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O site da Inapa descreve a empresa “como um líder europeu com vendas anuais de mais de 969 milhões de euros e uma forte posição em todos os mercados que opera”. Mas era um líder com pés de barro, com uma expansão internacional financiada com recurso excessivo a dívida e sem investidores estratégicos focados no setor.
Para a banca, não há condições para continuar a financiar. Para o Estado, o maior acionista, a empresa distribuidora de papel “não tem uma atividade estratégica” para Portugal e os dois pedidos de apoio financeiro não demonstraram ter viabilidade económica e foram recusados. E assim a Inapa, uma empresa portuguesa histórica, está perto da falência.
Neste domingo, uma hora e meia depois de Joe Biden anunciar que saía da corrida às eleições dos EUA, a Inapa revela ao mercado uma “carência de tesouraria de curto prazo” na operação alemã, situação que a obrigará “nos próximos dias” a abrir um processo de insolvência. O anúncio, acompanhado da informação de que o presidente executivo e vários membros da administração apresentaram a renúncia aos cargos, levou nesta segunda-feira a CMVM (Comissão do Mercado de Valores Mobiliários) a dar ordem de suspensão da negociação das ações na bolsa de Lisboa.
A empresa garante ter feito “todos os esforços” para evitar este desfecho – esforços feitos junto de credores e, também, acionistas onde se destaca a entidade estatal Parpública. “Não se encontrou solução de financiamento” para a subsidiária alemã, que se apresenta à falência esta segunda-feira, arrastando consigo toda a empresa, já que também a Inapa IPG (em Portugal) irá, em breve, ser apresentada à “insolvência nos termos da lei portuguesa”.
Com sede em Portugal, a holding do grupo vive dos fees (comissões) pagos pelas suas participadas internacionais. E a queda da subsidiária alemã, que representa 60% das receitas, arrasta todo o grupo. A dispersão geográfica da Inapa, com presença em 10 mercados, a maioria na Europa, pode facilitar a venda de ativos fora de Portugal e dificultar o recurso a um PER (Processo Especial de Revitalização) no quadro jurídico nacional, mas essa possibilidade ainda não terá sido afastada.
Enquanto principal acionista, a Parpública pode perder o valor da participação que estava registada em cerca de nove milhões de euros até março. A holding do Estado reconheceu no passado perdas (imparidades) de 10 milhões de euros nesta participada.
Os esforços para evitar o pior
Apesar de ser uma multinacional, ou uma “multinacional falhada” como a descreveu um dos testemunhos ouvidos pelo Observador, a Inapa não é, no entender do governo português, uma empresa estratégica para a economia portuguesa. Segundo o relatório e contas, o mercado nacional responde por 4% das receitas e emprega menos de 200 pessoas num quadro de colaboradores global de quase 1.500. E no rescaldo de uma polémica nacionalização e privatização — a da Efacec feita pelos executivos socialistas — o atual Governo deixa cair a Inapa, escudado em diversos pareceres.
Entre os esforços para salvar a empresa terá estado um pedido de injeção de emergência de 12 milhões de euros na Inapa, cerca de oito milhões dos quais caberiam à Parpública e o restante aos outros acionistas. Segundo fonte da empresa, o que aqui estava em causa era uma solução de empréstimo de curto prazo – cerca de três meses – que a Inapa prometia ressarcir ainda em 2024, beneficiando da sazonalidade que tipicamente existe no mercado alemão e que levaria, depois do verão, à subida da faturação.
Enquanto isso, a administração poderia ser mandatada para encontrar um comprador para a empresa. E, segundo a informação recolhida pelo Observador, já tinha havido manifestações de interesse de pelo menos um grupo asiático que opera no mesmo setor e que tinha sinalizado que poderia querer comprar a Inapa.
Para que este cenário fosse viável, porém, seria necessário haver uma injeção de liquidez porque, segundo a lei alemã, as empresas têm de ter sempre em tesouraria o equivalente a pelo menos 30 dias de custos – caso contrário, os próprios administradores podem ser postos em causa e sofrer penalizações individuais.
Esse pedido, dos 12 milhões, era independente – e não cumulativo – de outro: um plano alternativo que já estava a ser preparado há mais tempo e que envolvia a entrega de 15 milhões de suprimentos para fazer uma reestruturação da empresa. Esse plano envolveria um reconhecimento de perdas por parte da banca e, segundo fonte da empresa, os bancos em causa já teriam dado o seu “ok” a este plano. Contactados, os bancos não quiseram fazer comentários sobre esta matéria.
Atentos os impactos imediatos que a apresentação à insolvência da Inapa Deutschland terá na Inapa IPG, o Conselho de Administração da Inapa IPG reuniu e analisou a sua situação financeira, tendo concluído pela consequente e iminente insolvência da Inapa IPG, pelo que deliberou também apresentar a Inapa IPG à insolvência nos termos da lei portuguesa, o que será formalizado nos próximos dias”, afirmou a Inapa.
Como o Estado se tornou acionista da Inapa e nunca conseguiu sair
A Inapa foi fundada nos anos de 1960 por um grupo de empresários ligados à família Pessanha que foi protagonista do setor do papel em Portugal. Além da Inapa, que tinha uma fábrica de papel em Setúbal, foi criada outra empresa industrial de transformação de celulose que viria a ser a Portucel (hoje Navigator). As duas chegaram a estar ligadas por pipeline e havia investidores comuns.
Em vésperas da revolução, os investidores industriais e financeiros tinham planos grandiosos para realizar uma fusão envolvendo as unidades em Angola, com o objetivo de criar um gigante internacional da pasta de eucalipto. Tudo mudou com o 25 de Abril e as nacionalizações apanharam a Portucel que, por sua vez, era acionista da Inapa. Foi esta cadeia de participações que levou o Estado ao capital da Inapa. Isto apesar de a empresa ter mantido acionistas privados com a gestão na família Pessanha.
Quando arranca, no final do século passado, o processo de privatização do então grupo Portucel Soporcel, a participação na Inapa já tinha sido transferida para a Parpública. E já então a empresa, gerida à data por Vasco Pessanha (já falecido), filho do fundador, tinha feito uma viragem estratégica determinante para o futuro. Sem músculo financeiro para se manter na fileira industrial e entrar na corrida pelas empresas de pasta e papel, vendeu a fábrica de Setúbal à então Soporcel (entretanto absorvida pela Portucel). O grupo foi vendido à Semapa de Pedro Queiroz Pereira que adotou o nome da marca criada para o papel da Inapa, Navigator.
E a Inapa virou-se para a distribuição. Em 1998 iniciou a internacionalização com a compra de uma das maiores distribuidoras de papel em França, a Mafipa, com presença também na Bélgica, Luxemburgo e Suíça. E poucos meses depois de sair da área industrial, em 2000, compra uma das principais empresas alemãs, Papier Union, e torna-se num dos grandes grupos europeus da distribuição, posição que foi consolidada nos anos seguintes com outras compras — a mais relevante foi a Papyrus em 2018 por um valor não revelado, mas cujo financiamento foi feito através de uma emissão obrigacionista que daria aos acionistas da adquirida (OptiGroup) a possibilidade de entrar no capital da Inapa (o que não aconteceu). Entretanto, a Papier Union e a Papyrus deram origem, após a fusão, à Inapa Deutschland, que entrou em insolvência agora.
O Estado, que através da Parpública é o maior acionista, tentou ao longo das últimas duas décadas vender a posição na Inapa. Sem sucesso. Antes pelo contrário, até foi forçado a aumentar a sua posição de 33% para os atuais 45%.
Em 2014 a Caixa Geral de Depósitos teve de converter em ações as obrigações subscritas três anos antes (em 2011) depois de a Inapa não ter pagado dividendos durante dois anos. Os direitos de voto do banco público tiveram de ser limitados a 24,9% para evitar o lançamento de uma OPA (Oferta Pública de Aquisição) e só no quadro do processo de reestruturação e já no início de 2019 é que a Caixa se livrou desta participação, vendendo-a por 15,8 milhões de euros à Direção-Geral do Tesouro. Dias depois, a DGTF passa estas ações para a Parpública que, assim, vê reforçada a sua posição.
Nos anos 2020 e 2021 o mercado do papel foi um dos mais atingidos pela pandemia, pelo que não havia condições para atrair investidores. E a venda de uma participação numa empresa cotada em bolsa tem características particulares que limitam a sua execução, como a obrigação de lançar ofertas públicas a partir de um certo patamar de capital.
BCP foi maior acionista privado. Deixou de ser em 2023, mas será dos maiores credores
Os outros grandes acionistas foram bancos que entraram no capital porque eram credores, tendo aliás convertido créditos em capital, e a empresa de meios Nova Expressão, do empresário Pedro Baltazar, que tem 10,85% do capital. Contactado pelo Observador, Pedro Baltazar não quis prestar declarações.
O BCP foi durante vários anos — pelo menos entre 2007 e 2023 — o maior acionista privado da Inapa, com mais de 20% do capital, fruto da relação de proximidade entre o fundador do banco, Jardim Gonçalves, e o gestor histórico Vasco Pessanha que saiu em 2007.
Em sentido inverso, a Inapa chegou a ser acionista do BCP e o banco foi um grande parceiro financeiro da empresa. Chegou a ter 40,4% do capital em ações preferenciais (também por via das obrigações convertíveis) e 31% dos direitos de voto, mas foi reduzindo a sua participação de 2022 e no final do ano passado deixou de ter participação qualificada (5%). Segundo a informação recolhida pelo Observador, o BCP hoje não tem qualquer exposição acionista. Já sobre a exposição creditícia, ou sobre o grau de cobertura por provisões, fonte oficial do BCP não quis fazer comentários.
No entanto, o banco liderado por Miguel Maya ainda será um dos maiores credores da Inapa. Em 2022, estavam registados créditos de 86 milhões de euros. Antes do anúncio da potencial insolvência, o banco estava a tentar vender este crédito.
Recentemente foi noticiado pelo jornal Eco que o BCP tinha posto à venda essa exposição (ou quase toda) num pacote de dívidas problemáticas em que os créditos à Inapa foram aglutinados com as dívidas da promotora do Autódromo do Algarve (Parkalgar). Não foi, porém, a primeira vez que o BCP tentou desfazer-se dos créditos da Inapa – e a insolvência da empresa, agora decidida, poderá colocar o possível negócio em causa.
Apesar de ainda ser acionista com 6,5%, a exposição de crédito do Novo Banco será inferior à do BCP e data do tempo do BES.
No final do ano passado, a Inapa tinha 273,7 milhões de euros passivo financeiro, dos quais 176 milhões de euros de crédito bancário. Há ainda empréstimos obrigacionistas cujo reembolso não vai ser cumprido, pelo menos no prazo legal.
Do BCP têm saído também gestores executivos que assumiram a presidência da empresa, como José Félix Morgado, que esteve no cargo entre 2007 e 2015, e o CEO que agora se demitiu. Frederico Lupi foi diretor no BCP até 2015, ano em que entrou para a administração da Inapa como gestor com a área operacional, tendo sido nomeado presidente executivo no ano passado. Entre 2015 e 2023, a Inapa foi dirigida por Diogo Rezende, um quadro que veio da Ford Motor Company.
Uma “fuga para frente” que fez a Inapa aproximar-se do penhasco
Frederico Lupi foi nomeado presidente da comissão executiva da Inapa em 2023, depois da saída de Diogo Rezende, do qual era braço-direito. Rezende tinha ido para a Inapa em 2015 substituir José Félix Morgado (que saiu, nessa altura, para o Montepio), e em maio de 2022 foi reconduzido pelos acionistas para ficar até 2024 – mas acabou por sair em junho de 2023.
A saída de Diogo Rezende aconteceu pouco depois de o presidente da comissão executiva ter sido questionado, em plena assembleia-geral de acionistas, por Pedro Baltazar (do grupo Nova Expressão), se a aposta na Papyrus tinha sido “a decisão acertada”. Diogo Rezende respondeu “que sim e que a aquisição estava a demonstrar o seu potencial de criação de valor, apesar dos efeitos negativos da pandemia de Covid-19”.
Poucos dias depois, o gestor saiu, invocando “motivos de ordem pessoal”.
Quando a aquisição na Alemanha foi feita, em 2018, a Inapa tinha acabado de ter os prejuízos mais elevados dos seis anos anteriores (3,6 milhões), um resultado na altura justificado com uma “quebra do mercado, a mais forte dos últimos 10 anos”, disse Diogo Rezende numa entrevista ao Jornal de Negócios. Optou-se, assim, por uma fuga para a frente: a compra de uma grande empresa alemã do setor, a tal Papyrus Deutschland.
Seria, garantia Diogo Rezende, “uma operação de enormíssimo impacto porque a Papyrus Deutschland tem uma faturação de 550 milhões” e previa-se que, com esse acrescento, o negócio da Inapa iria crescer para até aos 1.400 milhões. O objetivo não se concretizou: em 2023, a faturação da Inapa caiu para menos de mil milhões de euros.
Na falta de capitais robustos, esse investimento foi feito de forma muito alavancada em dívida, o que condenou a Inapa a passar os anos seguintes “no fio da navalha”, diz uma fonte conhecedora do setor, sempre numa situação de aperto devido às margens reduzidas de um negócio que, quando uma empresa está muito endividada, facilmente são “comidas” pelos custos financeiros. Já antes, os investimentos em França também ajudaram a desequilibrar a estrutura de capital. A empresa precisava de capital, mas não tinha acionistas com vontade de os colocar.
Outra das fontes ouvidas pelo Observador assinala que a distribuição de papel é um negócio muito exigente e muito exposto aos custos de transporte e combustíveis. No que toca à matéria prima é granular, mas é extremamente concentrado na transformação e novamente disperso na distribuição que é o segmento da Inapa. Quem consegue maximizar os ganhos é a poderosa indústria das celuloses.
A Inapa estava num dos elos mais frágeis da cadeia de valor e essa fragilidade começou a ser cada vez mais evidente mesmo para os seus principais financiadores. Há muito que era vista pela banca como uma empresa pouco sólida, pelo facto de ter falhado as metas de todos os planos estratégicos que foi apresentando. A grande dispersão geográfica terá tornado mais complexa a real perceção da situação do grupo. Por outro lado, permitiu à Inapa ter acesso a muitos financiadores bancários nesses mercados, o que torna a sua dívida (apesar de grande) muito dispersa e com exposição relativamente limitada para cada credor.
Governo diz que só soube de “situação crítica” há menos de duas semanas
O Governo garante que só soube de todos estes pedidos – e só teve conhecimento da “situação crítica” em que estava a Inapa – depois de, a 11 de julho, ter sabido que a empresa tinha avisado o mercado que iria ter de adiar (em 10 dias úteis) o reembolso de obrigações emitidas precisamente para pagar o investimento na Alemanha, feito em 2018 e que, à falta de capitais robustos, foi feito sobretudo com emissão de dívida.
Fonte da Inapa confirmou ao Observador que a administração nunca reuniu com o Governo, que apenas quis ter como interlocutor a Parpública. E foi depois desse anúncio do adiamento do pagamento das obrigações que a CMVM ordenou a suspensão da negociação das ações, que “por sua iniciativa” o Governo chamou a Parpública para uma reunião e aí foi informado de que a Inapa “havia solicitado uma injeção de 12 milhões de euros no imediato”.
“Foram solicitados pareceres à própria holding do Estado, à Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF) e à Unidade Técnica de Acompanhamento e Monitorização do Setor Público Empresarial (UTAM)” e as três entidades concluíram que “a proposta não reunia condições sólidas, nem demonstrava a viabilidade económica e financeira que garantisse o ressarcimento do Estado”.
Minutos depois dos esclarecimentos prestados pelo Ministério das Finanças, o ministro da Economia, Pedro Reis, defendeu que “é importante assegurar o cuidado e a proteção” do dinheiro dos contribuintes na tomada de decisões sobre reestruturação de empresas, após ser questionado sobre o pedido de insolvência da Inapa.
“Eu diria só, única e exclusivamente, uma coisa: é muito importante assegurar o cuidado e a proteção do dinheiro dos contribuintes cada vez que se tomam decisões em relação à reestruturação de empresas, em relação a apoios a empresas”, afirmou Pedro Reis, acrescentando que “muitas vezes é mais fácil clamar por apoios públicos, mas é preciso ver o interesse público, avaliar bem onde é que ele está”.
Os números de um líder europeu que não é uma empresa estratégica
Líder europeu no seu segmento, segundo o site, a Inapa coloca anualmente cerca de setecentas mil toneladas de papel, distribuídos por mais de 400 camiões que circulam diariamente e, em média, fazem cinco mil entregas por dia. A Inapa tem 37 armazéns e plataformas logísticas, com uma área de armazenagem de cerca de 200 mil metros quadrados.
Globalmente, emprega quase 1.500 pessoas, distribuídas por 10 países e cerca de 20 participadas que vão da distribuição de papel às embalagens e comunicação visual. Os principais mercados são os de França e da Alemanha que representam cerca de dois terços das receitas do grupo. A empresa está também em Espanha, Suíça, Turquia, Angola, Áustria, Benelux, para além de Portugal onde dá trabalho a 196 pessoas, de acordo a última informação disponível (relativa a 2023) – com armazéns na zona de Sintra e, mais a norte, em Santa Cruz do Bispo.
Em 2015 foi mesmo considerada a empresa portuguesa mais internacionalizada.
No ano passado faturou 969 milhões de euros, uma queda de 20% face ao ano anterior em que a faturação tinha ultrapassado os 1,2 mil milhões de euros. Também em 2023, a Inapa apresentou prejuízos de oito milhões de euros após lucros de 17,8 milhões de euros no ano anterior.
Para além da falta de viabilidade económica e financeira dos apoios financeiros pedidos ao Estado, o Ministério das Finanças pesou o facto de a administração não ter apresentado “qualquer estratégia de recuperação” e da Parpública não ser acionista maioritária. E confirmou a recusa já defendida pela holding do Estado dos apoios pedidos. A “Inapa é uma empresa privada, não tendo uma atividade considerada como estratégica para a economia portuguesa”, diz o ministério liderado por Joaquim Miranda Sarmento.
A Parpública remeteu-se ao silêncio.