O número de candidatos aos cursos de Medicina diminuiu 30% nos últimos três anos em Portugal, uma quebra ainda mais notória na região de Lisboa — onde as duas faculdades de Medicina perderam quase 40% dos candidatos, segundo os dados enviados ao Observador pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação. A associação que representa os estudantes de Medicina e a Ordem dos Médicos aponta as más condições de trabalho no Serviço Nacional de Saúde como um fator que está a afastar jovens da profissão e que é preciso resolver com celeridade. Embora a procura por estes cursos esteja em quebra, o número de colocados não está, por enquanto, a ser afetado.
Este ano, houve 2.301 candidatos aos cursos de Medicina na primeira fase do Concurso Nacional de Acesso (CNA). Um valor que representa uma quebra de 30% em relação ao que se verificou há três anos. Em 2021, também na primeira fase, registaram-se 3.280 candidaturas, o número mais alto da última década. A partir daí, a tendência foi de perda. Em 2022, candidataram-se 2.852 pessoas aos cursos de Medicina, menos 13% que no ano anterior. E, no ano passado, o número de candidatos voltou a descer de forma acentuada, com menos 700 pessoas a escolherem Medicina como primeira opção (foram apenas 2.133 em todo o país).
É verdade que, este ano, houve uma ligeira recuperação face a 2023 — para os tais 2.301 candidatos. Uma subida que se pode explicar, em grande parte, com a abertura de um novo curso na Universidade de Aveiro (ao qual concorreram mais de 120 jovens) — sendo agora dez os cursos de Medicina em faculdades do sistema público.
Más condições de trabalho “afastam potenciais médicos”, diz bastonário
Ao Observador, o bastonário da Ordem dos Médicos reconhece o problema e considera que a diminuição do número de candidatos nas faculdades médicas é, em grande parte, explicado pela falta de condições de trabalho no SNS. “Há um impacto relevante que tem a ver com a degradação do SNS e o impacto que as más condições de trabalho, o descontentamento e a desmotivação têm. Isso acaba por afastar muitos potenciais médicos das faculdades”, sublinha Carlos Cortes, realçando o impacto que esta situação tem nas escolhas das novas gerações, que, ao contrário do que acontecia nas gerações mais velhas, valorizam cada vez a conciliação da vida profissional com a familiar — um objetivo que, no SNS, parece cada vez mais distante.
“As novas gerações têm mostrado um grande desagrado pela incapacidade de conjugar uma vida profissional muito exigente com uma vida familiar e pessoal, o que leva médicos a abandonarem a profissão e outros a saírem do país”, destaca o bastonário dos médicos. Exemplos que têm impacto nos mais jovens, na hora de escolher um curso superior e um futuro profissional ligado à Medicina, admite. “Os mais jovens, quando têm de decidir o seu futuro profissional, vão ter em conta este feedback. E a imagem que se passa de um médico hoje é muito diferente daquela de há 15, 20 anos“, lamenta Carlos Cortes, fazendo uma comparação com a realidade de há 40 anos.
“Quando [o Serviço Nacional de Saúde] foi criado, em 1979, os médicos sentiam uma valorização do seu papel. E a Medicina continuou a ser uma das profissões mais desejadas, com as notas mais altas do país. Isso já não acontece porque o SNS se tem vindo a degradar, com falta de condições remuneratórias e uma desvalorização da profissão. É muito visível na sociedade”, critica o bastonário.
Quebra do número de candidatos a Medicina “pode refletir um desinteresse”, admitem estudantes
Diagnóstico semelhante faz a Associação Nacional de Estudantes de Medicina. “Antes de entrarem para um determinado curso, as pessoas têm uma perceção sobre ele baseadas na informação que recebem. E as condições do SNS e as condições que são oferecidas aos médicos podem estar também na origem da decisão de não irem para Medicina“, afirma ao Observador a presidente da associação, Rita Ribeiro. Aos 23 anos, a estudante da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto é um retrato dos futuros médicos. “Faço parte de uma geração que tem outra forma de olhar para o mundo do trabalho”, admite.
Para a ANEM, a quebra do número de candidatos a Medicina nos últimos anos “pode refletir um desinteresse” na profissão, o que pode ser, a longo prazo, “um problema para o país”. Rita Ribeiro defende que é preciso melhorar as condições de trabalho dos médicos no SNS (nomeadamente através da “modificação das condições profissionais, maior progressividade da carreira, flexibilidade horária, acesso a formação e a infraestruturas de qualidade”), mas também facilitar o acesso aos cursos de Medicina, inacessíveis para muitos jovens por questões económicas. “Este fenómeno pode também estar relacionado com a capacidade financeira dos jovens para frequentarem a faculdade. Na região de Lisboa, temos o problema da habitação”, recorda. Uma questão à qual “é preciso responder”, sublinha a presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina.
Um outro fator apontado tanto por Rita Ribeiro como por Carlos Cortes para a diminuição dos candidatos a Medicina é o crescente interesse dos jovens por outros cursos, ligados às áreas das tecnologias e das engenharias, com remuneração elevada e boas condições de trabalho.
O número de candidatos a Medicina, na 1.ª fase de acesso ao Ensino Superior deste ano letivo foi o terceiro mais baixo dos últimos dez anos, segundo os dados da Direção Geral do Ensino Superior. Tendo em conta a evolução deste indicador nos últimos três anos, é visível que a quebra no número de candidatos é bastante díspar de região para região, com as faculdades de Lisboa a registarem uma quebra de candidatos de perto de 40%, quase o dobro da diminuição registada nas faculdades médicas da região Norte.
Número de candidatos cai bastante em Lisboa e Centro, e menos no Norte
Na capital, e tendo como termo de comparação o ano de 2021, o número de candidatos na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa registou uma quebra de 37%: combinadas, as duas faculdades tinham sido escolhidas por 1.137 jovens há três anos; agora — e também na primeira fase do CNA — registaram apenas 717 candidatos.
A evolução decrescente do número de candidatos verificou-se em todas as regiões do país, mas foi menos acentuada a norte, onde agora existem quatro cursos de Medicina: na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (também da Universidade do Porto), na Universidade do Minho e na Universidade de Aveiro (um curso que arrancou este ano letivo, com 40 vagas). Somados, os quatro cursos tiveram, este ano, 1.049 candidatos, enquanto no ano passado tiveram 1.303 — o que representa uma quebra de 20%.
Na região Centro, a terceira que forma mais médicos, a diminuição do número de candidatos foi ainda mais acentuada que em Lisboa, tendo atingido os 40%. Em 2021, somados, os cursos da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e da Universidade da Beira Interior tiveram 705 candidatos. Este ano, foram apenas 427. Para além dos oito cursos em território continental, há ainda um na Madeira e outro nos Açores, mas com pouca expressão.
Mais de um terço dos médicos internos não voltariam a escolher o curso de Medicina
Numa análise mais fina, por faculdade, as diferenças são ainda mais díspares, com algumas escolas médicas a estabilizarem o número de candidatos em relação ao período da pandemia e outras a registaram grandes quebras.
Nos últimos anos, a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto ultrapassou a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (a maior do país) no que diz respeito à procura. Este ano, por exemplo, a FMUP teve 510 candidatos para 289 vagas (foi a escola médica mais escolhida na primeira opção), enquanto a FMUL teve 403 candidatos para 302 vagas — é o segundo número de candidatos mais baixo da década e está 35% abaixo de 2021.
Na Universidade da Beira Interior (com sede na Covilhã), a diferença é ainda maior: o curso de Medicina teve 225 candidatos há três anos; agora, apenas 80, o valor mais baixo da última década e que representa uma quebra de 65%. Na Universidade do Minho, o ano de 2024 foi também aquele que, desde 2015, registou menos candidatos ao curso de Medicina: foram apenas 189, quando tinham sido mais de 320 há três anos. O Observador tentou obter uma reação da presidente do Conselho de Escolas Médicas (que representa todas as faculdades de Medicina a nível nacional), mas sem sucesso.
A manter-se tendência, podem vir a sobrar vagas para Medicina. Seria inédito
Para já, a quebra do número de candidatos não coloca em causa o preenchimento das vagas (este ano, os 1.661 lugares a concurso nas faculdades médicas foram ocupados, o maior número de sempre). Mas há um risco de que, no futuro, fiquem vagas por preencher , se a tendência dos últimos anos se mantiver, admite o bastonário da Ordem dos Médicos. “É possível que possa haver uma inversão, ou seja, mais vagas do que candidatos. O facto de a profissão estar a tornar-se menos atrativa é uma preocupação, porque se este fenómeno se agravar, poderemos estar perante um grande problema para o país”, diz Carlos Cortes.
Também a Associação Nacional de Estudantes de Medicina reconhece que “existe o risco” de, no futuro, os cursos de Medicina entrarem para a lista dos cursos que não conseguem preencher todas as vagas — algo que nunca aconteceu.
Nos últimos anos, o número de vagas nas faculdades médicas tem aumentado cerca de 1 a 2% ao ano e, no último verão, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, anunciou a criação de mais dois cursos (na Universidade de Trás os Montes e Alto Douro e na Universidade de Évora) para fazer face à carência de médicos no SNS.
Um caminho errado, alerta o bastonário dos médicos, que rejeita o aumento dos numerus clausus. “A Ordem dos Médicos não é a favor do aumento das vagas. Não queremos que haja falta de médicos, mas também não podemos ter um superavit. Têm, sim, de ser tomadas medidas para reter os médicos formados no SNS. O problema não está no número de diplomados em Medicina, está no número de médicos que aderem ao SNS”, vinca Carlos Cortes.