— Têm mesmo a certeza de que querem fazer esta viagem?
Freddy “Kikke” Pedersen não estava convencido de que era seguro aventurarmo-nos em busca de bacalhau. Não entendemos a dúvida. Lá fora nada parecia assustador. Atrás de nós, na mesa, ainda jaziam as migalhas do pão com manteiga do almoço. Ao lado, um calendário ilustrado pela imagem de uma baleia a focinhar um barco. E do outro lado da janela do restaurante, para quem estava com o estômago aconchegado por uma sopa de peixe carregada de pimentos e natas, nada parecia ameaçador para além das águas negras com correntes azul turquesa do mar da Noruega.
Enquanto nos enfiávamos dentro dos fatos de pesca cor de laranja, os pescadores sorriam-nos com condescendência. Mas avançámos sem medo. É que gaivotas nem vê-las e toda a gente sabe que ali ou em qualquer parte do mundo só voltam a terra se houver tempestade no mar. Só Johnny Thomassen, diretor do Conselho Norueguês de Pesca em Portugal, é que nos travou a coragem: “O Titanic, quando se afundou, não foi porque o mar estava bravo. Foi por causa dos icebergues”.
Em Portugal, quando se sai à pesca da sardinha ou do carapau, o gelo nunca é um problema. Na Nazaré, pode sê-lo a altura da ondulação. No Algarve, a temperatura da água. Mas na vila piscatória de Torsvåg, a 90 quilómetros a norte de Tromsø — uma das poucas cidades habitadas acima do Círculo Polar Ártico — e a 2.300 quilómetro do Pólo Norte, o tempo não estava do nosso lado. O mar estava calmo, é certo, mas as temperaturas sempre abaixo dos -10ºC davam sustento ao medo de encontrar blocos tão grandes como os mais mortíferos do Atlântico.
Torsvåg fica a quatro mil quilómetros de Portugal. As nossas águas são azuis, as norueguesas são negras. As nossas praias têm areia branca, as norueguesas estão cobertas de rochas e neve. Cá, as paisagens são recortadas por falésias. Lá, por fiordes. O nosso inverno mais rigoroso é o melhor verão nesta vila piscatória. E ainda assim esta ilha, algures no topo da rendilhada costa da Noruega, tem mais em comum com Portugal do que se pode julgar à primeira vista. Aqui, todo o bacalhau que se pesca é exportado exclusivamente para o nosso país. Cada peixe que sai destas águas só é pescado para chegar aos nossos pratos.
A pesca acontece entre fevereiro e abril, quando o peixe se aproxima da costa para se reproduzir. São três meses a trabalhar sete dias por semana. Os primeiros pescadores partem às oito da manhã, voltam às seis da tarde e depois dedicam mais duas horas do dia a amanhar o peixe à moda portuguesa. Tudo para que, em dezembro, tenhamos o bacalhau com todos à mesa. Por essas oito a 12 semanas de trabalho, seis das quais em ausência quase total de luz solar, ganham quase 1,5 milhões de coroas norueguesas. O equivalente a 150 mil euros. E por isso, após a dureza desses três meses, não precisam de trabalhar mais durante o resto do ano.
O nosso barco tem 14,80 metros e é dos maiores. Estava atracado no porto junto a umas portas onde o ar gélido e a maresia salgada vão secando os peixes pendurados nas ombreiras. Chama-se “Vannøyværing”, que em português significa “Varengue de Vannøy”, em homenagem aos vikings da ilha rochosa de Vannøy que saíram da Escandinávia e chegaram até Bagdade. Não havia redes a bordo porque estes pescadores já esgotaram a quota que lhes foi reservada para este ano. O máximo que podiam fazer por nós, para garantir que temos bacalhau ao jantar, era levar duas canas de pesca. Mas nem essas nos haviam de valer de muito. Estava tanto frio que congelaram. E avizinhavam-se mais problemas.
O tempo estava a mudar. Já se viam as gaivotas, o vento estava a levantar e a neve, a mesma onde chegámos a enterrar as pernas até ao joelho sem dificuldades, mordia como agulhas ao cair. “Aqui há uns tempos houve uma tempestade muito grande e todos os barcos tiveram de regressar a terra. Quase todos voltaram, menos dois. Já aconteceu perdermos barcos e depois, quando os encontrámos, os tripulantes estarem mortos encostados a um canto congelados”, comentou alguém. Fez-se silêncio, rompido apenas pelo ranger da madeira do cais quando o barco investia contra ele. Só foi rompido pela ilusão de uma esperança: “Não se preocupem, normalmente voltam todos”.
Em busca do “bacalhau atleta” de que Portugal gosta
“Normalmente” era bom o suficiente para nós. Ali perto esperam-nos cardumes gigantescos de bacalhau. E não é um bacalhau qualquer. Aquele que é consumido na Noruega e o que é levado para Portugal não são iguais. Na verdade, são da mesma espécie, a Gadus morhua, mas têm comportamentos diferentes. O que os noruegueses comem, o bacalhau costeiro estacionário, prefere águas mais superficiais, por isso ficam mais próximos à costa.
Os portugueses, por outro lado, gostam mais do bacalhau migratório do Atlântico, que nada em águas mais profundas e que, portanto, afasta-se mais de terra. Esse tipo de bacalhau, a que os locais chamam Skrei, atinge a maturidade no Mar de Barents e nada até à costa da Noruega para desovar e se reproduzir. Este é o bacalhau pescado em Torsvåg para ser levado para Portugal e representa 90% da pesca norueguesa. Faz 1.500 quilómetros por dia, ou seja, mais de cinco vezes a distância em linha reta entre Lisboa e o Porto ou três vezes a distância do ponto mais a norte ao ponto mais a sul do nosso país. “É um peixe atleta, por isso o sabor é diferente, mais apurado. A carne é mais macia, mas firme e com pouca gordura”, explicou Johnny Thomassen.
Dentro da cabine do leme, onde Freddy “Kikke” Pedersen vai pilotando o barco para fora do porto, havia vários computadores. Um deles mostra a localização do “Vannøyværing” e dos outros barcos mais próximos dele. Outro alerta o piloto sobre os perigos que possam existir à volta do barco, como bancos de areia, pedras ou icebergues. E um terceiro esquematiza num ecrã a localização dos cardumes de bacalhau. É tão sensível que, se o peixe estiver suficientemente perto da quilha do barco, é possível vê-lo a passar como numa radiografia.
Quando uma mancha se aproximou promissoramente do barco, Freddy “Kikke” Pedersen desligou os motores e os tripulantes pegaram nas canas. Tínhamos feito uma aposta: quem apanhasse o primeiro bacalhau ou pescasse o maior de todos, ganhava. Nesta região, ainda tão longe do Atlântico, a água dificilmente congela por completo. A água é salgada, portanto não solidifica tão facilmente quanto a doce — esta congela quando chega aos 0ºC, mas o ponto de solidificação da água salgada só acontece aos -2ºC. Além disso, o mar da Noruega recebe as correntes mais quentes vindas do Atlântico. E movimenta-se através de correntes de convecção, que obrigam a água mais quente a subir e a mais fria a descer num sobe e desce que dura há 250 milhões de anos.
Foi esse o bailado que nos tramou. A ondulação, embora suave, dava a volta ao estômago dos mais fracos. A sopa de peixe norueguesa, o pitéu que os habitantes de Torsvåg nos deram antes de embarcarmos, não é regada por água, azeite e tomate como a portuguesa. É carregada de natas e acompanhada de pão quente com manteiga para carregar de gordura o corpo e prepará-lo para enfrentar o frio. Parecia boa ideia quando estávamos sentados à mesa com um prato apinhado de miolo de camarão e lascas de peixe. Mas agora, embalados pela lentíssima corrente do mar da Noruega, os lacticínios já não parecem tão simpáticos para gente inexperiente como nós.
O instinto diz-nos para nos aproximarmos da meia-nau, que é a parte central do barco, onde a agitação não é tão revoltosa. O truque, garantem os pescadores, é encostarmo-nos a estibordo e olhar para o horizonte, preferencialmente com um chocolate por perto. Mas o horizonte estava turvo, ora pela neblina, ora por manha da própria má-indisposição. E de de nada vale contrariar as regras ditadas pelo mar: assim que baixámos o olhar para dentro de água, uma onda vinda de bombordo levantou o casco e empurrou o nosso rosto para dois ou três palmos da superfície do mar. Mesmo sentados, ainda a recuperar do susto, o mar voltou a ser implacável. E uma onda entrou no barco, engolindo-nos e deixando-nos completamente encharcados. Foi preciso tudo isto para aprendermos a lição: a natureza riposta sempre aqui no mar da Noruega.
Como um desvio em busca da Índia mudou o bacalhau
Quando os portugueses descobriram o bacalhau já ele circulava nos pratos pela Europa fora. Os primeiros a prová-lo foram os vikings, que o pescavam com recurso a linhas e anzóis e depois o deixavam a secar ao frio e ao vento. A partir do século XI, o bacalhau seco começou a ser vendido nos grandes centros urbanos da Europa do Norte: primeiro era todo concentrado em Lofoten, um arquipélago norueguês acima do Círculo Polar Ártico, depois enviado para Bergen, que ficava entre as zonas de pesca e os mercados europeus. Foi assim que este peixe entrou na rota comercial desde o norte da Europa até ao sul.
Só que nesta altura os noruegueses ainda não salgavam o bacalhau, explica ao Observador o chef Hélio Loureiro. Isso só aconteceu já no século XV, quando os irmãos Corte-Real partiram em busca de um caminho marítimo para a contracosta da Índia e acabaram por encontrar Terra Nova, que hoje pertence ao Canadá. “Inspirados pela cultura romana, para quem o sal era uma verdadeira relíquia [é dessa importância que vem a palavra ‘salário’], os portugueses começam a conservar o bacalhau seco com sal nos porões dos navios para que ele sobrevivesse às grandes distâncias”, conta o chef.
Antes disso, o bacalhau seco já tinha chegado a Portugal na Idade Média pelas mãos dos povos do Norte. No século XIII e XIV, os britânicos eram grandes consumidores de bacalhau e também o queriam salgar para o conservar nas viagens do Atlântico Norte até ali. Mas não tinham como. Foi por isso que se estabeleceu uma parceria entre Inglaterra e Portugal: os portugueses davam aos ingleses o altamente elogiado sal de Aveiro, de que os navegadores precisavam para importar o bacalhau; e, em troca, os ingleses protegiam os navios portugueses nos bancos da Terra Nova.
Há muito que Portugal consome bacalhau. Tornou-se especialmente importante por causa da cultura cristã no país, que exigia a abstinência de carne em algumas alturas do ano. Em substituição os portugueses comiam peixe. As cidades no litoral de Portugal podiam comer peixe fresco, mas no interior ele só chegava às mesas das famílias mais abastadas. Os mais pobres comiam peixe dos rios, mas era pouco para alimentar toda a população. Mesmo que comessem sardinha ou carapau, ele não durava tanto tempo, mesmo quando salgado. O bacalhau, pelo contrário, conservava-se mais facilmente. E, ainda por cima, era uma importante fonte de proteínas.
Diário de Bordo. A sardinha é o novo caviar: andámos 48 horas à pesca para saber porquê
A importância do bacalhau para Portugal acentuou-se ainda mais durante o Estado Novo: “Havia a necessidade de dar à população uma proteína barata. E quem se dedicasse ao bacalhau podia livrar-se da tropa”, explica-nos ainda o chef Hélio Loureiro. Em 1926, a produção nacional de bacalhau seco e salgado só representava 10% do consumo, por isso investiu-se na pesca portuguesa desse peixe. Em 1958, Portugal já era o primeiro produtor mundial de bacalhau seco e salgado — algo que só havia de afrouxar no início do século XXI, quando a frota portuguesa não conseguia pescar mais do que 4% do consumo nacional por causa da falta do peixe, ue começou a rarear.
O percurso do bacalhau, da guilhotina até aos pratos
Uma voz preocupada, intermitente pelo ruído do rádio, escapou da cabine: “Temos de ir embora. Daqui a meia hora, talvez menos, vai abater-se uma tempestade de neve aqui em Torsvåg. Deve ficar a noite inteira”, avisou o capitão de um barco ali perto. Já estávamos em alto-mar, mas não tínhamos tido sorte com o bacalhau. O gelo tinha congelado os carretos das canas, o isco não convenceu o peixe, o granizo feria a pele já vermelha do ar gelado. Até as gaivotas nos avisavam que estava na hora de regressar a terra. Dali até ao porto de onde tínhamos partido eram 20 minutos. Não havia outro remédio. Estávamos exaustos. Tínhamos de desistir e voltar.
Sete minutos depois de atracarmos, a tempestade de neve chegou. E chegou implacável. Estávamos de mãos a abanar. Nenhum de nós tinha pescado um único bacalhau e precisávamos dele para, dali a umas horas, servirmos aos pescadores noruegueses as iguarias portuguesas feitas com aquele peixe. O jantar seria na “Casa do Povo” — sim, o nome é mesmo em português — e seria da responsabilidade do chef Hélio Loureiro, um embaixador das receitas portuguesas com bacalhau, e de Bernardo Calvo e Luís Moleiro — dois dos chefs vencedores do concurso “Revolta do Bacalhau” promovido pelo Conselho Norueguês dos Produtos do Mar e por uma cadeia de supermercados.
O menu incluiria os pastéis de bacalhau e o bacalhau à Brás. O primeiro porque é uma receita tipicamente portuguesa, inventada no século XIX pelo Visconde de Vilarinho de São Romão para potenciar o consumo da batata. O segundo porque é o prato favorito de Cristiano Ronaldo, explicou ao Observador Hélio Loureiro. Este era o plano para o jantar, que aconteceria dali a poucas horas. Mas só se arranjássemos a solução.
A solução chegou no meio da neblina. “MS Nymøre”, o barco que nos tinha avisado da aproximação da tempestade, tinha chegado ao porto com as redes cheias de bacalhau. Ia aumentar a quantidade generosa de peixe armazenado ali no porto, mas que ainda assim não basta: “Temos aqui armazenadas algumas centenas de toneladas, mas são poucas para a procura. O mau tempo não está a ajudar”, desabafou um dos pescadores sem querer desvendar a quantidade exata de bacalhau guardada em Torsvåg.
A máquina por detrás do bacalhau à moda portuguesa
Quando o peixe é descarregado dos barcos, é depois depositado num túnel de metal montado nas traseiras do armazém. O bacalhau é encaminhado para interior, onde uma espécie de guilhotina lhe corta a cabeça.
Em Portugal não há o hábito de a comer — o mais que se costuma aproveitar são as bochechas — mas não é assim em todo o lado. Na Noruega, a língua do bacalhau é uma iguaria muito apreciada quando panada e acompanhada com batatas fritas e maionese. “Gostamos tanto das línguas de bacalhau que nunca chegamos a exportar. É tudo consumido cá dentro”, conta-nos um dos pescadores.
Quando são cortadas do corpo do bacalhau, as cabeças são amontoadas em caixotes de plástico e entregues a dois jovens. Tuva e Dina têm 13 e 16 anos e cabe-lhes a elas separar as línguas do resto da cabeça. Com uma faca na mão direita, espetam a língua num ferro e amputam-na o mais depressa que conseguirem. São rápidas porque, aqui, tempo é dinheiro: cada uma das raparigas, estudantes e voluntárias, ganham três euros por cada quilo de línguas de bacalhau que recolhem.
Os pescadores dizem entre risos que, noutros países, o trabalho de Tuva e Dina seria considerado exploração infantil. Na Noruega não: “Assim aprendem o valor das coisas, o quanto custa ganhar dinheiro e aprendem desde cedo a gerir o rendimento que têm”. E é um rendimento generoso. Contas feitas, cada uma arrecada 250 euros pelas quatro horas de trabalho que têm por dia. Com um total de 10 horas de trabalho, Tuva e Dina ganham cada uma o equivalente ao salário mínimo nacional para a função pública em Portugal.
Enquanto as duas raparigas se dedicam a cortar a língua às cabeças do bacalhau, o resto do peixe é encaminhado para outra passadeira onde um funcionário lhes esventra e retira as vísceras. O fígado e as ovas são guardadas. Na Noruega, as ovas são consideradas “o caviar da Escandinávia”. São guardadas dentro de tanques em camadas alternadas com sal e açúcar e deixadas a marinar durante entre três semanas e sete anos. A seguir são fumadas com madeira durante mais três semanas. E servidas em tostas com cebola roxa.
Numa sala ao lado desta, mais uma equipa de funcionários usa outra máquina para livrar o bacalhau do sangue e da gordura. Depois de limpo com água corrente, o peixe é disposto em camadas alternadas de sal, que é depositado uniformemente por uma máquina parecida a um exaustor. No fim, é demolhado em salmoura e deixado assim, em descanso, durante pelo menos três meses. Quanto mais tempo ficar nesta marinada, melhor será a qualidade do peixe.
Ao fim desse tempo, o bacalhau é colocado dentro de uma máquina com ventoinhas cor de laranja e guardado em gavetas para iniciar o processo de secagem. As ventoinhas sopram o peixe de forma circular para que todos eles recebam a mesma corrente de ar. Antigamente, isso era feito ao ar livre: o peixe era pendurado em estacas de madeira junto ao mar para ser seco pelo frio. Mas isso demorava muito tempo porque sempre que nevava ou chovia era preciso retirar o peixe e depois voltar a estendê-lo.
Agora só demora três dias, graças a estas máquinas inventadas pela Universidade de Aveiro e compradas pelos pescadores da Noruega. Até há pouco tempo ainda se usava o método artesanal. Mas, como os pescadores não têm conseguido pescar tanto, decidiram investir nas invenções portuguesas que aceleram a secagem do peixe e permitem aos noruegueses manterem o preço de venda do bacalhau. É uma forma de “reequilibrar a economia”, explicam-nos.
Como todo o peixe seco guardado aqui vai para Portugal, todas as etiquetas espalhadas pelo armazém também estão em português — apesar de não haver nenhum a trabalhar nesta equipa de 50 funcionários, 25 dos quais permanecem em Torsvåg o ano inteiro, quer haja pesca, quer o bacalhau já tenha partido. O peixe está dividido conforme o peso: uns caixotes dizem “Jumbo” e guardam o bacalhau que tem seis ou mais quilogramas. O “Especial” é o bacalhau com entre quatro e seis quilos. E o “Crescido” é o mais pequeno: tem entre dois e três quilos.
O monopólio do bacalhau
A quota de bacalhau da espécie Gadus morhua que pode ser pescada — este ano foram 360 mil toneladas — é calculada todos os anos pelos noruegueses e pelos russos em conjunto. “Juntamo-nos com os russos e vamos para o mar várias vezes ao longo do ano para recolher amostras e perceber a evolução dos cardumes de bacalhau”, começa por descrever Maria Fossheim, cientista do Instituto de Pesquisa Marítima, ao Observador. Os dois países têm programas de monitorização e viajam pelo oceano inteiro duas vezes por ano para o colocar em prática.
Todo o bacalhau pescado na Noruega está nas mãos da Norges Råfisklag, uma organização público-privada sediada em Tromsø que detém o monopólio das vendas em primeira mão de bacalhau, pequenas baleias e mariscos capturados ao longo da costa norueguesa entre Nordmøre e Finamarca. Essa organização compra o bacalhau aos pescadores e depois responsabiliza-se por exportá-lo. Portugal é o melhor cliente da Norges Råfisklag: de todo o bacalhau vendido a esta organização, entre 65% e 70% é importado para cá.
O preço a que o bacalhau é comprado aos pescadores depende de uma fórmula criada em 2016 pela Norges Råfisklag e pelo Conselho Norueguês das Pescas. De acordo com essa fórmula, o preço mínimo a que a companhia deve comprar o bacalhau é calculado somando três parcelas: 80% do preço médio do bacalhau fresco, 70% do preço médio do bacalhau congelado — ambos dependentes do volume de negócios da Råfisklag — e 60% dos preços médios mensais de exportação — calculado pela Nofima, um instituto de investigação na área da pesca. A soma desse valor é depois dividido por três.
O valor que se obtém de todas essas contas, que são repetidas de duas em duas semanas, é o preço mínimo a que a Norges Råfisklag deve comprar o bacalhau aos pescadores. Neste momento, um bacalhau com mais de seis quilos é vendido a 26 coroas norueguesas ao quilo (2,70 euros); o bacalhau com entre 2,5 quilos e seis quilos custa 25 coroas por cada quilo (2,60 euros); aquele que tiver entre um e 2,5 quilos é comprado a 23,75 coroas ao quilo (2,47 euros); e o bacalhau mais pequeno, com menos de um quilo, custa 21 coroas ao quilo (2,18 euros). Depois chega a Portugal por sete euros ao quilo.
Como as alterações climáticas estão a ajudar o bacalhau
O bacalhau que se vende nos supermercados portugueses vive no mar de Barents, mas é empurrado pelas correntes atlânticas para junto da costa norte da Noruega para se reproduzir. “É assim porque, quando a primavera do Ártico começa, é lá que há mais alimento”, explica ao Observador a cientista Maria Fossheim. Esse bacalhau é diferente dos outros tipos. Só que “morfologicamente não apresentam nenhuma características diferenciadora”: “Só geneticamente é que são diferentes”, acrescenta.
A maior parte dos tipos de bacalhau tem sofrido com as alterações climáticas. O bacalhau-do-árctico, por exemplo, cujo nome científico é Boreogadus saida, gosta de águas muito frias e só é capaz de se reproduzir se ela estiver com menos de 1,5ºC. É por isso que é tão vulnerável ao aquecimento global: se a água aquecer — como está a acontecer — e os oceanos ficarem mais ácidos, o bacalhau-do-árctico deixa de se reproduzir. E vai em busca de águas mais frias e limpas para norte, o que obrigará os pescadores a terem de viajar para mais longe.
O bacalhau consumido em Portugal, por outro lado, é mais resistente porque prefere águas um pouco mais quentes. Consegue reproduzir-se facilmente se o mar estiver a 7ºC. É por isso que, na verdade, a população do nosso bacalhau até tem melhorado com o aquecimento global, desvenda Maria Fossheim: “As alterações climáticas têm ajudado este peixe a desenvolver-se e a espalhar-se. O mar de Barents está a aquecer e, à conta disso, o bacalhau tem ganho capacidade para viver em áreas maiores nos últimos 10 anos. É um vencedor das alterações climáticas. Os dados que temos dos últimos 60 anos mostram que, nos anos mais quentes, o bacalhau reproduz-se melhor”.
Em 2013 atingiu-se o recorde. Nesse ano, as estimativas apontaram para uma população de bacalhau de um milhão de toneladas. “Desde a II Guerra Mundial que não se via nada assim”, acrescenta a cientista norueguesa. “Agora está a diminuir um pouco, mas continua extraordinariamente grande. Está muito acima da média calculada para as últimas décadas. Não sabemos que impacto pode ter em 50 anos, mas por enquanto o bacalhau está a ganhar com o aquecimento global“, explica Maria Fossheim.
O Observador viajou para a Noruega a convite do Conselho Norueguês de Pescas.