Adivinhava-se um debate tenso. À chegada aos estúdios da Band TV, Jair Bolsonaro disse esperar que este fosse um “debate de alto nível”. A posição aparentemente conciliadora tinha como objetivo focar o ataque de que foi alvo nas últimas horas: a divulgação de um vídeo por parte do PT em que Bolsonaro fala sobre um encontro com meninas de “14, 15 anos” venezuelanas em que “pintou um clima”, onde se insinua que o Presidente estaria a sexualizar as raparigas.
Bolsonaro diz ter passado “as piores 24 horas da sua vida” após a divulgação do vídeo, ao ser colado a pedofilia. A Justiça concordou consigo: o juiz Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal, decidiu que o vídeo deveria ser retirado por usar declarações fora de contexto — e Moraes é insuspeito de favorecer Bolsonaro, tendo já protagonizado vários momentos de tensão com o Presidente ao longo dos últimos anos.
O debate de 1h40, porém, quase não abordou o tema. Sim, ambos os candidatos acusaram-se mutuamente de propagarem fake news e Bolsonaro invocou a decisão do juiz para tentar provar que o PT seria desonesto. Mas, apesar do uso frequente de expressões agressivas — “mentiroso” deve ter sido a palavra mais repetida ao longo de todo o debate —, o primeiro frente a frente entre os dois candidatos não foi tão tenso como se esperava para dois candidatos aguerridos.
No final, uma conclusão clara: não houve vencedor. Se Lula da Silva dominou toda a primeira parte do debate, conseguindo colocar Jair Bolsonaro à defesa no tema da gestão da pandemia de Covid-19, o adversário controlou a parte final, encostando repetidamente o outro candidato à corrupção. Pelo meio, as perguntas dos jornalistas não fizeram História, com os dois candidatos a fugir habilmente a dar respostas. A única exceção foi a questão do número de juízes no Supremo Tribunal, que ambos prometeram não aumentar.
“O senhor brincou com a pandemia e a morte”. Covid dá pontos a Lula da Silva
Lula da Silva dominou a primeira parte do debate, com praticamente um único tema: a Covid-19. Atirando pergunta atrás de pergunta e provocação atrás de provocação, Lula conseguiu que Bolsonaro não fugisse ao tema e deixou-o em dificuldades. De tal forma que, segundo a contabilização do jornal Estado de S. Paulo, o atual Presidente passou dez dos seus 15 minutos a falar sobre a pandemia, tema que tentava evitar.
Armado com números, o ex-Presidente Lula destacou que o Brasil tem apenas “3% da população mundial”, mas teve “11% das mortes de Covid-19”. Acusou o governo Bolsonaro de ter atrasado a compra de vacinas, sublinhou a incompetência do ministro da Saúde Eduardo Pazuello e destacou as conclusões da comissão de inquérito à gestão da pandemia. “O senhor não carrega nas costas o sofrimento dos brasileiros, de ser o responsável de 400 mil mortes neste país?”, questionou.
“O senhor debochou, riu, disse que quem tomava vacina virava jacaré”, afirmou Lula, destacando as várias frases de Bolsonaro comparando o vírus a “uma gripezinha”. “O senhor brincou com a pandemia e a morte”, sentenciou.
Jair Bolsonaro ia tentando defender-se como podia, mas nunca conseguiu contrariar a maré. Tentou repetidamente colar o consórcio de governadores do Nordeste, na maioria do PT, a uma vaga de corrupção que levaria “à roubalheira”, caso tivessem tido autorização federal para comprar vacinas a nível local. Apontou que a desvalorização da doença também foi feita por outros, como “a Globo”. Disse que a comissão parlamentar “não encontrou nada” que o incriminasse — muito embora o relatório final acusasse Bolsonaro de vários crimes, incluindo crimes contra a Humanidade.
Perante um debate que não lhe corria de feição, Bolsonaro foi à jugular do adversário, provavelmente na esperança de o desequilibrar. Quando Lula da Silva disse saber o que sentem as pessoas que perderam entes queridos para a Covid-19, por ter perdido a sua sogra para a doença, o Presidente partiu para o ataque pessoal: “Fez discurso em cima do caixão da esposa e está chorando pela sogra”, afirmou, referindo-se ao funeral de Marisa Letícia, que morreu em 2017. Lula, porém, manteve-se calmo e voltou apenas a sublinhar que o Presidente nem sequer visitou doentes infetados com Covid-19.
“Lula, devia ficar a curtir em casa em vez de regressar à cena do crime”. Bolsonaro domina em tema da corrupção
Mas se Bolsonaro se deu mal na primeira fase do debate, conseguiu recuperar com estrondo na terceira e última. Para isso, teve apenas de invocar os escândalos de corrupção dos governos de Lula e Dilma Rousseff, em particular o Petrolão — o esquema de lavagem de dinheiro e subornos relacionados com a Petrobras, desvendado durante a operação Lava Jato.
“Lula, dinheiro que você enfiou no rabo e compartilhou com os seus amigos!”, atirou Jair Bolsonaro. O adversário cambaleou e gaguejou um pouco na resposta, tentando antes focar-se nos sucessos da Petrobras. “Se houve ladrão na Petrobrás, prendeu-se e pronto”, responde o antigo Presidente. “Se houve corrupção na Petrobrás, não era preciso ter quebrado as empresas como se quebrou.”
Foi essa a estratégia de defesa de Lula durante todo o resto do debate. Incapaz de negar que houve corrupção, “porque os caras confessaram”, o antigo Presidente sublinhou apenas repetidamente que “não era preciso quebrar as empresas” para resolver o escândalo.
E o ambiente aqueceu. Se até aqui ambos falavam quase exclusivamente para a câmara, dirigindo-se aos eleitores, passaram a falar de frente um para o outro, aproximando-se até. “Mentiroso”, “mentiroso”, foi repetido várias vezes. “Olha aqui, Lula, as empresas que roubaram a Petrobrás”, disse a certa altura Bolsonaro, lendo uma série de nomes de um papel. “Não culpe os procuradores, a corrupção foi sua”.
Lula voltou a dizer que o adversário estava a mentir e rapidamente tentou desviar o assunto para a discussão sobre o salário mínimo. Sem sucesso. A irritação em certos momentos era visível, de tal forma que o candidato perdeu o controlo do tempo. Quando deu por si, tinha esgotado todos os minutos que tinha disponíveis, enquanto Bolsonaro gozava ainda de quatro. O Presidente aproveitou bem o monólogo. Passando por vários temas, terminou, uma vez mais, com a corrupção: “Esse cara manda dinheiro para fora, porque volta para o bolso deles, da turma deles”, disse, referindo-se a obras públicas em países como Venezuela e Cuba. “Lula, você devia ficar a curtir em casa em vez de voltar à cena do crime.”
Bicadas sobre composição do Supremo, mas promessa de ficar tudo como está
Por fim, o outro momento do debate, que ocorreu a meio, não ficou para a História. Vários jornalistas colocaram diferentes perguntas aos candidatos, em temas tão variados como educação, economia e o escândalo do Orçamento Secreto. Mas tanto Lula da Silva como Jair Bolsonaro conseguiram esquivar-se sem problemas às perguntas mais complicadas.
Houve apenas uma exceção a assinalar, logo na primeira pergunta, colocada por Vera Magalhães — jornalista que foi atacada por Bolsonaro num debate da primeira volta, o que levou Lula desta vez a dizer “Vou-me aproximar da câmara, mas não vou te agredir, Vera”. Tencionam os candidatos aumentar o número de juízes no Supremo Tribunal para conseguir uma aritmética que lhes seja mais favorável?
Lula da Silva foi taxativo: “Tentar mexer na Suprema Corte para colocar amigo é um retrocesso que a República brasileira já conhece”, afirmou, referindo-se à ditadura militar e tentando classificar a prática como um ato anti-democrático.
Bolsonaro não perdoou e lembrou que, “no passado, Lula já tentou criar mais quatro vagas para o Supremo Tribunal”. Também desvalorizou as acusações de que tenciona colocar “amigos” no Tribunal, dizendo que Lula só é candidato “por obra e graça de um amigo do PT” — referia-se ao juiz Edson Fachin, nomeado por Dilma Rousseff, que anulou a condenação de Lula da Silva relacionada com a Lava Jato.
Mas, ferroadas à parte, o atual Presidente deixou a promessa de que não aumentará o número de juízes: “Da minha parte está feito o compromisso. Não terá nenhuma proposta, nunca estudei isso com profundidade”.