Gabriel acordou feliz e acelerou na trotineta para voltar à escola, José tirou a manhã de folga e esperou mais de duas horas para cortar o cabelo, Maria comprou livros para oferecer a quem faz anos, António vendeu pares de meias ao postigo e Raquel matou saudades de beber um café num copo descartável. O primeiro dia de desconfinamento no Porto teve direito a sol e a algum otimismo, das escolas ao comércio. Quase todos têm esperança de dias melhores e garantem que já se respira liberdade.
Passavam poucos minutos das 8h30 e os portões do Colégio Chupetão já estavam abertos, prontos para receber crianças da creche, do pré-escolar e do ensino básico. As educadoras ultimavam os preparativos, do álcool gel na entrada às bandeiras coloridas distribuídas pelo jardim, quando Carolina Maia chegou com o filho Gabriel, de seis anos. De mochila às costas e a conduzir a sua trotineta desde casa, o rapaz despediu-se da mãe apressado e sorridente, provando que as saudades da escola, dos colegas e da professora eram mais do que muitas. “Acordou muito bem disposto, é um dia de festa para ele. Só amanhã é que começa as aulas mais a sério, hoje é para brincar.” De trotineta na mão, Carolina regressa a casa e, antes de começar o teletrabalho, já tem planos. “Vou fazer um pouco de exercício, também preciso de tempo para mim.”
A fila de carros parados na rua começava a ganhar forma, muitos pais deixavam mesmo a porta aberta e o motor ligado, como quem sabe que não vai demorar muito a cumprir a tarefa de deixar os mais novos. Desta vez não houve choro, palmas ou histórias da carochinha para enganar os mais tímidos e resistentes. O som das mochilas com rodinhas a deslizar pelo alcatrão confundia-se com os avisos paternais: “Venho buscar-te logo à tarde”; “Porta-te bem”; “Não te esqueças da máscara”.
Ricardo Ferreira queixava-se do trânsito enquanto levava pela mão a filha Francisca, de cinco anos, que esta segunda-feira fez questão de regressar ao colégio com um outfit especial, onde saltava à vista uma tiara na cabeça. “A ansiedade era muita, desde sexta-feira que me pergunta qual é o dia de voltar à escola. É hoje.” As saudades da Francisca dividiam-se entre as amigas e a professora, sim, “porque nestas idades eles ainda sentem falta dos professores”. Na hora do adeus, seguiu em frente e não olhou para trás, como quem tem a certeza do que está a fazer. “É um dia de mudanças, ela voltou à escola e a minha mulher abriu hoje o salão de cabeleireiro, vou ficar a trabalhar sozinho em casa, mas é por uma boa causa.”
Parece não haver dúvidas de que a reabertura dos cabeleireiros e barbearias é mesmo um dos anúncios mais esperados em época de desconfinamento, por isso não admira as agendas cheias de marcações e as filas à porta destes espaços, onde o som dos secadores volta a ecoar e os cabelos sujam novamente o chão. José Góis tirou a manhã de folga para conseguir tratar do visual, algo que não fazia desde o ano passado. É cliente do Salão Ferreira há cinco anos e como o dono não “vai em modas” e não aceita marcações, teve mesmo de esperar de pé na fila pela sua vez. “Estou aqui há duas horas, mas não vou desistir. Tirei a manhã de folga para conseguir cortar o cabelo.” Para José, esta reabertura chegou na altura certa, pois se é capaz de tratar da barba em casa, o cabelo “não podia esperar mais”.
Ao fundo da rua do Salão Ferreira, um funcionário da câmara municipal retira uma a uma todas as fitas de plástico que contornavam os bancos de madeira na Praça Carlos Alberto. Estava assim levantada a proibição mais lamentada pelos mais velhos, que logo se apressaram a arranjar um lugar ao sol para ler o jornal.
Na zona mais comercial da cidade, Santa Catarina, o som das gaivotas esfomeadas fundia-se com o acordeão de um músico de rua e o som insistente de um pedido de esmola feito. Há pessoas à porta de óticas e das perfumarias, que entregam as encomendas online num balcão improvisado à prova de vento. A maioria das lojas permanece ainda às escuras e de portas fechadas, mas através de algumas montras vazias já é possível vislumbrarem-se baldes e esfregonas a deslizar pelo chão, como se fossem uma luz ao fundo do túnel. No Salão Azul não há fila na porta, a agenda está cheia até ao final da semana, é certo, mas as clientes chegam com hora marcada, sobem as escadas e entregam-se sem medos ao rolos, aos pincéis com tinta, aos pentes e às tesouras.
O sino da Torre dos Clérigos marca as 11 horas e Aníbal Fonseca já perdeu a conta aos cafés que tirou. Dois meses depois, a máquina dos cimbalinos do Muralhas voltou a funcionar e o caixote do lixo parece ser pequeno para a quantidade de copos descartáveis usados. “Há pessoas que não sabem as regras, mas mal ouvem a máquina a funcionar lembram-se logo. Já é bom abrir assim, aos poucos a normalidade voltará.” A normalidade no universo da cafeína parece só estar completa quando o cliente puder escolher entre uma chávena fria ou escalda, mas até lá é capaz de demorar.
Nada que assuste Raquel Silva, que já se dá por satisfeita por conseguir tomar “um cafezinho fora de casa”, mesmo num copo de plástico. Garante que não lhe sabe ao mesmo que faz em casa, de cápsula, e que a cultura portuguesa precisa deste pequeno momento de prazer. “Às vezes vinha comprar pão e faltava-me o café. Acho que até vou tomar já dois”, diz, enquanto lhe voa da mão o guardanapo de papel com que segurava uma empada de vitela da centenária Padaria Ribeiro. As esplanadas estão, por agora, empilhadas e presas com cadeados, mas os muros de granito, os bancos de jardim e até as paragens de autocarro cumprem a função. Há mesmo quem dê folga às marmitas e opte por almoçar a céu aberto.
Se à porta dos cafés o movimento de pessoas é generoso, o mesmo não se podem gabar as livrarias da cidade. Conhecida pelas filas intermináveis no passeio, a famosa Livraria Lello estava deserta a meio da manhã, e nem a entrada gratuita anunciada para esta segunda-feira aguçou o apetite dos leitores nacionais e internacionais. Na mesma zona, a montra da Bertrand tem Eça de Queiroz, Harry Potter e Virgina Woolf para chamar a clientela. Pela porta entram carrinhos de mão com caixotes de exemplares novinhos em folha e sai Maria Antunes com dois embrulhos debaixo do braço. “Estava à espera que as livraria abrissem para comprar estes presentes de aniversário, levo essencialmente livros infantis.”
Uns metros ao lado, José Alves limpa o balcão da sua livraria homónima, aberta há 53 anos. Vende livros técnicos e académicos, espera ansiosamente pelo regresso das universidades e a reabertura dos negócios vizinhos para que a faturação lhe sorria. “Precisamos todos uns dos outros, a cidade precisa de movimento. Não sei se vou vender alguma coisa hoje, mas a esperança é a última a morrer.”
Do outro lado da rua, ouve-se uma conversa telefónica cheia de perguntas indiscretas: “Qual é o teu tamanho de soutien? Que cores preferes?” Estamos na loja Intimoda, que a partir de hoje vende roupa interior para homem, mulher e criança ao postigo.
António Duro, o responsável, confessa que o negócio feito desta forma não é fácil, mas mesmo assim conseguiu vender oito peças em três horas. “As pessoas escolhem, mas ficam à porta. Muitos clientes são fiéis e já sabem os tamanhos, mas outros não, por isso facilito nas trocas.” Além dos pijamas, são as meias que têm tido mais saída. “Não sei se as pessoas andam descalças em casa, mas há um desgaste grande de meias.”