uma posição mais dura que exigia, por exemplo, rácios de capital legais superiores aos que eram pedidos ao resto da banca.
“Novo Banco ainda poderá recuperar algumas centenas de milhões, graças aos ativos que eram do CCA”
O Lone Star registou imparidades e reduziu a carteira de crédito malparado muito agressivamente, na sua opinião, também, porque os reguladores colocavam muita pressão em cima do banco. Foi esse o raciocínio?
Foi também esse o raciocínio. A gestão do banco tinha absoluta necessidade… Até porque entretanto, a par do mecanismo CCA, havia um outro mecanismo que tem de ser tido em consideração: é que, tendo havido uma ajuda de Estado, a Comissão Europeia tinha imposto inúmeras condições e inúmeros constrangimentos à atuação do banco, incluindo a necessidade de uma redução rápida desta carteira de ativos improdutivos.
Como tinha salvaguarda do CCA e podia pedir dinheiro ao Fundo da Resolução, o Novo Banco não terá sido demasiado agressivo no reconhecimento dessas perdas. É um juízo justo?
Eu acho que isso é uma apreciação que é subjetiva e que me parece um pouco injusta, porque todos os constrangimentos que o banco tinha no início obrigavam – absolutamente – a ser agressivo na forma de vender crédito, de reduzir crédito em incumprimento, de vender património não produtivo. Apesar de tudo isto, ao longo deste período, dos 12,7 milhões de ativos brutos que no início compunham a esfera patrimonial do CCA, foi possível obter de reembolsos de clientes cerca de 3,5 mil milhões de euros. E de vendas de créditos foi possível obter 2,1 milhões de euros, o que dá uma recuperação de 5,6 milhões de euros. E ainda há muito a recuperar neste património que constituía o CCA, porque os créditos ainda lá estão. Portanto, o Novo Banco vai continuar a ter uma política que irá permitir ir recuperando, reestruturando ou recuperando créditos que foram do CCA. Espero, aliás, que [o Novo Banco] ainda possa receber um considerável valor por isso, talvez duas ou três centenas de milhões de euros. Ou um pouco mais.
De um universo de quanto?
Neste momento o universo está reduzido a algo na ordem dos 700 ou 800 milhões euros. Algumas coisas ainda não foram recuperadas porque são processos que envolvem tribunais. E, infelizmente, como sabemos, os tribunais têm alguma lentidão no andamento dos processos. E há outras que, enfim, estão também pendentes de determinadas atuações que não dizem respeito só ao banco. Eu estou convencido de que o Novo Banco irá fazer ainda uma recuperação considerável destes valores.
Venda do banco ao Lone Star, com injeções públicas, “foi o melhor acordo possível”
Olhando para trás, em que é que o contrato com o Lone Star podia ter sido melhor, no sentido de acautelar os interesses do Estado? Foi um contrato feito um pouco sob pressão…
Eu pensei nisso ao longo de todos estes anos. Não participei no contrato, não conheço os antecedentes imediatos do contrato, mas fui vendo os constrangimentos que existiam na altura. E, neste momento, estou convencido de que este foi o melhor acordo possível. Nem sempre estive convencido disso. Neste momento estou. Foi o melhor acordo possível para o Estado Português e para o Fundo de Resolução. Porque, realmente, o facto de haver um duplo limite para o pagamento das calls permitiu poupar dinheiro e permitiu racionalizar todo este processo. Estou a falar do duplo limite do montante dos prejuízos líquidos do CCA e, por outro lado, o outro limite que era o Fundo de Resolução só entregar o necessário para cumprir o rácio mínimo de capital (e, a partir de 2020, para cumprir o rácio de 12%, que era o que tinha sido contratualmente estipulado).
Mas diz que nem sempre pensou assim, ou seja, nem sempre pensou que o contrato salvaguardava bem o interesse público…
Ao longo dos anos fui conhecendo melhor as circunstâncias que estiveram na base do acordo. Aquilo que alguém pode assacar a este acordo, e que levou efetivamente a calls muito elevadas em 2018 e 2019, foi a tal questão que eu referi da constituição de imparidades. Não fazia sentido haver a possibilidade do Fundo de Resolução ou da Comissão de Acompanhamento, ou fosse quem fosse, vetar as imparidades. As imparidades têm aspetos objetivos, têm razões técnicas para serem constituídas.
E, mais uma vez, são validadas pelos auditores.
Exatamente, são validadas pelos auditores. Portanto, aquilo que podia ter levado a uma eventual redução das calls de 2018 a 2019 seria uma espécie de um veto à constituição de imparidades, na realidade era inexequível, não fazia sentido, porque essas imparidades obedecem a determinados requisitos técnicos, que estão aliás em vários regulamentos da União Europeia, do BCE…
Nunca viu uma utilização abusiva…
Não, nunca vi uma utilização abusiva. Vi, volto a dizer, nesses primeiros dois anos, que havia uma posição conservadora do banco e, portanto, na constituição de imparidades. Mas tem a ver, como digo, com aquele ponto de partida péssimo, um banco que tinha um terço da carteira em crédito em incumprimento.
Quem é José Bracinha Vieira?
↓ Mostrar
↑ Esconder
Licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, também aí obteve o grau de Mestre em Ciências Jurídico – Económicas, em 1986. Foi professor universitário na Faculdade de Direito de Lisboa entre 1977 e 1992, na Universidade Lusíada entre 1987 e 1992 e na Universidade Autónoma de Lisboa, entre 1996 e 2002.
Entrou no Banco de Portugal em 1979, onde exerceu, sucessivamente, funções de assessor, consultor e diretor adjunto no Departamento Jurídico, tendo posteriormente sido nomeado director do Departamento de Averiguação e Ação Sancionatória (2013-2016) e Consultor da Administração.
Foi, ainda, presidente dos conselhos de administração da Finangeste – Sociedade de Gestão Financeira e Desenvolvimento, SA, entre 1982 e 1992, da Sociedade Portuguesa de Empreendimentos, SA, entre 1998 e 2002 e da Parque Expo, SA, entre 2002 e 2005.
Teve uma passagem pelo poder político, pelo PSD, exercendo as funções de Secretário de Estado dos Recursos Educativos entre 1992 e 1994 e de Presidente do Instituto Nacional de Habitação, em 1995-1996. Foi, também, presidente do conselho fiscal do Centro Europeu Jacques Delors, entre 1995 e 1998, presidente da Assembleia Geral do Oceanário de Lisboa, entre 2005 e 2014 e vereador não executivo da Câmara Municipal de Palmela, entre 2001 e 2005.
Em fevereiro de 2017, tornou-se presidente do conselho de administração do Banif S.A (entidade que restou da resolução de finais de 2015). Na comissão de acompanhamento do Novo Banco, começou por ser um dos vogais, subindo a presidente depois da saída de José Rodrigues Jesus.
O mecanismo de capital contingente (CCA) tinha um plafond máximo de 3,9 mil milhões. Esse plafond foi, sobretudo, consumido nesses anos 2018 e 2019, como disse há pouco. Chegou-se ao fim tendo sido consumidos 3,4 mil milhões. Em 2019, admitia que se chegasse aos 3 mil milhões. O montante final ficou 400 milhões acima disso. Porquê?
Em 2019 eu senti que se podia chegar ao limite máximo, isso preocupou-me muito e também preocupou o Fundo de Resolução. Daí o Fundo de Resolução ter-se recusado a pagar uma parte da call de 2019. Foi aí que o Novo Banho deu início a um processo arbitral. Houve uma altura em que eu temi – sendo certo que isto é uma análise subjetiva – que pudesse haver lugar a uma situação dessas [o esgotar do plafond máximo]. A Comissão Europeia, no âmbito da ajuda de Estado, estudou vários cenários possíveis para a utilização deste mecanismo de capital contingente. Havia um cenário minimalista, havia um cenário intermédio e havia um cenário maximalista. O cenário maximalista era que seria necessário utilizar um pouco mais de 3 mil milhões, o que não está longe da realidade, dos 3,4 mil milhões que foram efetivamente utilizados por parte do Novo Banco. Mas depois houve um momento de viragem, em 2021, que é o momento em que o banco começa a ter uma situação de equilíbrio. A partir de 2022 o banco começa a ter lucros e tem lucros muito expressivos em 2023 – e vai ter novamente em 2024.
Fundo de Resolução recusou vendas “razoáveis por questões reputacionais”
Segundo o comunicado emitido pelo Fundo da Resolução, há poucos dias, foram impedidas 13% das propostas de vendas de ativos tóxicos do Novo Banco, tendo o Fundo pronunciado-se sobre 405 operações. 13% é muito ou pouco?
13%, a meu ver, é o adequado. Mas queria salientar que esse valor de 13% não diz tudo sobre a forma como o Fundo de Resolução tratou as autorizações de operações no Novo Banco. Porque em 42% das operações o Fundo de Resolução deu uma autorização sujeita a condições extremamente exigentes e rigorosas. Muitas vezes isso levou até a que não fosse possível fechar a transação. Passou-se a ideia de que o Fundo de Resolução foi, digamos, minimalista no que respeita à rejeição de operações. Mas não foi – foi muito, muito rigoroso, porque, como digo, em 42% dos casos aceitou, não se opôs à operação, mas sujeitou-a um conjunto de condições muito difíceis de satisfazer.
Mas as condições foram satisfeitas? Ou muitas dessas operações fracassaram?
Na maioria dos casos foram satisfeitas. Em muitos casos não foi possível fazer o devedor aceitar as condições, até porque em alguns casos ele não tinha capacidade de aceitar essas condições.
Isso significa que se preservou o valor ou perdeu-se o valor?
Isto não significa que se perdeu o valor. O valor está ainda lá, de alguma forma. Enfim, um ativo que ao longo de sete anos não é objeto de uma resolução é evidente que perdeu valor. O tempo faz perder valor a qualquer ativo – a não ser que seja um imóvel, porque um imóvel pode ganhar valor. Pode ser um imóvel que, por exemplo, não tenha capacidade construtiva e que, entretanto, obtenha um alvará de loteamento. Aí pode valorizar-se. Fora esse caso, num caso normal de uma empresa, uma empresa industrial, uma empresa de serviços, que é devedora, normalmente o passar do tempo sem o problema ser resolvido leva à degradação do valor desse ativo. O Fundo de Resolução, em certos casos, mais recentemente sobretudo, teve em conta também – e eu compreendo que isso tivesse de ser feito – questões de natureza reputacional. E, portanto, em relação a certos devedores essas questões reputacionais podem ter levado à rejeição de certas operações….
Pode dar-nos um exemplo? Sei que não pode falar de casos concretos por questões de sigilo, mas o que quer dizer com isso?
Suponha uma operação que poderia até ser razoável no plano económico mas que, efetivamente, podia envolver, pela natureza do devedor, um problema reputacional.
Porque a perda reconhecida, no fundo, seria um perdão a essa pessoa ou empresa, é isso?
Seria, por exemplo, um perdão a uma pessoa que se admite que possa ter outros patrimónios. Outros patrimónios escondidos em outras jurisdições, por exemplo, offshore. Ou que tenha um passado terrível de não-cooperação com o banco. Em casos desse género, há, de facto, um problema reputacional se, por exemplo, se decide fazer um haircut – fazer um perdão de 40% a 50%, por exemplo. Algo que, mesmo assim, no plano económico, tendo em conta os ativos da empresa, podia ser uma solução razoável. Mas, quando se tem em conta o comportamento anterior do devedor, quando se tem em conta a possibilidade de [ele] ter outros bens ocultos em outras jurisdições, é compreensível que a operação seja rejeitada com base naquilo que eu chamo de um problema reputacional.
Em 2019 houve uma audição parlamentar que foi muito polémica. Bracinha Vieira era vogal da Comissão de Acompanhamento, o presidente era José Rodrigues Jesus, que na altura [Rodrigues Jesus] disse que havia certos “nomes de estimação” da sociedade portuguesa que eram devedores do banco, que iria ser necessário “coragem” para lidar com eles… Houve essa coragem, agora que o processo terminou?
Houve, houve coragem. E os serviços do banco e o conselho de administração executivo do banco tiveram um extremo cuidado e rigor na forma como lidaram com essas situações. Há um departamento do Novo Banco que tem a ver com a recuperação de créditos, que teve um papel relevantíssimo –eu insisto, relevantíssimo – na forma como esses créditos foram tratados. E foi isso que permitiu, apesar de tudo, a tal recuperação cumulativa de 5,6 mil milhões de euros… Estamos a falar de ativos que tinham uma natureza extraordinariamente degradada. Era difícil ver uma degradação tão grande. E se me perguntar porque é que eram tão degradados, eu diria o seguinte: os critérios de concessão de crédito no BES, a meu ver, careciam de rigor no plano técnico. Por exemplo, houve muitos devedores do banco que ficaram no CCA e que tinham dado como garantia penhor de ações do BCP. Como se recorda, o BCP, depois daquela fase – 2007 e 2008 –, teve uma desvalorização brutal das ações. E o Novo Banco (e o mesmo aconteceu na Caixa Geral de Depósitos) concedeu muito crédito com base em penhor de ações do BCP, portanto perdeu grande parte do valor da garantia. No caso de Novo Banco, só isso, levou a centenas de milhões de prejuízos. A partir de 2018, o Novo Banco começou a fazer vendas de imóveis e vendas de créditos agrupadas…
Pacotes…
Exatamente, o que teve todo o sentido. E aquela venda que permitiu maior redução dos créditos malparados, obviamente acompanhada por perdas, foi a chamada carteira Nata 2, que tinha a ver com os piores devedores do universo CCA e, portanto, não podia deixar de causar perdas. Porém, uma grande parte da carteira já tinha sido objeto de imparidades, portanto o valor líquido da carteira Nata 2 já era baixo quando foi posta à venda – e, por isso, o prejuízo da operação foi relativamente reduzido.
“Atentas” à crise. Quem são as empresas que ganham milhões com os “calotes” da banca?
Partes relacionadas de devedores do Novo Banco tentaram comprar créditos a desconto
Um risco que se admitiu nessa audição parlamentar de 2019 é que pudesse haver compradores de ativos do Novo Banco que podiam ser “testas de ferro” dos devedores de alguns desses créditos. Ou seja, os devedores podiam recomprar esses ativos a um valor mais baixo do que a dívida que tinham e, portanto, impunham uma perda ao Novo Banco e, em consequência, para o Estado. Acha que isso pode ter acontecido?
Não é “pode ter acontecido”. A minha resposta é que aconteceu, nalguns casos, a tentativa de, por exemplo, na venda de créditos ir-se tentar colocar o ativo no mercado e, entre os vários interessados, surgirem, por vezes, interessados que tinham relações específicas diretas com o devedor. Queriam comprar o crédito por um valor abaixo do valor nominal para, posteriormente, o vender por esse valor ao devedor, que era parte relacionada. Nesses casos, o próprio Novo Banco, pela sua compliance, detetou a situação. Nalguns casos, até havia operações que economicamente seriam menos más, eventualmente, mas é evidente que o Fundo de Resolução se opôs por razões reputacionais – mas são razões perfeitamente compreensíveis. Quer dizer, no fundo, é estar a dar um bónus ao devedor indiretamente.
Foi partilhada essa informação com o Ministério Público, quando se percebeu que aquelas pessoas estavam a tentar fazer isso, já que foram só tentativas…?
O que eu me lembro, neste momento, é que esses acontecimentos surgiram fundamentalmente em vendas de créditos no mercado. Portanto, em situações em que houve várias ofertas, não houve só uma. O que se detetou foi nos casos em que a entidade era parte relacionada com o devedor deu o melhor preço – aí é que o problema se colocou. E, em todos esses casos, a operação não foi para a frente.
Deu o melhor preço mas ainda assim esse melhor preço era inferior àquilo que devia…
Era inferior ao valor nominal. Um crédito pode valer 100 e, de facto, o valor que o suporta, o valor real económico do crédito, ser de 50… Mas se esses 50 forem oferecidos por uma parte relacionada é uma boa prática não aceitar a operação.
Foram mesmo contratados detetives para tentar garantir que os ativos não eram revendidos aos seus donos?
Não estou certo disso. Como sabe há empresas especializadas na busca de patrimónios, quer em Portugal, quer fora de Portugal. Houve casos em que essas agências, essas entidades especializadas em busca de baixas, foram utilizadas…
Pelo banco…
Pelo banco. Tanto quanto eu sei, foi apenas isso que terá acontecido.
Consolidação pode gerar problemas de concorrência “mas teria vantagens”
A fase seguinte pode ser a venda do banco – ou pelo menos parte do capital. Na sua opinião, o que é que seria melhor para o sistema financeiro português? Uma venda a um banco que não tenha presença em Portugal (ou tenha uma presença pequena), ou uma absorção por parte de um dos outros grandes bancos ao operar no país? Ou apenas a venda de parte do capital em bolsa e continuar independente…?
Neste momento, o Novo Banco tem uma quota de mercado [global] de cerca de 10%, sendo que esta quota é maior numa área onde tem tido uma ação importantíssima que é no crédito as pequenas e médias empresas – aí está bastante acima deste valor. Portanto, no mercado português é um banco de dimensão média, média grande. E eu receio que a absorção por um grande banco português possa levar a algum desequilíbrio em termos de concorrência no mercado bancário [naquele segmento]. Tinha algumas vantagens, também, porque hoje em dia os bancos têm de ter dimensão – teria alguma vantagem termos um banco, como os franceses costumam dizer, que fosse um “campeão nacional”, que pudesse bater-se de igual para igual com qualquer banco europeu. Mas no plano da concorrência é óbvio que um banco que dominasse 40% da quota de mercado poderia colocar algum problema de concorrência, teria uma posição dominante no mercado. Claro que podemos ver isto de outra maneira: o inconveniente que estou a referir pode ser ultrapassado se virmos o mercado como sendo um mercado europeu. E, de facto, o mercado bancário deve ser o mercado europeu. Se virmos desta maneira, a existência de um grande banco português será importante para Portugal.
E a venda em bolsa, que parece ser o cenário que está a ser preparado?
Colocando o banco no mercado, provavelmente, haverá um conjunto de operadores internacionais especializados, de fundos de investimento, de fundos de pensões, de fundos de private equity, que irão comprar partes do banco. E, colocando no mercado o banco, qualquer cidadão pode comprar ações do banco. O capital pode ser disperso [mas é positivo que se mantenha] um acionista de referência. Um acionista de referência num banco é absolutamente essencial, porque pode dar uma estratégia clara ao banco. Todavia, pode-se ser um acionista de referência com apenas 25% ou 30% do capital, se ele estiver muito diluído [por vários outros investidores]. Eu saio do Novo Banco com um certo sentimento, realmente, de missão cumprida, porque vejo que o banco conseguiu fazer o turnaround. Conseguiu, efetivamente, saindo de uma posição terrivelmente crítica, em que estava à beira de ser liquidado se não fosse vendido, como estava em 2017, para uma situação em que é hoje um banco supercapitalizado, um banco que tem uma ótima gestão e que tem uma coisa curiosa, que eu acho que valoriza o banco: há uma confluência de uma cultura anglo-saxónica com uma cultura portuguesa. Eu acho que isso é um aspeto que valoriza o banco, em termos de capacidade, de gestão e, também, de certos segmentos de mercado. Portanto, saio satisfeito, sei que este banco é, hoje, um banco forte e que vai ter um destino seguramente muito positivo.