No dia em que o ex-advogado de Rui Pinto se reuniu com os representantes da Doyen numa estação de serviço da A5, em Oeiras — para aquilo que o Ministério Público considera agora uma tentativa de extorsão —, estavam dois inspetores da Polícia Judiciária na mesa ao lado a ouvir toda a conversa entre os três.
Naquele 21 de outubro de 2015, o advogado Aníbal Pinto descreveu o seu cliente, sem nunca o identificar, como um excelente profissional, a residir no estrangeiro e com formação superior, capaz de entrar em qualquer sistema informático, mesmo de bancos. Sem saber que estava a ser vigiado, o advogado acabou por entregar duas informações preciosas sobre a pessoa que, dias antes, tinha contactado a Doyen — um fundo que geria, por exemplo, passes de jogadores de futebol —, dando conta de que tinha vários documentos confidenciais da empresa: era ele o criador da página Football Leaks, onde foram publicadas algumas dessas informações, e tinha sido ele a aceder aos e-mails do Sporting — o que, a 30 de setembro desse ano, levou o clube a apresentar uma queixa-crime.
Este encontro tinha sido discutido dias antes, logo depois de Rui Pinto, sob o nome falso Artem Lobuzov, ter contactado por e-mail Nélio Lucas, o representante legal da Doyen. Nesse contacto, o hacker avisava: “A fuga é bem maior do que imagina…”. O pirata informático avisava que tinha na sua posse documentos de todos os empréstimos de Lai Malij (o cidadão turco nascido no Cazaquistão), dos negócios no Brasil, na Turquia, na Ásia Central e os atrasos a pagamentos a alguns clubes. E ameaçava: tinha já jornais franceses, italianos espanhóis a pedirem “uma parceria” para divulgar a informação.
Nélio Lucas respondeu-lhe a 4 de outubro, pelas 11h52, perguntando o que queria dizer com aquilo. Pinto viria a responder-lhe que pretendia uma “doação generosa” para que a informação que detinha fosse destruída antes de qualquer publicação. Caso contrário, divulgaria todos os negócios da Doyen. Num outro contacto, o alegado pirata informático acabaria por formalizar um valor para a tal “doação”: entre os 500 mil e um milhão de euros. Nesta altura, porém, já os advogados da Doyen tinham apresentado queixa à Judiciária.
Temendo as ameaças, o representante da Doyen acabaria, ainda assim, por contactar um advogado. Rui Pinto também. O hacker recorreu ao mesmo que o livrara de ser julgado, sete anos antes, quando se terá apropriado do dinheiro do Caledonian Bank Limited, através de uma intrusão ao seu sistema informático: o advogado Aníbal Pinto que, agora, defende alguns arguidos do caso da invasão à Academia do Sporting.
Segundo a descrição das procuradoras do Ministério Público, no despacho de acusação, Rui Pinto não deu muito tempo à Doyen. E, a 13 de outubro, o advogado daquela empresa, Pedro Henriques, acabaria por contactar Aníbal Pinto. Foram várias as conversas até se perceber que a ideia era celebrar um contrato de prestação de serviços, em que Rui Pinto ficaria a trabalhar para a Doyen. Também se discutiu o local do encontro. O advogado Aníbal Pinto sugeriu que fosse no seu escritório, no Porto, mas o representante da Doyen recusou. Viria a dizer mais tarde à polícia que se sentiria exposto se o fizesse. Depois, sugeriu o aeroporto de Lisboa, mas Nélio acabaria por agendar o encontro para uma estação de serviço da A5.
Aníbal Pinto também chamou a atenção para um pormenor: se estava a agir como advogado, num encontro para combinar um possível contrato, alguém teria que pagar os seus honorários. O advogado da Doyen terá aceitado pagar. E pagou-lhe também a viagem de avião para Lisboa, assim como o aluguer de um Mercedes com motorista para o levar ao ponto de encontro.
O que Aníbal Pinto não sabia à data é que já estava sob escuta e esta reunião estava também a ser combinada com a PJ. Segundo o relato que consta no processo consultado pelo Observador, um inspetor e uma inspetora da PJ montaram um sistema de vigilância no local. Além disso, sentaram-se estrategicamente numa mesa de onde podiam observar e ouvir as conversas entre os três.
De acordo com esse relato, Aníbal Pinto — na altura suspeito e agora coarguido do hacker, que se encontra preso — entrou no restaurante pelas 15h45 e sentou-se junto a Nélio e ao advogado Pedro Henriques. A PJ relata que os três começaram por se apresentar e cumprir as formalidades iniciais normais. Pediram comida e bebida.
Depois, o advogado do hacker, sem nunca referir o nome do seu cliente, terá começado a falar num negócio com um valor entre meio e um milhão de euros. Explicou que o seu cliente foi o autor e responsável pela criação e conteúdos divulgados no site Football Leaks — o que Rui Pinto viria a negar perante a juíza de instrução, mais de três anos depois, alegando que há um grupo por detrás dele. O próprio Aníbal Pinto disse ter tido acesso a conteúdos obtidos junto do sistema informático da Doyen. E afirmou que a sua intervenção se traduzia na elaboração de um contrato que conciliasse as posições de ambas as partes.
Nessa conversa, que durou cerca de uma hora, o advogado fez ainda referência à extraordinária capacidade técnica do seu cliente, capaz de aceder e de entrar em qualquer computador, mesmo em sistemas de bancos (razão pela qual já o tinha representado no âmbito de outro processo). Chegou a descrevê-lo como “brilhante”. No relatório da vigilância, a PJ constata que, em diversos momentos da conversa, o advogado afirmou que avalizaria pessoalmente o cumprimento do acordo, devolvendo a quantias pagas, caso não fosse cumprido.
Depois deste encontro, Aníbal Pinto enviaria uma proposta de contrato à Doyen: Rui Pinto seria remunerado com 25 mil euros anuais, durante cinco anos. E seria sujeito ao pagamento de uma caução de 100 mil euros, caso violasse as condições contratuais.
Contactado pelo Observador, Aníbal Pinto — que já não representa o hacker — diz não se lembrar claramente do que disse nesse encontro, uma vez que a sua memória está corrompida com todas as informações que entretanto foram sendo dadas sobre o processo. Mas sublinha que agiu apenas como profissional e que nunca aceitaria participar num crime. “Eu não sou amigo do Rui Pinto, eu era advogado dele. Todos os dias sou chamado para coisas completamente malucas. Toda a gente tenta arranjar soluções legais para os seus clientes. [Mas] se for crime, estou fora”, esclareceu.
Dias depois do encontro, e sem resposta por parte da Doyen, Aníbal Pinto terá avisado o seu cliente de que o que estava a ser discutido era um crime, e que a outra parte estava a levar demasiado tempo a decidir. Nessa altura, Rui Pinto já saberia que o caso estava na PJ e o advogado tê-lo-á avisado de que poderia ser apanhado. Assim, o contrato nunca chegou a ser celebrado.
Aníbal Pinto já leu o relato da PJ que consta no processo e acha estranho que não seja descrita parte da conversa que diz ter mantido com Nélio Lucas, enquanto o advogado do representante da Doyen se ausentou por uns minutos (uma ausência que, de facto, vem referida no relatório da vigilância). “O Nélio ofereceu-me 1 milhão de euros para eu dizer quem era o meu cliente. Eu insultei-o, alto, e acho impossível não terem ouvido. Pelo que sei, o meu encontro foi todo gravado, não percebo por que não aparecem essas gravações”, disse ao Observador. Aníbal Pinto acredita que a operação da PJ servia para o deter. “Pensaram que ia aceitar receber dinheiro e que prendiam-me na hora. Mas ninguém me compra”, garante.
Ao Observador, Aníbal Pinto conta que já fez uma queixa contra o advogado da Doyen — porque foi com ele que combinou o encontro. Acusa-o de o ter incitado a um crime, quando, na verdade, só foi àquela reunião porque era entre advogados e para discutir uma solução.
Rui Pinto é acusado de uma uma tentativa de extorsão à Doyen Sports, 75 crimes de acesso ilegítimo, um de sabotagem informática e 70 de violação de correspondência. As vítimas: a Doyen, o Sporting, a Federação Portuguesa de Futebol, a sociedade de advogados PLMJ e o Ministério Público. Aníbal Pinto é co-arguido, acusado de tentativa de extorsão. O despacho de acusação veio confirmar que Rui Pinto será o criador do site Football Leaks — onde foram divulgados inúmeros documentos confidenciais retirados de e-mails destas empresas e instituições.
A ficha criminal que diz que Aníbal Pinto foi suspeito de burla e de associação criminosa
No processo consta também a ficha biográfica dos arguidos, enviada pela Polícia Judiciária. E na de Aníbal Pinto destacam-se duas informações sobre o advogado, com cédula profissional em 2013: foi investigado pelos crimes de burla e de associação criminosa.
Aníbal Pinto soube que esta ficha estava no processo pouco depois de Rui Pinto ter sido preso preventivamente na cadeia da PJ, em março. E essa informação motivou logo uma reclamação por parte da sua advogada. Num requerimento enviado a 8 de abril, Ana Antunes diz que o seu cliente desconhece completamente que processos são aqueles, uma vez que nunca foi ouvido como testemunha, suspeito ou arguido em qualquer processo-crime. E pede que o teor dessa ficha seja esclarecido. Duas semanas depois, volta a mandar um requerimento a dizer que aquelas informações lhe causaram muita surpresa e que, temendo pela mediatização do processo e de quem o vai consultar, esses dados devem ser desentranhados dos autos. Na argumentação, usa como exemplo uma decisão do Tribunal da Relação, que diz que estas informações não devem constar nos processos.
Ao Observador, o advogado explica que “a ficha biográfica da PJ” inclui todos os elementos que as polícias possam ter sobre determinada pessoa. “Imagine que eu cometo uma burla e estou a jantar consigo. Fica na ficha que somos ambos suspeitos. Eles ficam com esses elementos, são apontamentos que podem usar mais tarde”, justifica.
Defendendo que estas informações não devem constar no processo, sob pena de “inquinarem uma decisão judicial”, o advogado mandou mesmo uma carta ao Diretor Nacional da PJ pedindo esclarecimentos, assim como responsabilização do inspetor que poderá ter posto aquela informação nos autos. A resposta, a que o Observador teve acesso, chegaria em nome de outro responsável pela PJ, ainda em abril deste ano.
“Não se vislumbram quaisquer indícios de fatos suscetíveis de responsabilidade disciplinar”, lê-se. Mais: diz a PJ que estes registos nas fichas biográficas são “indelevelmente associados à dinâmica das investigações que lhe estão subjacentes e que o registo é provisório”. E, à data desta reclamação, o advogado já não tinha qualquer “registo” na ficha.
Segundo a ficha que consta no processo consultado pelo Observador, Aníbal Pinto terá sido investigado num processo de burla, por causa de um cheque sem provisão, e noutro de associação criminosa, com dois outros suspeitos e um arguido que garante desconhecer. Esse caso foi arquivado em março de 2013.
Além do pedido enviado à PJ, o advogado enviou uma comunicação à ministra da Justiça, pedindo que responsabilize os inspetores que puseram aqueles dados na sua ficha policial.