[Este artigo faz parte de uma parceria entre o Observador e a Universidade NOVA que junta especialistas na análise das várias dimensões da pandemia do novo coronavírus.]
Portugal está entre os países em que a evolução do número de novos casos de Covid-19 e do número de mortes na sequência da doença é representada por uma curva mais achatada, de acordo com uma análise feita para o Observador por Inês Fronteira, professora de Saúde Pública e Epidemiologia no Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa.
Em contrapartida, é um dos países onde a doença avança rapidamente, podendo vir a assemelhar-se aos cenários registados em Espanha e Itália em número relativo de doentes. Pode parecer uma contradição, mas a explicação está no facto de ser preciso ter em conta que a evolução do surto em Portugal é muito mais recente que noutros países, tornando difícil uma comparação direta. Além disso, são indicadores diferentes, obtidos por cálculos que, num caso, têm em conta o número de novos casos por dia e no outro estão focados nos números por cada 100 mil doentes em risco.
Na análise, a especialista comparou os dados relativos a Portugal com os dados da China (epicentro da pandemia), Coreia do Sul (segundo país a reportar casos), Itália, Espanha, França, Alemanha e Estados Unidos, no que diz respeito ao número de casos novos, à velocidade de adoecimento, à curva epidémica e ao número de mortos.
https://observador.pt/2020/04/01/eua-ultrapassam-as-860-mortes-pelo-novo-coronavirus-num-so-dia/
Casos novos e mortes. EUA com a curva mais acentuada
Ao 29.º dia de disseminação da doença no território nacional — com 42 dias de atraso relativamente à China —, Portugal regista uma média de 221 casos novos por dia. Um número significativamente abaixo da média dos países europeus mais afetados pelo surto, como Itália (1.668 casos novos por dia), Espanha (1.426), Alemanha (983) e França (626). Porém, todos estes países já levam mais do dobro dos dias a lutar contra a pandemia, como sublinha Inês Fronteira.
Com uma média de 2.064 casos novos por dia, os Estados Unidos lideram nesta tabela, tendo também registado até agora o maior número de casos confirmados num só dia: 19.332.
São também os Estados Unidos que registam, até agora, a curva mais acentuada, de acordo com as contas desta especialista da Universidade Nova de Lisboa, que calculou o chamado “coeficiente de achatamento” — um valor que se for inferior a zero corresponde a uma curva mais achatada do que a distribuição normal e se for superior a zero corresponde a uma curva mais acentuada.
Esse valor, no que diz respeito aos casos novos por dia, é de 0,337 para Portugal, ao passo que em França é de 3,376, na Alemanha é de 2,838, em Espanha é de 1,1911, e nos Estados Unidos é de 5,251 — o valor mais elevado entre os países analisados. Em Itália, o valor é de -0,587, o que indica que a curva naquele país está agora mais achatada do que seria a curva normal sem a adoção de medidas de combate à pandemia.
“Portugal, em comparação com os outros países, está entre aqueles com maior achatamento da curva de distribuição de novos casos. Contudo, é também o país com menor número de dias de evolução da epidemia”, adverte Inês Fronteira.
No que toca ao pico de casos novos, a maioria dos países analisados, incluindo Portugal, ainda se encontram na primeira fase da curva. Isto significa que o dia em que foi batido o recorde de novos casos aconteceu há pouco tempo, na maioria dos casos na última semana. A exceção são, claro, a China e a Coreia do Sul. A China registou o maior número de casos novos ao 17.º dia do surto, ao passo que a Coreia do Sul o registou ao 41.º dia — ambos há mais de um mês.
Isto pode, na análise de Inês Fronteira, “indiciar uma diminuição da ocorrência de novas infeções“.
Também no que diz respeito à evolução do número de mortos, os Estados Unidos destacam-se, com um coeficiente de achatamento de 9,726 nesta curva — sendo apenas ultrapassado pela Alemanha, com um valor de 11,512.
“Se o valor for positivo, a curva é mais pontiaguda, o que significa que houve maior número de mortes por dia“, explica Inês Fronteira.
Estes valores comparam-se com os números significativamente mais baixos de outros países. Em Portugal, o coeficiente é de 0,708, o que corresponde a uma curva bastante mais achatada do que noutros países europeus, como França (4,877) e Espanha (2.815). Em Itália, o valor é de 0,406 — novamente um número que indica já um achatamento da curva.
“Em Portugal, verifica-se uma concentração de mortes por Covid nos dias mais recentes de epidemia. O achatamento da curva é baixo, o seja, a curva está achatada, mas esta observação deve ser interpretada com precaução face ao número de dias de epidemia que, em Portugal, é consideravelmente mais baixo”, analisa Inês Fronteira.
Neste indicador, é a Itália que está à frente, com uma média de 190 mortes por dia desde o início do surto. Espanha tem registado 122 mortes por dia. Já em Portugal, têm sido verificadas, em média, 5 mortes por dia desde o início da disseminação da doença em Portugal — um valor também muito abaixo dos registados noutros países como França (44) ou os EUA (35).
Covid-19. Como Portugal se compara com outros países em número de casos, mortos e testes
Covid-19 avança rapidamente em Portugal
No que toca à letalidade, é em Itália que se encontra a situação mais grave, com uma letalidade média mais de seis vezes superior à de Portugal. Naquele país, morreram até esta quarta-feira 13.155 pessoas num universo de 110.574 casos. Também esta curva, em Itália, está achatada, sublinha a especialista. Isto explica-se pelo facto de as mortes provocadas pela Covid-19 terem “acontecido desde uma fase precoce, sem grandes picos“.
Mas não pode dar-se como garantido que Portugal não chegue a um cenário como o verificado em Itália ou em Espanha, como indicam os valores da incidência, que nos revelam a velocidade a que as pessoas estão a adoecer em cada país.
De acordo com as contas de Inês Fronteira, tendo em conta as curvas de cada país até agora, a maior velocidade de adoecimento entre os países analisados verifica-se em Espanha (onde estão a adoecer em média mais de 3 pessoas por cada 100 mil pessoas em risco) e em Itália (onde este valor é de 2,75).
Em Portugal, o valor é pouco inferior. Segundo os dados disponibilizados pela especialista, estão a adoecer 2,15 pessoas por cada 100 mil em risco. Trata-se de um número que é mais do dobro do registado em França (0,94) e nos EUA (0,63) e quase o dobro do verificado na Alemanha (1,18).
“No caso português, estamos com uma série de dias em atraso, ainda estamos numa fase em que a curva, a verificar-se o mesmo tipo de acontecimento — independentemente das medidas, que o que vão fazer é com que a curva não suba tanto — que em Itália, ela vai tender a adotar este formato“, destacou Inês Fronteira.
A especialista sublinha que é necessário atender às especificidades de cada país — nomeadamente no que diz respeito às características das populações e às políticas de saúde pública — para fazer uma correta análise dos dados reportados pelos vários governos.
Nesse aspeto, Portugal e Itália aproximam-se. Um dos fatores mais relevantes é a população idosa. Como explica a investigadora, quanto mais idosos existirem no país, mais casos de Covid-19 serão, naturalmente, reportados. Isto acontece porque é nos idosos que os sintomas da doença se manifestam mais, ao passo que em pessoas mais jovens a probabilidade de os sintomas serem mais ligeiros é superior e, logo, a probabilidade de haver mais casos não reportados também é maior.
21,7%
Da população portuguesa tem mais de 65 anos de idade.
Em Itália, 22,6% da população tem mais de 65 anos. Em Portugal, são 21,7% da população. Seguem-se países como a Alemanha (21,4%) e Espanha (19,3%). Estes números contrastam com os registados na China, onde a população acima dos 65 anos representa apenas 11,2% da população do país, na Coreia do Sul (14,3%) e nos EUA (16%).
A investigadora alerta ainda para algumas cautelas que devem ser tidas em conta na análise dos dados.
Em primeiro lugar, cada país — e em alguns países, como os EUA, até os estados dentro do próprio país — adotam métodos diferentes para definir quem é testado e quem não é, e esta diferença afeta os números finais. “No caso português, na fase de mitigação, todas as pessoas que desenvolvam quadro respiratório agudo de tosse ou dispneia/dificuldade respiratória, são considerados suspeitos de Covid-19 e devem ser submetidos a teste laboratorial para SARS-CoV-2, em amostras do trato respiratório, de acordo com a Norma nº 004/2020 de 23/03/2020 da DGS”, detalha Inês Fronteira.
Também no que diz respeito às mortes, nem todos os países estão a usar a mesma definição. “É diferente uma morte com Covid e uma morte por Covid“, explica Inês Fronteira, assinalando que há países que contabilizam todas as mortes de pessoas que estavam infetadas e outros que apenas consideram as pessoas cuja causa principal da morte tenha sido a infeção pelo coronavírus.
É necessário também, detalha Inês Fronteira, evitar a tentação de sobrepor as curvas dos países fazendo corresponder apenas os dias em que foram identificados os primeiros casos no território e tentar extrapolar qualquer conclusão a partir daí. É necessário, explica, determinar o dia a partir do qual passou a haver transmissão comunitária do vírus — e comparar o comportamento do vírus a partir desse dia nos vários países.
É depois a partir daí que é útil fazer uma comparação com a forma como o vírus se disseminou na China. “A China deve ser tomada como referência, em termos de evolução natural da doença, por ter sido neste país que se originou a epidemia sendo que a transmissão terá começado por hospedeiro-pessoa, provavelmente pessoa a pessoa e depois comunitária. Nos restantes países, acredita-se que a epidemia possa ter começado pela importação de casos da China.”