Carlos Coelho tinha 33 anos quando iniciou as funções no Parlamento Europeu para substituir o madeirense Virgílio Pereira, em janeiro de 1994. Depois disso, não voltou a falhar uma legislatura. Nas últimas Europeias ficou à porta (era 7º na lista e o PSD só elegeu seis), mas a profecia que o Observador ouviu de um companheiro seu de partido logo nessa noite eleitoral cumpriu-se: “O Coelho ainda vai voltar antes do fim da legislatura. Ele volta sempre.” E voltou. O próprio tinha essa fezada: nunca vendeu a casa que tinha em Bruxelas. Não se fazem mudanças de onde nunca se saiu: “Tenho lá tudo. Roupa, documentos.”
Após quatro anos fora do Parlamento Europeu, o Observador esteve no regresso do antigo líder da JSD, que aconteceu — após a renúncia de Álvaro Amaro provocada por uma condenação judicial — numa semana de plenário em Estrasburgo. “O regresso é sempre bonito porque encontramos muitas pessoas que já conhecemos, que vêm manifestar o seu regozijo por nos reencontrarmos e estar aqui. Há calor humano“, conta.
Quando entrou pela primeira vez no Parlamento tudo era bem diferente: a língua oficial era o francês, não havia eurocéticos e o hemiciclo era quase “uma assembleia de séniores, uma espécie de espaço de reformados da Europa, para onde vinham, por exemplo, antigos ministros dos Negócios Estrangeiros”. Mais um detalhe: na primeira legislatura, o PSD nem sequer era ainda do PPE, era do Grupo Liberal, Democrático e Reformista.
Carlos Coelho, o senhor Schengen
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Carlos Coelho destacou-se no Parlamento Europeu por ser uma espécie de senhor Schengen. Isto porque grande parte da produção legislativa dos últimos 20 anos sobre o espaço Schengen partiu de relatórios do eurodeputado do PSD.
Nesse particular, o eurodeputado orgulha-se de ter ter “obrigado a que, nas missões do Frontex, as exigências do direito humanitário internacional estivessem contidas.” E recorda que uma das situações que mais o chocou foi um “diretor do Frontex, que há muito que não está em funções, que disse: ‘Nós não somos uma agência humanitária, somos uma força de polícia’, para justificar que não tinham obrigação de salvar vidas, mas apenas tinham era que identificar criminosos.”
Carlos Coelho trabalhou no Parlamento Europeu para que se mudasse este tipo de abordagem. Para o eurodeputado nem seria preciso colocar na lei como era imperioso salvar vidas, uma vez que “há um direito humanitário marítimo que diz que qualquer navio no alto mar se vê uma embarcação em perigo, a primeira preocupação é salvar as vidas humanas”. Ainda assim, “aparentemente o quadro legal não os obrigava”, mas como foram levantadas dúvidas “pusemos na lei“. E agora está lá: “A primeira preocupação era salvar vidas.”
O eurodeputado regojiza-se ainda com a “grande revisão” do Sistema de Informações de Schengen (SIS): “Este sistema do SIS é um sistema muito bom, muito elogiado pelas polícias,e que reforça a nossa segurança. Porque, se há uma sinalização de perigo na Alemanha e a pessoa está em Portugal, é bom que nós saibamos.” E acrescenta, lembrando os efeitos nocivos antes deste sistema ser criado: “Alguns dos atentados terroristas na Europa aconteceram porque essas sinalizações não eram partilhadas. Portanto, havia pessoas que dirigiram a sua atividade terrorista e dirigiram atentados porque a Bélgica não fazia a mínima ideia que a pessoa estava identificada pela polícia francesa.”
A revisão do SIS é agora “um instrumento que é a maior base de dados pessoais da Europa, que tem dezenas de milhões de dados, perto de mais de um milhão relativo a pessoas” que pode dar as seguintes informações quando alguém entra no espaço europeu: “Podem ser pessoas com ordem de detenção, com uma ordem de não entrada no espaço Schengen ou instrução policial para sujeitar a pessoa a vigilância discreta.”
Voltando a 2023, o gabinete, que era o de Álvaro Amaro, ainda está desprovido de sinais de Coelho, mas dentro de um dos armários está um livro que marca em parte a vida do social-democrata nos anos que esteve longe de Estrasburgo. Trata-se de uma obra com um conjunto de textos da associação que o eurodeputado lidera (a Nossa Europa) e que tem textos de pessoas de diferentes quadrantes políticos, de António José Seguro a Marisa Matias. O prefácio é da presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola.
Falta menos de um ano para terminar o mandato, mas Carlos Coelho não tem pudor em dizer que está disponível para integrar a próxima lista e ficar mais cinco anos: “É esta a minha vocação”. Sobre o que fará até ao fim do atual mandato, lembra que está condicionado: “Já não venho a tempo de apanhar comboios que estão em circulação, porque têm os seus maquinistas. São deputados que têm aqueles relatórios e que vão continuar com eles até ao fim”. Fará, no entanto, parte da comissão de Controlo Orçamental e está empenhado em realizar ações para baixar a abstenção nas próximas Europeias — aí através da Nossa Europa.
Carlos Coelho foi diretor de campanha nas eleições internas que elegeram Luís Montenegro e continua a ser o reitor da Universidade de Verão do PSD e da Universidade da Europa. Deputado europeu há 30 anos, não precisa de tempo para se sentir ambientado. É tempo, por isso, de responder às perguntas do Observador sobre o próximo desafio que aí vem: as eleições europeias.
“Não vejo porque o cabeça de lista do PSD não possa ser um independente”
Esteve sempre disponível nos outros mandatos para integrar a lista. Continua disponível?
Gosto da atividade na Europa. O Parlamento Europeu é o espaço onde a grande maioria das atividades legislativas que interessam a Portugal correm. Muitas vezes não temos a perceção disso, até porque as leis que são transpostas para a legislação nacional na Assembleia da República aparecem como leis nacionais, mas em bom rigor são adaptações de diretivas europeias. Há juristas que consideram que 80% da produção legislativa hoje em Portugal tem origem nas instituições comunitárias. Portanto, este é um lugar nevrálgico, que corresponde a uma vocação que tenho há muito tempo, quer como deputado europeu, quer como presidente de uma associação que tem pessoas de orientações políticas muito diferentes que é a nossa Europa.
E há reais possibilidades de o PSD vencer as próximas eleições europeias?
O PSD tem todas as possibilidades de ganhar as eleições europeias e eu acho que isso vai ser muito importante para a dinâmica do processo político em Portugal.
E há nomes disponíveis para isso. Há quadros do partido para serem cabeças de lista?
Há seguramente muita gente que tem disponibilidade para isso, mas isso é uma escolha do presidente do partido e estamos suficientemente longe para não presumir que a decisão esteja tomada. Possivelmente não estará, mas caberá ao presidente do partido encontrar uma figura, não se sabe se homem se mulher; não se sabe se militante do PSD ou cidadão independente.
Um partido como o PSD poderia ter um independente?
Não vejo porque não.
E colocando a questão ao contrário: uma derrota nas europeias colocaria em causa uma vitória nas legislativas seguintes?
Já tivemos no PSD situações em que o resultado das Europeias não teve depois repercussão no resultado das legislativas. O que faz mais sentido no processo político em Portugal, até com a erosão que está a afetar o Governo e o Partido Socialista, é que o descontentamento relativamente à gestão das contas públicas nacionais já tenha repercussão no Parlamento Europeu, mas pode haver um cenário em que as pessoas só nas legislativas é que expressem de uma forma mais clara a sua vontade alternativa. O eleitorado decidirá.
Fala-se muito em Portugal de António Costa poder vir a ocupar um alto cargo europeu. Essa hipótese é mesmo real?
A hipótese existe. Uma coisa é guerra política, outra é negar as evidências. O António Costa tem prestígio europeu, é primeiro-ministro, isso tem muito peso na Europa, e é, no conjunto dos primeiros-ministros socialistas, talvez o primeiro-ministro com mais espaço de manobra. Não é do maior país, o chefe do Governo mais poderoso é claramente o chanceler alemão, mas o prestígio que António Costa tem é, de facto, muito grande. E admito que ele tenha real oportunidade de desenvolver um lugar europeu. Agora, para ele ocupar um alto cargo europeu, tem de deixar de ser primeiro-ministro em Portugal. E isso pode precipitar o calendário político em Portugal, até porque o Presidente da República quando deu posse a este Governo disse claramente que esta não era apenas uma vitória do PS, era uma vitória pessoal de António Costa e que se António Costa por qualquer razão tivesse de sair a meio, ele convocaria eleições. Acho que é isso que está a envolver um bocadinho mais o colete de forças em que a decisão de António Costa se vai processar. Agora, todos os cenários são possíveis.
Pode haver outra intenção nesta pré-candidatura?
Há quem me diga que António Costa já decidiu que não vem para um lugar europeu e que vai continuar até ao fim como primeiro-ministro de Portugal. Se assim for, de facto, estas versões concorrem para a narrativa de valorizar a decisão de António Costa de continuar como primeiro-ministro. E dizer: estão a ver este até podia ir para Bruxelas e está aqui a exercer as suas responsabilidades. Se este for um cenário completamente ultrapassado, o facto dele ser alimentado por fontes socialistas, pode significar apenas enriquecer uma narrativa de vitimização, de dizer que a pessoa está agarrada pelo sentido de responsabilidade nacional.
O que vai fazer neste último ano aqui?
Terei de ver as oportunidades que vou ter, os relatórios que existem, aqueles a que posso dar alguma mais-valia.
Vai ficar em alguma comissão?
Ainda estou a ver o quadro final, mas vou ficar em comissões. E vou ficar seguramente com o Controlo Orçamental, que terá relevância para a atribuição dos PRR, dos fundos, etc. Agora: para lá disso, do trabalho legislativo que, como lhe expliquei, vale o que vale nesta fase final. Se eu estou preocupado, por exemplo, com o cenário de uma má taxa de afluência às urnas nas europeias do próximo ano, tenho obrigação enquanto eleito de colaborar para combater isso. E como? Com mais informação sobre Europa, com mais pedagogia sobre Europa, com mais visibilidade sobre aquilo que a Europa representa e fazer isso de uma forma mais alargada. Isto é: com todos aqueles que, acreditando na democracia, consideram que vale a pena.
Vai ser um eurodeputado sem pasta?
Não porque a pasta que tenho é muito importante. Sou deputado europeu, mas também sou presidente da Nossa Europa. E tenho um conjunto de pessoas que estão emanadas das mesmas preocupações, como o Luís Pedro Mota Soares, o António José Seguro, a Marisa Matias, entre muitos outros. E eu acredito que há um quadro alargado de opiniões políticas e não políticas que podem ajudar a desenvolver iniciativas nesta frente e, portanto, eu vou fazê-lo com entusiasmo.
Há um perigo dos extremos crescerem no hemiciclo ou o centro vai continuar a conseguir manter o regular funcionamento do Parlamento?
Ninguém pode responder de uma forma clara a isso porque não me parece que o cenário político esteja suficientemente estabilizado. Para nós, com um ano de antecedência, presumirmos como é que os eleitorados em cada Estado-membro vão funcionar porque há famílias europeias, mas a realidade política continua a ser uma realidade nacional. Portanto, depende do mood político em cada país o resultado que as eleições vão ter. Não vão ser eleições europeias no sentido em que há uma vaga europeia. Portanto, depende de cada país. Em segundo lugar, depende muito de todos os incidentes que possam existir até lá e da exploração mediática que deles se possa fazer e, em terceiro lugar, depende de circunstâncias que são perfeitamente avulsas.
E que circunstâncias são essas?
Por exemplo, em Portugal as eleições são no dia 9 de junho na véspera de um feriado nacional. Ou seja: vamos ter eleições europeias na véspera de um fim-de-semana prolongado. É expectável que a abstenção suba. Quem vai beneficiar mais com a abstenção? São os partidos mais pequenos e mais radicais ou os partidos maiores e do sistema? Eu arriscaria dizer que são os partidos maiores que podem ser mais prejudicados. Isso pode permitir uma conversão de votos em mandatos, diferente. Ou seja: o mesmo número de votantes no PCP numa eleição mais participada podia levar à eleição de menos deputados nas legislativas. O mesmo número de votantes, numas eleições menos participadas podem levar à conversão de votos em mandatos de uma forma mais generosa. E, portanto, podemos estar perante um cenário de pulverização de forças políticas no Parlamento Europeu, mas a um ano de distância é futurologia. O que é verdade é que nas últimas eleições nós assistimos a um aumento gradual das forças mais radicais, o que no Parlamento Europeu significa também forças anti-europeias. E isso cria aqui uma dinâmica mais complicada.
A chegada de um partido como o Chega pode afetar a harmonia entre portugueses e eurodeputados portugueses?
Para ser sincero, depende muito das pessoas.
Só o facto de ser daquela área política não é fator de exclusão?
Não. O facto de ser daquela área política traz um problema, mas isso depende um bocado do Chega. Se o Chega vem com uma postura muito alinhada com a extrema-direita europeia, que tem claramente um discurso anti-europeia de Portugal é estratégica. Se partidos radicais, vêm demasiado alinhados com uma postura anti-europeia, nós temos 21 deputados ao Parlamento Europeu, não temos 90 como os alemães. 21 portugueses aqui, é eleger 21 embaixadores do interesse nacional em Bruxelas e Estrasburgo. Se algum destes se juntam a famílias anti-europeias, nós perdemos embaixadores nesta causa. Portugal é dos países europeus mais europeísta. Por isso não sei qual é a vantagem nem o espaço político para um partido que quer crescer, de se colocar com um discurso contra a Europa, eurocético.
O jornalista do Observador viajou a Estrasburgo a convite do Parlamento Europeu