A aviação foi uma das primeiras vítimas económicas da pandemia e será provavelmente a última a recuperar do abalo. Pode demorar até três anos. De um aeroporto a rebentar pelas costuras e a precisar urgentemente de alternativa, o Humberto Delgado passou a um aeroporto fantasma. “É uma tristeza”, desabafa um funcionário aeroportuário. Tristeza ainda maior para a TAP, que acabou de receber dezenas dos novíssimos A330Neo, aviões que agora estão estacionados nas placas dos vários aeroportos nacionais à espera da retoma.
O setor nunca se cansa de repetir – para acalmar os mais nervosos – que andar de avião continua a ser mais seguro do que andar de automóvel. Mas agora a principal medida da segurança é o espaço, um luxo que falta no modo como nos habituámos a viajar. O distanciamento agora é fácil, porque quase não há pessoas a viajar, mas como será no futuro?
Depois do 11 de setembro, a aviação e os aeroportos tiveram de passar por uma revolução na forma como lidavam com os riscos de segurança. Uma maior exigência no controlo dos passageiros e das bagagens obrigou as pessoas a chegar mais cedo e a passar mais horas à espera de voo. Os aeroportos responderam com mais lounges para estar, mais lojas onde comprar, mais restaurantes onde comer, mais coisas para fazer. E muito mais pessoas para aproveitar estes espaços, porque – nos últimos 20 anos – as companhias low-cost trouxeram milhões de novos passageiros.
Apesar de quedas de 90% no tráfego — Lisboa por exemplo passou de uma média diária de 85 mil passageiros para pouco mais mil — as companhias nunca pararam de voar e à medida que as restrições legais abrandarem estão a preparar-se para o lento regresso dos passageiros. São cada vez mais as companhias que anunciam o regresso de operações, sobretudo a partir de junho. Mas agora é o tempo de lhes reconquistar a confiança.
Para os convencer que voar continua a ser seguro há um grande foco nas medidas de higiene e saúde. A luta contra o inimigo invisível passa pela guerra “química”.
O que muda dentro do avião
O avião é um espaço fechado onde convivem centenas de pessoas durante horas a respirar o mesmo ar. À partida parece ter as condições ideais para o contágio por um agente infetante. E até lá chegar, os passageiros têm de se sujeitar a procedimentos que implicam estar juntos, numa sala, ou em fila, seja para passar pela segurança ou pelas salas de embarque.
A ocupação. Portugal começou por aplicar a regra que limitava a ocupação a dois terços da capacidade definida para a generalidade dos transportes públicos. Mas esta restrição excluía vários serviços, como os voos de repatriamento, seja fretados pelos Estados, mas também por companhias aéreas, nacionais ou estrangeiras, na medida em que sejam aproveitados para efetuar ações de repatriamento ou que sirvam justificadamente esse propósito. Também os voos de companhias estrangeiras que chegavam a Lisboa não tinham de cumprir a limitação, criando uma desvantagem para os voos feitos debaixo da jurisdição portuguesa, razões que levaram o Governo a levantar este limite a partir de 1 de junho.
Governo recua: a partir de 1 de junho, aviões deixam de ter lotação limitada a dois terços
As máscaras. Sem existir uma imposição legal, como a usada nos transportes públicos, as companhias recomendam o seu uso a viajantes e tripulação. Chegam mesmo a indicar que tal é obrigatório a bordo dos aviões. Ainda que legalmente possam não ter os meios para o impor, a maioria das pessoas voluntariamente usa máscaras, até porque se sente mais segura.
A bordo a experiência é diferente. As idas à casa de banho podem ter menos concorrência enquanto os voos não vierem cheios, mas haverá maior disciplina. A Ryanair já avisou que será necessário pedir autorização e a circulação dentro do aparelho é ainda mais desaconselhada.
Passageiros da Ryanair terão de pedir autorização para ir à casa de banho
Os passageiros terão de trazer o seu entretenimento, a premiada revista da TAP deixou de estar disponível por risco de contágio (pode ser apenas descarregada numa app), e a refeição que antes era um ponto alto de alguns voos, sobretudo em classe executiva, é minimalista e com o mínimo de contacto com o pessoal de cabine. A tripulação tem mesmo orientações para reduzir as movimentações. São os próprios passageiros que para já preferem uma maior distância. Não espere que o assistente se ofereça para reforçar a bebida a ou o café.
O serviço de refeição e bebidas será limitado, suspenso ou adequado em função da duração da sua viagem. Mas as refeições e produtos cumprem, garante a TAP, “exigentes requisitos e certificações de saúde e higiene”, e passam sobretudo por produtos embalados e selados para assegurar uma maior confiança.
Continuam a existir nos voos de longo curso almofadas e cobertores, que são lavados e agora desinfetados a cada nova utilização, e chegam selados aos passageiros.
Passageiros da Ryanair terão de pedir autorização para ir à casa de banho
O sistema de circulação do ar num avião, em princípio, limita o risco de contagio a cinco filas de assentos. São aliás os passageiros nestas filas que tem de ser testados se for detetado algum infetado num voo e não todos os passageiros do aparelho. Segundo informação da TAP, o sistema de reciclagem do ar vertical “renova totalmente o ar da cabina com alta frequência, a cada 2/3 minutos, vinte vezes numa hora.” O sistema usa HEPA (High Efficiency Particulate Air) idênticos aos utilizados nos blocos operatórios”. Estes filtros, adianta, conseguem extrair até 99,999% dos vírus mesmo mais pequenos do que os da família dos coronavírus.
Entre limpar e desinfetar, é preciso o dobro do tempo
Também na limpeza dos aviões os procedimentos mudaram. O Observador acompanhou o processo de limpeza do A 330neo que chegou de Luanda às 23hoo do dia 14 de maio. O voo operado pela TAP foi considerado de repatriamento e por isso veio cheio.
A limpeza começou logo a seguir à saída dos passageiros, com a normal remoção de lixo e materiais reutilizáveis que têm de ser lavados e desinfetados e a chamada limpeza normal, reforçada na área da desinfeção e com especial cuidado aos itens mais manuseados como folhetos de segurança, tabuleiros e encostos dos braços. Depois vem uma nova fase que surge em resposta à crise sanitária: a desinfeção por nebulização: o processo envolve uma máquina, uma espécie de pequeno aspirador, que em vez de aspirar pulveriza, da qual sai um produto desinfetante altamente potente e que obriga os manuseadores a estarem cobertos da cabeça aos pés, de fato protetor e máscaras a tapar toda a cara e com viseira.
Carla Pinheiro da empresa especializada ISS, a supervisora de uma equipa de dez pessoas que asseguram a limpeza e desinfeção do avião, explica que esta operação é feita sempre que um avião regressa a Lisboa e antes de partir. No destino, o aparelho é também limpo e desinfetado, mas a nubolização só é recomendada pela EASA (agência europeia de segurança aérea) a cada 24 horas.
O processo não é usado na cabine do piloto onde estão instalados os equipamentos sensíveis de navegação que têm de ser desinfetados à mão e com supervisão técnica presente.
A nebulização veio prolongar o tempo de limpeza de um avião. No caso dos aviões de longo curso (widebodies) o processo pode demorar mais de duas horas. Não basta pulverizar o desinfetante, é necessário esperar 15 a 20 minutos para que produto se deposite antes de concluir a limpeza. Num avião de médio curso, o procedimento pode exigir mais de uma hora, o que não seria compatível com a elevada rotação que estes aparelhos tinham antes da crise, quando o processo de limpeza demorava apenas 15 a 20 minutos. Um ritmo que não poderá ser retomado com estas maiores exigências. Agora ninguém olha para isto como um problema, tempo não falta até ao próximo voo.
O que está a ser feito no aeroporto
Para reconquistar os passageiros não basta que os aviões estejam seguros, é preciso que todo o percurso até lá chegar também o seja. No aeroporto, também é feito um processo de desinfeção com um produto especial a cada 20 dias através de uma máquina que pulveriza bancos, chão, tabuleiros de bagagem, esteiras.
É um trabalho feito à noite porque é preciso esperar 30 minutos antes de essas superfícies poderem ser utilizadas. O que agora é fácil, ma vez que o aeroporto está vazio. Mesmo assim vão-se encontrando pessoas, poucas, a dormir nas cadeiras — agora também não falta espaço — sempre de máscara.
O efeito protetor destes procedimentos nem sempre é pacífico. A Organização Mundial de Saúde tem manifestado dúvidas sobre a sua eficácia em alguns espaços, mas as autoridades continuam a fazê-lo nas ruas e as empresas de transportes também, quanto mais não seja porque a aumenta o nível de confiança das pessoas.
Pulverizar ruas com desinfetante é perigoso e não é eficaz, diz OMS
A restauração nunca fechou completamente, sempre houve algum serviço, e no principal hall comercial onde as lojas estão fechadas, é possível fazer compras em algumas, basta chamar um funcionário do Duty Free, segundo se lê num aviso colocado na porta. Apesar das poucas pessoas, e de ainda menos passageiros, a cada 10 minutos ouve-se uma mensagem de aviso para a necessidade de manter a distância de segurança. No chão há sinais no chão a sinalizar as distâncias mínimas. Os passageiros estão a ser preferencialmente encaminhados através de mangas e quando vão de autocarro estes têm de cumprir o limite dos dois terços de ocupação.
Quando aterram em Lisboa, os passageiros são sujeitos a um controlo de temperatura através de uma câmara, muito nem dão pelo procedimento. Quando são detetadas leituras acima dos 37,8º graus, o passageiro é informado e leva um folheto. A informação fica registada, mas já não há obrigação de avisar as autoridades de saúde. E têm sido muito raros os casos em que tal acontece numa altura em que estão a chegar ao Humberto Delgado menos de mil pessoas por dia.
Menos pessoas, mais carga
Para além da TAP — com ofertas para Londres, Paris, ilhas nacionais, Porto, e S. Paulo, estão a fazer voos de Lisboa, neste tímido regresso, a Ryanair, a Lufthansa, a Air France, que retoma voos diários em junho, British Airways a KLM, e empresas de baixo custo como a Wizz Air, e a Azul de Neeleman, acionista da TAP, que voa para S.Paulo. A Easyjet prevê voltar a operar também em junho.
Na semana passada havia cerca de 10 voos diários, esta semana já são entre 15 e 20. Mas ainda estamos muito longe dos 400 voos por dia. E há restrições legais várias, desde a obrigação de quarentena que o Reino Unido quer impor a quem chegar ao país, de 14 dias de auto-isolamento. Para França, é preciso ser residente e apresentar morada no país logo no embarque. Não se pode ainda voar para Espanha e Itália por restrição legal. E para Angola só com autorização especial do Governo, que só a dá quando precisa que o avião traga material médico ou produtos alimentares ao país.
Mesmo para em voos internos há imposições: para os Açores, os passageiros com origem em zonas com transmissão comunitária ativa do vírus à chegada têm de apresentar o resultado de um teste negativo ao Covid feito 72 horas antes do embarque e a Madeira quer impor a realização de testes à chegada a partir de 1 de julho.
Mas se faltam os passageiros regulares, a procura por aviões de carga está a aumentar e a TAP já retirou assentos a dois A330neo para entrar neste negócio. Transportam medicamentos e material de proteção pessoal, com origem na China, fruta tropical vinda do Brasil e peças para o setor automóvel com destino àquele país, e exportações várias da indústria portuguesa para os Estados Unidos.
A TAP Air Cargo está a realizar cerca de 10 voos por semana exclusivamente de carga, em aviões A330neo da TAP, para Brasil, Angola, Moçambique e Estados Unidos da América. A cada três dias em média, segue um voo para a China, que pode ser um A330-900neo da TAP com carga em porão e cabine e ou voos cargueiros puros em avião fretado pela TAP Air Cargo), para assegurar o transporte de material médico e equipamento de proteção individual, essenciais ao combate à pandemia.
Os voos realizados para a China são os mais longos de sempre realizados pela TAP e implicam um enorme esforço de planeamento e de cumprimento de todas as exigências operacionais.
Da China, a TAP Air Cargo já transportou, essencialmente para Portugal, mas também para outros mercados, como o Brasil, máscaras de proteção individual, fatos de proteção, kits de teste de diagnóstico ao novo coronavírus, ventiladores e monitores. A maior parte destes equipamentos são para a proteção e prestação de cuidados de saúde aos portugueses.