Era o braço direito de André Ventura, o militante número dois do Chega e foi quase tudo no partido. Até que começou a ser afastado paulatinamente até à cisão final. Visto como o grande adversário interno de Ventura, decidiu não ir à Convenção que arranca esta sexta-feira. Agora, dá o passo final: vai desfiliar-se do partido. “Todos temos as nossas linhas vermelhas. Eu tenho as minhas quando falamos em limitar a liberdade e a democracia”, justifica.
Em entrevista ao Observador, no programa “Vichyssoise”, Nuno Afonso, vereador em Sintra, lamenta as agressões entre deputados do Chega, as ofensas aos outros partidos, o facto de André Ventura viver às custas do partido, de ter esquecido muito do que defendia e a perseguição aos críticos. “Não vou deixar de lutar pela democracia e pela liberdade. Mas o partido está completamente controlado pelo André Ventura”, sublinha.
Sem poupar críticas a André Ventura, Nuno Afonso diz ter percebido, talvez demasiado tarde, que o líder do Chega é “populista” e “autoritária”. O desfecho, insiste, está traçado há muito. “Acho que André Ventura é oposição mas nunca será uma alternativa”, remata.
[Ouça aqui a Vichyssoise com Nuno Afonso]
Bomba no Chega, caldo verde no PS e divina comédia em Lisboa
“Vou sair do Chega o mais brevemente possível”
É fundador do Chega e falha pela primeira vez uma Convenção do partido. É o fim da sua ligação ao partido?
Não ir à Convenção tem muito a ver com o desrespeito enorme que tem havido com os militantes por parte de André Ventura. Há muitas irregularidades a serem cometidas, inclusivamente na marcação desta Convenção. André Ventura sabe disso, mas mantém-nas na mesma. Há pouco tempo, o antigo secretária-geral, Tiago Sousa Dias, que elaborou os estatutos de Viseu, informou que tinha feito esses estatutos a pedido de André Ventura e o tinha avisado que tudo aquilo ia chumbar. Avançou-se na mesma. Para André Ventura, é muito fácil marcar este tipo de convenções — tem todas as despesas pagas pelo partido. Tem carro com motorista, segurança privada, refeições. Tem tudo pago pelo partido. É muito fácil para ele ir a Santarém, a Castelo Branco ou a Viseu.
Mas é o fim da sua ligação ao partido?
Todos temos as nossas linhas vermelhas. Eu tenho as minhas quando falamos em limitar a liberdade e a democracia. Aí traço uma linha vermelha. Não me revejo num partido que é eleito que devia defender o que prometeu aos eleitores e que, quando entra da Assembleia da República, muda radicalmente a sua ideologia. Só entendo isso à luz de um populismo vazio que anda ao sabor dos vento e que só tem movimentações taticistas. Temos um presidente que andou quatro anos a dizer que Portugal precisa de estimular a economia, apoiar os privados, o comércio a indústria e diminuir os impostos e agora defende que devemos taxar os lucros das empresas, impor tetos nos preços dos produtos, que a TAP já tem de ser de bandeira nacional — quando andou a lutar contra a nacionalização. Tudo isto incomoda-me. É uma falta de respeito para com os portugueses.
Vai desfiliar-se do Chega?
Com todas estas linhas vermelhas e a postura que o partido tem tido dentro da Assembleia da República, com deputados a agredirem deputados do próprio partido, a encostarem a cabeça e a ofenderem deputados de outros partidos, são linhas vermelhas que qualquer pessoa com bom senso tem de traçar. Portanto, sim, o mais provável é sair do partido o mais brevemente possível.
É o mais provável ou vai mesmo sair?
Vou sair, sim. Acho que é o culminar lógico de tudo isto. Em 2018, um amigo de longa data telefonou-me a pedir ajuda para fazer um partido novo. Na altura, disse que sim porque queria um partido assente em bases de democracia, liberdade, meritocracia, que defendesse a instituição família, com políticas, de certa forma, conservadoras. Mas sempre com a democracia e liberdade em primeiro plano. Ao longo dos anos tenho vindo a ser atraiçoado e só não saí antes porque tinha esperança que, nesta Convenção, com os checks and balances, conseguíssemos salvar o partido e impedi-lo de ir nesta linha mais autoritária e totalitária.
Nós quem?
Todos os militantes que não se reviam no percurso que o partido está a levar. A maior parte acabou por sair, muitas pessoas foram expulsas, muitas foram suspensas e acabaram por sair por desilusão. Na última vez que aqui estive, perguntaram-me se seria o líder da oposição interna e disse que formalmente não havia oposição porque nunca houve nada programado e consistente. As pessoas acabam por ser afastadas pela polícia do pensamento que foi arranjada.
“O partido está completamente controlado pelo André Ventura”
Independentemente de não haver essa oposição oficial, era o rosto das críticas internas à direção do partido e apontado como o possível candidato para ir contra Ventura. Agora sai. Ficou com medo de se candidatar e perder?
Não tenho medo de me candidatar, nem de perder. Se tivesse medo, nunca teria tomado uma linha de oposição ao que está a ser feito. Não tenho medo de absolutamente nada. O único medo que tenho é de não viver em democracia. Nunca hei-de parar de lutar pela democracia e pela liberdade seja contra quem for.
Não era mais clarificador ir a votos mesmo tendo um resultado residual? Ao menos dizia que tentou.
Vou continuar a tentar lutar contra tudo o que sejam autoritarismos e da forma que puder fazer. Ir àquele congresso não faria qualquer tipo de sentido. As regras do jogo estão viciadas. Ia estar a perder dinheiro, ia perder tempo com a minha filha, para ir a um congresso que vai ter de ser repetido daqui a algum tempo porque o Tribunal Constitucional vai acabar por mandar repetir. Ir a um congresso onde os delegados são todos escolhidos por André Ventura, nomeou os presidente das distritais, decidiu que leva também os representantes concelhios, que são pessoas também nomeadas. Não valia a pena ir.
Desafiou André Ventura para um debate onde pudessem estar os dois frente a frente, não sendo adversário oficialmente, por que razão André Ventura se submeteria a isso?
Neste momento não queria. A minha ideia era que pudessem aparecer outras pessoas e outras linhas que quisessem candidatar-se mas isso foi completamente vetado.
Porque os delegados eram todos apoiantes de Ventura?
Qualquer candidato a presidente precisa de determinado número de assinaturas e de proponentes para se poder candidatar e acho que isso seria pouco provável. Depois há todo o desgaste que tenho sentido. Penso se valerá a pena continuar a lutar por este partido. Não vou deixar de lutar pela democracia e pela liberdade. Mas o partido está completamente controlado pelo André Ventura.
“Ventura tem as despesas todas pagas pelo partido”
No início da entrevista disse que Ventura tinha as despesas todas pagas pelo partido. Está a usar o partido para benefício pessoal, é isso?
A verdade é essa: ele tem tudo pago pelo partido. É engraçado dizer que os políticos ganham muito e deviam ganhar menos e que é uma vergonha e defender que se retire 12,5% do ordenado dos políticos quando ele, por exemplo, tem as despesas todas pagas pelo partido. É fácil. É isto que é enganar os militantes. Há pessoas que fazem muitos sacrifícios para correrem o país atrás do presidente e das suas convenções e conselhos nacionais. E essas pessoas gastam imenso dinheiro. Isto é uma falta de respeito. Fui para Viseu, paguei tudo das despesas que fiz e foi-me dito que o partido não iria pagar nada. Depois descobri que o partido pagou àquela entourage do André Ventura, aquela bolha que se gera à volta dele.
Além de André Ventura, também o núcleo duro do presidente tem tudo pago?
Em Viseu isso aconteceu. E aconteceu noutros sítios.
Da última vez que esteve cá na Vichyssoise, disse que Ventura era “muito influenciável”, quase desresponsabilizando o líder do partido pela vossa cisão. Já percebeu que foi mesmo André Ventura que o quis afastar?
Já tinha percebido antes que havia essa intenção. Até determinada altura, nunca achei que ele fosse influenciável. Depois comecei a perceber que, de facto, havia muita influência e diz-que-disse. Mas não o desresponsabilizo. A responsabilidade é toda dele. Aliás, a responsabilidade de tudo o que tem acontecido no partido é dele.
Também não houve deslealdade da sua parte?
Acho que a falta de confiança foi fruto de todas as coisas que diziam, ouvi coisas inacreditáveis sobre mim. Havia deputados — um especificamente — a dizer que eu tinha saído de chefe de gabinete de André Ventura porque andava a correr os gabinetes dos deputados a tirar informações dos computadores deles.
Que deputado?
Não vou dizer nomes agora.
Mas quando faz uma acusação dessas é de esperar que a concretize.
Houve um outro deputado a quem perguntaram e ele disse que isso era um disparate. E era. Mas havia muitas coisas que se diziam. O Observador fez uma reportagem sobre os retratos de Ventura, andaram a dizer que fui eu a passar e não fui. Em Viseu, quando estava a ser feita uma lista contrária a uma lista da direção para conselheiros nacionais, também andaram a espalhar que era eu.
Nunca fez nada de desleal para com o presidente do partido?
Não. Aliás, até posso dizer uma coisa: durante todo o tempo que estive com André Ventura na direção, nem sempre concordei com ele, mas sempre lhe disse e pessoalmente. Inclusivamente a ideia de ele ser candidato à Presidência da República.
Discordou dele?
Sim, agora acho que foi uma excelente jogada política, mas, na altura, não concordei. Cheguei a dizer-lhe: “Tu queres ser presidente do Benfica, de Portugal, do partido. Não pode ser, temos de arranjar outras pessoas”. E ele até me disse: “Arranja dez pessoas e eu contacto todas”. E a verdade é que isso aconteceu e ninguém aceitou. Acabou por ser ele a avançar.
Quer dizer algum desses dez?
Não. Mas na altura não concordei, disse-lhe pessoalmente, mas quando fomos a Conselho Nacional discutir isso, nunca tomei uma posição. Porque achei, por dever de lealdade, como vice do partido, número dois e pessoa que o conhece há muitos anos, que não devia assumir publicamente que não concordava com ele. Então sempre o fiz em privado. Não acho que alguma vez tenha sido desleal com ele.
“André Ventura é oposição. Mas nunca será uma alternativa”
Os críticos culpam o partido pelas suspensões e expulsões no Chega. Foi a única forma que Ventura arranjou de controlar o partido?
Sim, a questão da Comissão de Ética. É completamente irregular termos a liderar uma comissão de ética alguém que pertence à direção do partido, portanto está sob a alçada do presidente. As coisas são feitas de uma forma muito pouco transparente.
Está a fazer uma análise muito crítica do que têm sido os últimos tempos no partido, mas a verdade é que o Chega continua a crescer nas sondagens. Alguma coisa há de estar a correr bem.
Toda a conjuntura nacional está para os populismos e para um partido como o Chega. Temos na Assembleia da República um PCP e um BE, com ideologias um bocado obsoletas, que defendem regimes ditatoriais, depois temos um PS que todos os dias aparece envolvido em casos.
É mais demérito dos outros do mérito do Chega, é isso?
Acho que André Ventura é oposição mas nunca será uma alternativa.
Sempre achou isso?
Não, quando criámos o partido não. Quando eu saí do PSD porque ele me pediu para o ajudar a criar um partido não achei isso. A minha história política com o André Ventura não começou sequer em 2018. Criei uma associação com ele em 2015, estivemos juntos em várias lutas dentro do PSD — foi ele que criou o Chega dentro do PSD. Já é um historial antigo.
Quando é que descobriu que André Ventura afinal não servia para liderar um governo?
Comecei a perceber que havia qualquer coisa contra mim fomentada pelo André Ventura em 2020, num Conselho Nacional no distrito de Braga. Entretanto, até na televisão houve uma reportagem de um almoço em Cascais onde foi discutida a forma de me afastar.
Mas afastá-lo não faz de André Ventura um mau ou bom líder. É uma decisão.
Há vários estudos académicos que estudam os líderes autoritários e certas regras que nos ajudam a reconhecê-lo. Uma delas é rejeitar as regras democráticas do jogo.
Foi em 2020 que percebeu que ele era um líder autoritário? Não tinha percebido até aí?
Não. E nem foi bem em 2020. Aí percebi que havia qualquer coisa contra mim, não tanto que fosse um líder autoritário. Começa-se a perceber que é um líder autoritário quando não aceita as regras do jogo e as muda em seu benefício. Há um ano, houve um Conselho Nacional no Porto onde se discutia ser candidato às distritais. Disse-me que ele é que ia decidir e eu disse logo que, nesse caso, seria candidato à distrital de Lisboa. Nesse fim de semana seguinte, temos o Conselho Nacional em que ele decide não fazer eleições para as distritais. Portanto, aqui nota-se que ele não respeita as regras democráticas do jogo.
O Chega tem futuro?
Tem a ver com o que estávamos a falar da conjuntura. Com o PS com os problemas que tem, com o PSD em que Montenegro só agora resolveu dar um murro na mesa, acho que o Chega está no melhor que pode estar. A nível conjuntural, o PSD ainda está fraco — e fica a dúvida se vai conseguir crescer ou não –, a IL passou por uma Convenção que não lhes correu muito bem… Acho que a conjuntura está o melhor possível para o Chega.
E depois?
Em 2022, escrevi que um partido marcadamente personalista e populista como Chega dificilmente passaria dos 9% numas eleições legislativas. Continuo a achar isto.
“Preferia votar em Rui Rocha do que em Ventura”
Vamos então avançar para a fase do Carne ou peixe, em que tem de escolher uma de duas opções. Num cenário de eleições legislativas antecipadas em breve quem levaria o seu voto: André Ventura ou Rui Rocha?
Provavelmente Rui Rocha.
Regressa ao Parlamento para um almoço e pode convidar um deputado da bancada do Chega. Quem prefere ter ao lado: Pedro Pinto ou Rui Paulo Sousa?
Preferia almoçar sozinho.
Tem nas mãos a possibilidade de voltar a fundar um partido e só pode fazer um convite: liga a André Ventura ou a João Cotrim Figueiredo?
Ao João, sem dúvida.
Tem o poder de escolher apenas um candidato presidencial: Marques Mendes ou Paulo Portas?
Essa é uma pergunta difícil. Provavelmente, escolheria Paulo Portas.