Todas as gerações têm o seu ódio de estimação musical – para os nascidos na década de 70 eram os Abba, não porque fossem maus, até porque enquanto somos miúdos vivemos na dicotomia gosto / não gosto, mas porque era deles a música que os nossos pais ouviam quando iam jantar a casa de amigos (ou eles vinham a nossa casa), quando deixavam de se comportar como educadores e se tornavam pessoas, vestiam roupas esquisitas, bebiam um pouquinho a mais e dançavam. Um horror.
Não eram só os Abba, claro – eu ganhei uma repulsa em relação aos Pink Foyd pelo simples facto de, em garoto, ter sempre de gramar com um adulto a colocar Pink Floyd a tocar em todas as ocasiões em que ia a casa de um amigo; parecia que tudo o que os velhos (que era como víamos as pessoas de mais de 35 anos) ouviam era Abba e Pink Floyd e por norma Pink Floyd era ouvido por aquele tipo de pessoa que passava mais tempo a falar das colunas e dos cabos da aparelhagem do que da música. Nenhum garoto aguenta.
O que causa repulsa aos garotos de hoje em dia não sei (por mera sorte, o meu puto aprecia alguma música que eu ouço e vice-versa), mas sei o que os miúdos nascidos no final da década de 50, início da década de 60 odiavam e porquê: os Carpenters. Porque era (um argumento que por esta altura talvez já não vos surpreenda) a música que os pais ouviam. De alguma forma, isso desceu uma geração abaixo, pelo que quando comecei a colecionar discos e a ouvir música com mais atenção, depressa me apercebi que o duo – criado por Karen Carpenter (1950-1983) e pelo seu irmão Richard Carpenter – fazia parte da lista de bandas a não ouvir em nenhuma circunstância, a lista de bandas cujos discos deviam ser esquecidos a um canto, no caixote da música para velhos.
Se me é impossível recordar com exatidão quando cheguei a esta conclusão, é-me muito simples quando resolvi dar uma chance aos Carpenters: foi quando, no ano de 1994, uma série de bandas indie resolveram contribuir para If I Were a Carpenter, disco de versões do duo e, subsequentemente, homenagem aos mesmos. Entre as faixas estava “Superstar”, uma versão dos Sonic Youth para a canção com o mesmo nome – que mudou por completo a forma como olhava para eles.
Um vasto conhecimento das complexidades da matemática permite-me afirmar que 1994 foi há 29 anos – e que a morte de Karen Carpenter, a 4 de fevereiro de 1983, ocorreu há 40 anos, pela mais trágica das razões: anorexia nervosa, entre outras complicações alimentares, desenvolvida em reação ao excesso de exposição que adveio com o estatuto de estrela pop, um estatuto que não era propriamente esperado, já que Karen inicialmente era para ser a baterista dos Carpenters, tendo acabado por ser a figura central à conta da sua voz, uma voz tão doce e cristalina que precisamos de inventar uma palavra composta em alemão para a qualificar.
À distância de todo este tempo entende-se o êxito dos Carpenters: a música que eles faziam era uma espécie de pop suave que por vezes parecia o equivalente musical a gel de banho – o que não costuma ser apelativo numa idade em que apreciamos música feita de bigornas, martelos e lixa: os adolescentes tendem a desmerecer as baladas sentimentais, pelo menos aquelas que parecem decorrer num universo vagamente burguês e pouco desesperado (o que não deixa de ser irónico, tendo em conta que Karen vivia no mais absoluto desespero e os seus problemas são comuns entre adolescentes).
Nestas coisas, as palavras funcionam sempre pior do que exemplos concretos. E que melhor exemplo do que “(They long to be) Close to you”: uma canção que podia ter sido escrito por Burt Bacharach e que, como muita da pop adulta dos anos 70, partia de uma progressão melódica simples ao piano, sobre a qual pairava a voz acetinada de Karen, ao redor da qual cirandavam cordas e sopros.
[“They Long To Be (Closse To You)”:]
Essa espécie de luxo tépido dos arranjos, que hoje colocaria as canções dos Carpenters nas frequências emulsionadas das Smooth FMs deste mundo, era aplicado à maior parte das canções da banda, mesmo quando – como em “Top of the world” – se insurgiam por caminhos mais próximos da country, pelo menos à conta da slide-guitar, já que as teclas estão mais próximas da soul.
Foi, aliás, quando comecei a descobrir a música soul que me apercebi de algum erro no meu julgamento dos Carpenters: a música deles era similar ao tipo de baladas que a Motown escrevia, partilhavam a mesma escrita clássica, os arranjos elaborados, o cuidado com a criação de melodias, com os coros, as temáticas amorosas, pese embora os Carpenters não colocassem o mesmo peso na secção rítmica e fossem mais suaves (os Carpenters eram o algodão doce da pop).
Nascida no Connecticut em 1950, Karen aprendeu muito cedo a dizer “Pára”, expressão que usava com o seu irmão Richard, que nunca deixava o piano. Em breve deixaria de o dizer, acabaria por partilhar com ele o gosto pela música – que era uma das muitas paixões artísticas de Karen, incluindo o ballet. Este parágrafo, já agora, é quase uma citação ipsis verbis da página da Wikipedia dos Carpenters, razão pela qual é o mais aborrecido de ler, mas – hey – um texto também precisa de factos.
Quando a família Carpenter se mudou para Los Angeles, já os irmãos haviam desenvolvido um laço especial à conta da música, sendo que Richard se havia tornado um pequeno prodígio ao piano, aprendendo de ouvido a tocar todo o tipo de canções; entretanto, Karen aprendera bateria e ambos partilhavam o gosto por canções em que houvesse polifonia ou, pelo menos, duas vezes em tandem – talvez isto explique o prazer que tinham em ouvir os Beatles, os Mamas & The Papas, as Supremes e os Beach Boys.
Na coleção de discos dos manos havia lugar para as canções que Burt Bacharach e Hal David compunham e que eram êxito na voz de outros (a este propósito, recomenda-se Motown Salutes Bacharach), mas isto é óbvio só de ouvir as melodias e arranjos dos Carpenters. (Ela também era uma grande fã de jazz.)
Como outros miúdos interessados em música na época, os Carpenters tiveram as suas bandas de liceu, que foram acabando e dando lugar a outras bandas, sucessivamente mais sérias nas suas tentativas de conseguirem um contrato musical – e algures no caminho a voz de Karen, que não costumava cantar, começou a ser notada. Quando finalmente editaram Offering, o primeiro disco, de 1969, já Karen era a principal voz da banda (mantendo-se ainda como baterista), com o irmão a ocupar o lugar de principal compositor e, ocasionalmente, voz principal.
Ao contrário da maior parte das bandas da época, os Carpenters não tinham nada a ver com guitarradas ou rock psicadélico – embora ocasionalmente, como na ótima “Goodbye to Love” (do álbum A Song For You), haja algum estrebuchar de seis cordas a chispar. Mas o universo musical dos irmãos estava desde cedo nas melodias doces e etéreas, que contrastavam com o pesadelo que Karen foi vivendo à medida que a popularidade da banda aumentou.
[“Goodbye To Love”:]
Se o som dos Carpenters é tão suave que parece feito de nuvens, Karen nunca conseguia deixar a Terra – nem quando ia dormir. As suas insónias constantes levaram-na a abusar de medicamentos para dormir – os Qualuudes, que estavam por todo o lado nos anos 70 e que Scorsese celebrizou numa icónica cena de “O Lobo de Wall Street”. É possível que, em parte, tal se tenha devido a uma mudança em palco: como Karen era baixa e estava atrás da bateria, o público não a via; com o tempo ela passou exclusivamente para a frente do palco, o que trouxe maior exposição e ainda mais concertos (cujo número aumentou a partir do momento em que as pessoas conseguiam ver a pessoa que estava a cantar).
O lado solar da pop é saber que alguém algures sorri ou se sente menos só ao ouvir a nossa canção; o lado lunar é que, no fundo, ninguém quer saber como o autor, o guitarrista ou a vocalista realmente estão, é preciso que os discos continuem a sair, que as digressões se sucedam, que se esteja em palco no próximo concerto, independentemente do estado dos músicos. Isto enquanto se está por cima – quando se está por baixo ou surge uma nova moda, aí ninguém quer saber.
A suavidade das melodias dos Carpenters escondia as perturbações de Karen: ao contrário do que era comum nas feministas da época, ela queria desesperadamente casar, ter filhos e ser dona de casa, mas não imaginava como seria possível fazê-lo levando a vida de uma música; desde pequena que o seu peso a preocupara e quando, mais tarde, já estrela, viu uma foto sua e não tolerou o que viu, entrou por um caminho sem retorno de dietas sucessivas, cada vez mais agressivas.
Não eram só as dietas – Karen começou a misturar uma série de medicamentos com vista a acelerar o seu metabolismo, quando o sensato teria sido parar com o seu estilo de vida e ser convenientemente tratada. Mas é aqui que a vida das estrelas pop é diferente da nossa: havia compromissos, gravações marcadas, canções por compor, digressões. Karen nunca parou verdadeiramente – apenas seguiu de médico em médico, de medicamento em medicamento, acumulando medicação enquanto procurava simultaneamente combater a anorexia e permanecer o mais magra que conseguisse.
Poucos dias antes de morrer, Karen acabara de confirmar nova digressão; o dia da sua morte era o dia em que ia assinar os papéis do seu divórcio – noutra época, na nossa época, talvez houvesse salvação para Karen, talvez fosse possível parar, divorciar-se, ir para uma clínica, mas nessa altura não se falava muito em saúde mental, as pessoas simplesmente seguiam com a sua vida e sofriam em silêncio.
A voz mais doce pode esconder a maior das dores. Nunca saberemos em específico o que tanto magoava Karen – sabemos apenas que ela escolheu transformar o seu pesar em beleza.