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@Dave Imms

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O engenheiro que consertou o próprio coração

Quando Tal Golesworthy descobriu que estava em risco de rotura na aorta, não ficou convencido com a cirurgia que lhe foi proposta – por isso inventou uma nova. Por Geoff Watts.

Está na hora do almoço numa pequena empresa de engenharia médica em Tewkesbury. Para nos entreter enquanto mastigamos sanduíches exibe-se um vídeo colorido: imagens de uma cirurgia cardiovascular, o coração e os vasos sanguíneos de um qualquer indivíduo.

Bom, na verdade não são de um indivíduo qualquer. O coração a bater ali exposto pertence a um dos meus companheiros de refeição. Tal Golesworthy, com 60 anos de idade e a perder cabelo, fala rapidamente e sem rodeios. Para além disso – pista importante – é alto, e tem os dedos das mãos invulgarmente compridos.

Há quase 15 anos, Golesworthy descobriu que a menos que se submetesse a uma intervenção cirúrgica num dos vasos que transportavam sangue a partir do seu coração, correria um risco cada vez maior de morrer prematuramente. A ideia de ser operado não lhe agradava muito, mas o que lhe causava maior inquietação era saber o que aquela operação em particular implicaria.

Golesworthy não é médico nem investigador na área da medicina. É engenheiro. Mas com a autoconfiança que lhe é reconhecida pensou que seria capaz de inventar uma maneira mais simples e mais segura de resolver o próprio problema. E assim fez.

Golesworthy não é médico nem investigador na área da medicina. É engenheiro. Mas com a autoconfiança que lhe é reconhecida pensou que seria capaz de inventar uma maneira mais simples e mais segura de resolver o próprio problema. E assim fez. Desde então convenceu um cirurgião a levá-lo a sério, tornou-se a cobaia da primeira operação e hoje em dia está à frente de uma empresa que fabrica implantes idênticos ao que mora dentro do próprio peito. Há uma década que ali está, e tem-no mantido vivo.

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A história de Golesworthy é notável pela persistência e determinação que demonstrou. Mas não só. É uma experiência que levanta questões acerca da inovação na cirurgia, da aceitação de novos procedimentos e da pesquisa necessária para os testar. E que sublinha a verosimilhança de outros pacientes com doenças diferentes estarem a pensar em ideias igualmente engenhosas ou radicais.

“Se um aneurisma rebentar, a hemorragia interna que daí resulta pode ser fatal.”

Tal Golesworthy tem síndrome de Marfan. Antoine Bernard-Jean Marfan, o homem que o nome imortaliza, era um médico pediatra parisiense. Numa apresentação em 1896, descreveu o caso de uma menina de cinco anos cujos membros eram invulgarmente longos, assim como os seus dedos dos pés e das mãos. Não foi o próprio Marfan que deu nome à condição, mas sim um dos seus sucessores. Paradoxalmente, não existe sequer a certeza de que a menina em causa sofresse daquilo a que hoje se chama síndrome de Marfan – mas o nome ficou.

Trata-se de um problema de origem genética, seja hereditário ou causado por uma mutação espontânea. Para além dos seus membros longos e esguios – e daí a sua altura invulgar – as pessoas que têm este síndrome podem ter articulações soltas e flexíveis e vários problemas ao nível dos olhos. A causa última de tudo isto é um erro nos genes responsáveis por uma proteína chamada fibrilina, componente essencial das fibras elásticas que se encontram, entre outros tecidos, nos vasos sanguíneos. E isto explica uma das maiores ameaças que o síndrome de Marfan representa para Tal Golesworthy e para as outras pessoas que dele sofrem. Esta anomalia faz com que um dos seus maiores vasos fique enfraquecido e seja menos capaz de lidar com a pressão que lhe é imposta pelo sangue que lá passa.

@Dave Imms

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Uma das maiores artérias do corpo, a aorta, recebe sangue diretamente do ventrículo esquerdo do coração. Ao invés de passar numa corrente constante, o sangue chega ao coração em latejos. A aorta funciona como mecanismo hidráulico de absorção do impacto, expandindo-se e contraindo-se sucessivamente à medida que a pressão lá dentro aumenta e diminui. Qualquer fraqueza na parede da aorta pode permitir o desenvolvimento de um inchaço tipo balão, um aneurisma. Por alguma razão, o ponto mais fraco da aorta nas pessoas que sofrem de síndrome de Marfan é a raiz, a secção adjacente às válvulas que protegem a saída do ventrículo esquerdo. Se um aneurisma rebentar, a hemorragia interna que daí resulta pode ser fatal.

“Vivemos num equilíbrio perigoso entre o risco de embolismo e de hemorragia interna.”

Golesworthy tinha cinco ou seis anos quando descobriu que tinha síndrome de Marfan. O pai também tinha. “Media um pouco mais de dois metros e via muito mal”, lembra Golesworthy. Mas, aparentemente, os médicos na altura estavam menos cientes do perigo que aquela condição representa. O próprio Golesworthy não fazia ideia das implicações para a sua aorta até fazer trinta anos. Nessa altura o vaso sanguíneo já tinha inchado – e foi então que lhe disseram que tinha de ser operado.

A operação padrão, instituída em 1968 e dependente de uma máquina coração-pulmão para manter o fluxo sanguíneo do corpo, implica a remoção da primeira secção da aorta, a mais fraca, assim como das válvulas sanguíneas adjacentes. O cirurgião substitui a aorta por tubagem de polyester Dacron e as válvulas naturais por válvulas mecânicas.

Descrever o estado de Golesworthy como pouco entusiasmado seria eufemismo. “Não estava nada contente com a cirurgia”, confessa, “mas o que me estava a causar maior inquietação era a ideia de passar a vida toda a tomar medicamentos anticoagulantes.”

O maior senão deste procedimento é que as válvulas mecânicas são passíveis de dar origem a coágulos. O tratamento com anticoagulantes ao longo da vida diminui a possibilidade de embolismos, mas acarreta outros perigos. As pessoas que fazem este tratamento ficam sujeitas a um risco muito maior no caso de qualquer doença ou ferimento que cause hemorragias. “Vivemos num equilíbrio perigoso entre o risco embolismo e o risco de hemorragia interna”, explica Golesworthy.

Descrever o estado de Golesworthy como pouco entusiasmado seria eufemismo. “Não estava nada contente com a cirurgia”, confessa, “mas o que me estava a causar maior inquietação era a ideia de passar a vida toda a tomar medicamentos anticoagulantes.”

Embora na altura Golesworthy não o soubesse, os cirurgiões tinham concebido uma versão da operação em que as válvulas do doente não eram substituídas, eliminando assim a necessidade dos anticoagulantes. Problema resolvido? Aparentemente não. Embora esta operação também seja eficaz, a longo prazo tem uma taxa mais elevada de insucesso. Esta era então a escolha que se apresentava: uma boa taxa de sucesso à custa de uma dependência de anticoagulantes até ao fim da vida; ou evitar os anticoagulantes enfrentando uma hipótese maior de ter de tornar a ter de sujeitar-se à operação.

Golesworthy não sabe por que razão não lhe propuseram a operação alternativa, mas suspeita que terá tido mais a ver com as preferências subjetivas daqueles cirurgiões em particular do que com a própria ciência. Seja como for, já tinha começado a perguntar-se se não existiria uma terceira via, melhor do que qualquer uma das duas que tinha à escolha.

“Logo que comecei a andar, comecei também a agarrar na chave de fendas e a desmontar coisas. Quando tinha seis anos tirei a parte de trás da televisão.”

Golesworthy encarava a fraqueza da aorta não com olhos de médico, mas sim de engenheiro. Qual é a justificação para substituir canalização mal feita, pensou, quando seria muito mais simples remendar a que existe? “Disse para comigo, podemos analisar a aorta, podemos usar CAD (desenho assistido computador), podemos produzir um apoio completamente à medida. É possível.”

Se acreditarmos que existe um gene da engenharia, Golesworthy herdou-o pela certa. O pai era engenheiro aeronáutico. “Logo que comecei a andar, comecei também a agarrar na chave de fendas e a desmontar coisas. Quando tinha seis anos tirei a parte de trás da televisão.”

Golesworthy tornou-se engenheiro com carteira profissional da forma mais difícil. Começou por estudar ciência dos materiais, mas não gostou do curso, desistiu, juntou-se à Coal Research Establishment (Instituto de Investigação do Carvão) e passou a estudar a tempo parcial. “A universidade não me entusiasmava”, afirma. Trabalhou sobre os mais variados assuntos, desde processos químicos ao controlo da poluição atmosférica e familiarizou-se com instrumentos e tecnologias de todas as áreas, incluindo o uso de têxteis em filtros de tecido.

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A inspiração de Golesworthy para o seu invento cirúrgico surgiu de um remendo básico de canalização para um cano a pingar: enrolar qualquer coisa à volta. Esta estratégia simples já tinha ocorrido a alguns cirurgiões, mas tinham experimentado com materiais rígidos; quando colocados estes tendem a sair do sítio ou a cortar os vasos laterais que saem da aorta.

Golesworthy não sabia que a ideia de enrolar já tinha sido pensada e deixada de parte por cirurgiões. Em todo o caso, o seu lado de engenheiro também acabou por a rejeitar: “Se olharmos para a configuração da aorta sabemos que temos de aplicar uma força uniforme sobre tudo. Como é que isso se consegue enrolando-a?” Pensou então em algo mais sofisticado: um revestimento externo, feito à medida, uma manga que impediria a aorta de inchar de forma perigosa. Passado algum tempo a intervenção ganhou um nome elegante: PEARS, que significa “personalised external aortic root support” (apoio externo personalizado da raiz da aorta).

“Foi preciso um engenheiro para nos explicar a nós, pobres médicos, como se fazem as coisas.”

Propôs que se utilizassem máquinas de tomografia computadorizada para delinear a forma tridimensional da raiz da aorta. Com o auxílio do software certo, poderia então utilizar-se a tecnologia rápida de criação de protótipos (impressão 3D) para criar um modelo à escala do vaso. Este modelo seria utilizado como molde a partir do qual se criaria uma manga têxtil de forma e tamanho personalizado para envolver a aorta e impedir que esta se expandisse. E não se tratava de uma manga rígida, mas de uma malha suave, moldável e porosa. Ao fazer esta opção, Golesworthy pôde basear-se em todo o conhecimento que acumulara ao trabalhar sobre a utilização de filtros de tecido na indústria do carvão.

Mas havia ainda um obstáculo a ultrapassar: como se lança uma inovação médica enquanto engenheiro sem qualquer envolvimento profissional na indústria dos cuidados de saúde? Golesworthy decidiu apresentar a sua ideia durante uma das reuniões anuais da associação de doentes de Marfan há cerca de quinze anos. Um dos oradores era Tom Treasure. Atualmente ligado à Unidade de Pesquisa de Operações Clínicas no University College de Londres, um grupo que procura soluções práticas para problemas que surgem na medicina clínica, Treasure era à época um cirurgião cardiotorácico no ativo.

Mas havia ainda um obstáculo a ultrapassar: como se lança uma inovação médica enquanto engenheiro sem qualquer envolvimento profissional na indústria dos cuidados de saúde? 

Treasure lembra-se de como Golesworthy o abordou no final da palestra.

“Explique-me uma coisa, Professor, estes cortes todos”, disse ele. “Acho que devia tentar modernizar-se e usar modelação CAD.” Treasure não fazia a mínima ideia do que Golesworthy estava a falar. “Tal estava a usar jargão de engenharia. ‘Podemos usar RP’, disse-me ele. À época, não suspeitava da existência da criação rápida de protótipos.” Mas ficou curioso. Em conversas subsequentes começou a perceber melhor do que se tratava e pareceu-lhe que estavam ali as bases de uma boa ideia. “Vou fazer os possíveis para que este homem seja ouvido”, decidiu.

Assim fez, e a ideia começou a ganhar adeptos. “O Tom é que fez tudo”, afirma Golesworthy. “Foi ele que abriu as portas ao mundo médico, e depois disso atirámo-nos ao trabalho.”

“A minha aorta estava a dilatar-se, tinha mesmo de me despachar.”

Treasure não estava em posição de fazer a primeira operação, por isso a tarefa seguinte era encontrar um cirurgião que a pudesse realizar. Tinha plena consciência de que muitos cirurgiões descartariam a nova técnica sem pensar duas vezes. Muitos fizeram isso mesmo, e até hoje alguns não estão convencidos. Treasure abordou John Pepper, professor de cirurgia cardiotorácica do National Heart and Lung Institute da Imperial College, em Londres: outra pessoa que Treasure descreve como “sempre pronto para ir contra a corrente”. Pepper respondeu afirmativamente.

Não tendo conseguido o apoio de nenhuma das grandes fundações dedicadas aos problemas do coração, Golesworthy começava a sentir-se pressionado. Estava ainda relutante em submeter-se a uma cirurgia convencional, mas a sua aorta estava a precisar de ser reparada com cada vez mais urgência.

Combinei encontrar-me com Pepper no Royal Brompton Hospital. É um homem robusto, jovial e caloroso, com a abordagem segura que seria de esperar de um dos principais cirurgiões cardíacos do Reino Unido. Oriundo de uma família de engenheiros, é nítido o respeito que tem por uma profissão que, ao escolher medicina, decidiu não seguir. “Vivemos em mundos diferentes. Os engenheiros interessam-se por tudo, até ao milésimo de centímetro. Em biologia não chegamos nem perto desse nível de precisão.” Não é grande surpresa que Pepper tenha percebido rapidamente as vantagens de criar um modelo da aorta do doente e de conceber um suporte feito à medida.” Foi preciso um engenheiro para nos explicar a nós, pobres médicos, como se fazem as coisas”, observa.

Colocava-se ainda questão do financiamento. Não tendo conseguido o apoio de nenhuma das grandes fundações dedicadas aos problemas do coração, Golesworthy começava a sentir-se pressionado. Estava ainda relutante em submeter-se a uma cirurgia convencional, mas a sua aorta estava a precisar de ser reparada com cada vez mais urgência. No final de contas, acabou por angariar os fundos necessários através da criação de uma empresa chamada Exstent Ltd, para a qual procurou investidores. Nessa altura tinha apenas um cliente em vista – ele próprio.

Uma vez que não tinha as aptidões necessárias em CAD, procurou também a ajuda de outros engenheiros no Imperial College. “Quando se está tão motivado como eu estava na altura, faz-se as coisas acontecer. Se for preciso ter alguma lata para convencer outras pessoas, é isso que se faz. A minha aorta estava a dilatar-se, tinha mesmo de me despachar.”

"Dave Imms

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Tal Golesworthy não é certamente a primeira pessoa com uma doença que inventou uma forma nova e melhor de lidar com ela. Certas associações de doentes acarinham esta ideia e fazem o que podem para espalhar a notícia. O que não existia era um repositório central para todas estas ideias. Até agora.

O Patient Innovation é um website criado por um grupo de Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Católica, em Lisboa. Pedro Oliveira é o coordenador do projeto. Inicialmente, o seu interesse era na inovação por parte dos utilizadores, de um modo geral: o papel que as pessoas que utilizam determinados produtos e serviços podem desempenhar no desenvolvimento de novas estratégias e desenvolvimentos.

“Ao longo da nossa investigação descobrimos que os doentes muitas vezes desenvolvem aparelhos e estratégias espantosas”, diz Oliveira. “Mas também nos apercebemos de que esta informação tende a não ser divulgada. O objetivo principal dos doentes é resolver os próprios problemas, e não ajudar os outros.” Mesmo se quisessem espalhar a notícia, a maior parte das vezes estas pessoas não saberiam como o fazer.

O Patient Innovation é um website criado por um grupo de Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Católica, em Lisboa. Pedro Oliveira é o coordenador do projeto. Inicialmente, o seu interesse era na inovação por parte dos utilizadores, de um modo geral: o papel que as pessoas que utilizam determinados produtos e serviços podem desempenhar no desenvolvimento de novas estratégias e desenvolvimentos.

Oliveira e a sua equipa apresentaram o Patient Innovation em fevereiro de 2014 e, ao que me diz, receberam mais de 1200 propostas independentes. Todas foram analisadas por uma equipa médica e cerca de metade delas acabaram por ser consideradas dignas de publicação no site.

Golesworthy foi um dos oradores convidados na reunião inaugural do Patient Innovation, e depois disso recebeu um dos prémios anuais atribuídos pela organização. Outro dos laureados foi Louis Plante, um canadiano de 26 anos que sofre de fibrose quística. A ideia de Plante consistia num aparelho acústico portátil para ajudar na drenagem das vias respiratórias.

Os pulmões das pessoas que sofrem de fibrose quística tendem a produzir grandes quantidades de muco espesso, e foram desenvolvidos vários métodos para o retirar ou deslocar para que possa ser expelido pela tosse. Um dia, ao estar perto de altifalantes de grande dimensão num concerto de rock, Plante começou a tossir. Perguntou-se se teria sido resultado da deslocação do muco devido às vibrações de frequência baixa que lhe atingiram o peito. Sendo técnico de electrónica de profissão, criou um aparelho para simular esse efeito. E funcionou. Plante serviu-se do próprio conhecimento para aliviar o seu problema de saúde – e depois comercializou-o.

Foram atribuídos outros prémios a um sensor que emite sinais para o telemóvel quando uma bolsa de colostomia está cheia, a uma bengala para cegos que consegue discernir objetos ao nível da cabeça, da cintura e do chão, e para rodas desdobráveis que tornam as cadeiras de rodas mais portáteis. Quantas mais ideias engenhosas não existirão por aí, igualmente aptas a ser divulgadas?

“Não conseguia trabalhar, não conseguia comer. Estava permanentemente ansioso. Foi horrível.”

Em 2004, Golesworthy conseguiu finalmente convencer investidores suficientes a apostar na sua empresa, e os obstáculos que existiam no processo de fabrico tinham sido já ultrapassados. Estava na altura de passar ao bloco operatório.

“Sempre disse que seria o primeiro doente”, lembra Golesworthy. “Mas depois convenceram-me de que deveria estar presente durante a operação, ao lado do cirurgião, John Pepper, no caso de surgirem problemas. Mas a pessoa que ia ser operada desistiu à última hora.” E assim Golesworthy fez o que queria: acabou mesmo por ser a cobaia.

“Sempre disse que seria o primeiro doente”, lembra Golesworthy. “Mas depois convenceram-me de que deveria estar presente durante a operação, ao lado do cirurgião, John Pepper, no caso de surgirem problemas. Mas a pessoa que ia ser operada desistiu à última hora.” E assim Golesworthy fez o que queria: acabou mesmo por ser a cobaia.

Embora estivesse feliz por ser o primeiro paciente, Golesworthy não gostou da espera de dez dias pela operação. “Estava completamente virado do avesso. Não me conseguia concentrar, não conseguia trabalhar, não conseguia comer. Estava permanentemente ansioso. Foi horrível.” Aquilo que o preocupava não era a ideia da operação em si; tinha plena confiança na manga. Confiança que se veio a demonstrar perfeitamente justificada.

Quando perguntei a Golesworthy se podia visitar as instalações da empresa em Tewkesbury, onde são feitos os implantes, ele avisou que não havia muita coisa para ver. E tinha razão. O que vejo consegue ser ainda menos entusiasmante do que as sanduíches que comemos ao almoço. Resta-me espreitar pelo vidro para a sala onde são feitos os implantes – pelo próprio Golesworthy.

Cada implante é criado a partir de uma folha de tereftalato de polietileno, um polímero termoplástico de resina semelhante ao Dacron em termos químicos mas entrelaçado num tecido suave. De dimensões semelhantes às de uma salsicha grande, embora ligeiramente mais comprida e espessa, cada forma é produzida ao enrolar o tecido em torno do molde personalizado, e acabada com uma costura de um lado – que o cirurgião desfaz na sala da operação e torna a coser assim que a manga é colocada à volta da aorta. Golesworthy leva cerca de um dia de trabalho para fazer dois implantes, e é um processo complicado. Embora o aparelho esteja patenteado, Golesworthy prefere não revelar em pormenor a forma como é feito. Talvez porque o processo exige alguma destreza.

Golesworthy leva cerca de um dia de trabalho para fazer dois implantes, e é um processo complicado. Embora o aparelho esteja patenteado, Golesworthy prefere não revelar em pormenor a forma como é feito. Talvez porque o processo exige alguma destreza.

A manga – o nome comercial é ExoVasc – chega à sala de operação envolta no molde. Quando é colocada à volta da aorta, o cirurgião prende-a fechando a única costura, no eixo. Mais rápido, mais simples, mais seguro – e eliminando a necessidade de interromper o fluxo sanguíneo normal.

Ao pensar na primeira operação, Pepper diz que tinha 95 por cento de certeza de que o procedimento iria ser bem sucedido. “É claro que o discuti com o doente”, afirma. E depois ri, olhando para o absurdo de discutir os prós e contras do implante com o homem que o tinha inventado.

Até esta altura, Golesworthy estava concentrado em resolver o próprio problema. “Assim que tratei de mim”, recorda, “pensei, agora posso ajudar outras pessoas.” Se o implante que desenvolveu tivesse sido falhado, a empresa que criou teria ficado afundada em dívidas. Mesmo o sucesso tem dado trabalho: “Está finalmente a tornar-se viável. Mas de 2004 até 2014 estávamos a lidar com quantidades risíveis de pacientes e a lutar para manter as portas abertas… Se pudesse voltar atrás, duvido que tornasse a fazer o mesmo”, confessa.

“Para fazer as coisas acontecer, é preciso ser-se apaixonado.”

Até ao momento, a PEARS tem tido resultados impressionantes. O procedimento é mais rápido do que qualquer das variantes da cirurgia convencional e não implica a interrupção do fluxo sanguíneo do doente.

Das duas variantes da cirurgia convencional, a que implica a remoção das válvulas cardíacas naturais é a mais duradoura – mas o risco combinado de hemorragia ou tromboembolismo criado pela dependência vitalícia de anticoagulantes é de 0,7 por cento. O que não parece muito mal – até nos apercebermos de que um doente que viva 40 anos após a operação se encontra no risco muito mais alarmante de cerca de um em quatro. A variante que poupa as válvulas naturais não exige medicação anticoagulante, mas tem um sucesso muito menos duradouro. A taxa anual de reoperação ronda os 1,3 por cento, por isso se o doente viver mais 40 anos o risco geral seria superior a dois em cinco.

"Assim que tratei de mim", recorda, "pensei, agora posso ajudar outras pessoas." Se o implante que desenvolveu tivesse sido falhado, a empresa que criou teria ficado afundada em dívidas.

Um estudo inicial demonstrou que a manga têxtil trava de facto a expansão progressiva e perigosa da raiz da aorta. Uma análise feita em 2013 aos primeiros 34 doentes, cujas intervenções tinham ocorrido entre três e os 103 meses antes, não revelou quaisquer problemas com o vaso. Um doente morreu, mas a morte não foi consequência da operação.

Ao contrário do que se receou inicialmente, a manga permanece exatamente no lugar onde é colocada. Para além isso, as conclusões de uma autópsia realizada a um doente cinco anos após a cirurgia revelaram que o implante parece incorporar-se na parede do vaso, que assim se torna mais robusta. O patologista comparou o aspeto da secção da aorta dentro da manga com uma secção adjacente que se encontrava do lado de fora, segundo Pepper. “A parte que estava dentro parecia normal… Talvez ao retirar alguma da pressão a que a aorta é sujeita estejamos a permitir que esta se regenere.” Esta ideia aliciante é ainda meramente especulativa.

“Ontem chegámos ao paciente número 76. A minha intenção, quando chegarmos aos 100 pacientes, é voltar atrás, analisar cuidadosamente todos os casos e apresentar conclusões.”

Na Grã Bretanha, o processo através do qual os cirurgiões desenvolvem novos procedimentos e decidem adotá-los é menos claro do que o exigido para a utilização de novos medicamentos. Mas a anarquia que reinou durante muito tempo deu lugar a regras criadas por comissões de ética de hospitais, e a uma série de linhas orientadoras e protocolos apresentadas pelo Royal College of Surgeons (Colégio Real de Cirurgiões do Reino Unido). Qualquer empresa que pretenda testar um novo aparelho através de ensaios clínicos também precisa de obter uma aprovação formal por parte da Medicines and Healthcare Products Regulatory Agency (Entidade Reguladora de Medicamentos e Produtos de Saúde). A Exstent fê-lo cedo no projeto PEARS. De forma a poder ser usado de forma regular dentro do sistema nacional de saúde, cada aparelho ou procedimento tem ainda de passar pela análise do National Institute for Health and Care Excellence (Instituto Nacional para Excelência em Cuidados de Saúde). O seu parecer relativo ao PEARS, emitido em 2011, era cautelosamente otimista – dependendo, naturalmente, de acumulação de mais dados.

Pepper e Treasure sabem que a prova ideal do valor do PEARS seria um ensaio clínico controlado aleatório. Este tipo estudo é sempre difícil quando se trata de cirurgia; cada médico terá aptidões diferentes ao realizar a mesma operação, por exemplo. “O Tom Treasure e eu já discutimos este assunto ao pormenor e abordámos pessoas que trabalham em centros que realizam este tipo de estudos”, diz Pepper. “Percebemos que não é exequível.” Por razões que incluem a relativa escassez de casos de síndrome de Marfan e a dificuldade em encontrar cirurgiões com as mesmas aptidões para os três procedimentos possíveis, parece pouco provável que se encontre o “padrão-ouro”. Tudo que Treasure e Pepper podem fazer é incentivar os cirurgiões a acompanhar os pacientes após a operação e relatar as suas conclusões. “Ontem chegámos ao paciente número 76. A minha intenção, quando chegarmos aos 100 pacientes, é voltar atrás, analisar cuidadosamente todos os casos e apresentar conclusões.”

Golesworthy não é muito elogioso em relação à maior parte deles. "São arrogantes, têm a mente pouco aberta, e o seu conhecimento tolda-lhes a visão", afirma.

Apesar de já existirem provas concretas das vantagens destes procedimento, não tem sido fácil alcançar a aceitação do PEARS. Porquê? Alguns médicos cirurgiões ainda o rejeitam sem o conhecerem realmente, segundo Pepper. “Não reconhecem as vantagens do desenho feito com o auxílio do computador e da criação rápida de protótipos. Acham que é só mais um embrulho, uma ideia que não funcionou no passado e provavelmente continua a não funcionar.”

Motivado parcialmente por esta resposta inicial negativa, Treasure refletiu sobre a história das inovações cirúrgicas. Em linhas gerais, concluiu que os cirurgiões embarcam numa ideia nova quando não foi ainda proposta qualquer solução para um determinado problema. Mas quando já existe uma solução – um procedimento que pode ter demorado anos a criar e mais tempo ainda a aperfeiçoar – os médicos tendem a ser muito pouco receptivos ao chamamento de uma abordagem alternativa que implique rever ou até abandonar uma aptidão que lhes custou a aprender. Se a alternativa parecer mais simples e mais fácil, diz Treasure, são ainda mais céticos. Mas no que diz respeito ao PEARS, está convencido que a tendência está a inverter-se.

“Somos incrivelmente avessos a correr riscos, mas o público quer ter acesso a novos tratamentos.”

Surpreendentemente, tendo em conta que o seu sucesso depende de conseguir apoios por parte de cirurgiões, Golesworthy não é muito elogioso em relação à maior parte deles. “São arrogantes, têm a mente pouco aberta, e o seu conhecimento tolda-lhes a visão”, afirma. Certamente não será a primeira pessoa a insinuar que os cirurgiões muitas vezes demonstram ter grandes egos. E antes de descartar as queixas de Golesworthy, convém notar que Treasure, embora com uma linguagem mais comedida, concorda com muitas delas. “Temos tido reunião atrás de reunião, e as pessoas repetem as mesmas inverdades. Não leram os artigos, muitas vezes não ouvem o que se lhes diz.”

O custo relativamente elevado da manga faz com que a operação inicial seja mais dispendiosa. Mas graças aos tempos de operação mais reduzidos e, a longo prazo, à eliminação da necessidade de tratamentos regulares com medicamentos e dos exames médicos correspondentes, assim como à redução da possibilidade de vir a necessitar de uma nova intervenção, o PEARS acaba por poupar dinheiro aos pacientes.

Também Pepper tem plana noção dos comentários por vezes demolidores de Golesworthy em relação aos cirurgiões, mas parece achá-los mais divertidos do que irritantes. E não só porque tanto ele como Treasure estão especificamente excluídos destas opiniões, mas também porque considera que Golesworthy não aceita o mundo em que vivemos: um mundo que preza a segurança acima de tudo. “Estamos absolutamente obcecados com a segurança, e tal como acontece com a gravidade, é algo que não se pode por em causa”, afirma, animado com a própria argumentação. “Somos incrivelmente avessos a correr riscos, mas o público quer ter acesso a novos tratamentos.” O medo do risco entre os seus colegas, insiste, tem sido alimentado pela publicação dos resultados pessoais de alguns cirurgiões – com a consequente redução da vontade de pegar em casos difíceis, em que a probabilidade de insucesso é inevitavelmente maior.

Paradoxalmente – e com uma certa dose de fanfarronice, ainda que justificada – Golesworthy acredita que a forma como apresenta o procedimento constitui um fator que pode fazer com que os cirurgiões mudem de opinião acerca do PEARS. Fala com a convicção que advém de ser quem é: parte da prova literalmente viva do PEARS. “É apaixonado”, acrescenta Pepper. “Para fazer as coisas acontecer, é preciso ser-se apaixonado.”

O custo relativamente elevado da manga faz com que a operação inicial seja mais dispendiosa. Mas graças aos tempos de operação mais reduzidos e, a longo prazo, à eliminação da necessidade de tratamentos regulares com medicamentos e dos exames médicos correspondentes, assim como à redução da possibilidade de vir a necessitar de uma nova intervenção, o PEARS acaba por poupar dinheiro aos pacientes.

O número de indivíduos que se submetem ao PEARS tem vindo a aumentar. No ano passado foram 17; este ano serão mais de 20. Vai demorar até que o implante compense todo o investimento, mas Golesworthy mostra-se otimista. “As coisa está a animar”, diz, entusiasmado. “Temos novos cirurgiões e novos centros. Tratámos recentemente quatro pacientes na Nova Zelândia, e todos ficaram muito satisfeitos. Temos centros na República Checa, há dois prestes a começar na Polónia e vamos ter mais dois no Reino Unido.”

O número de indivíduos que se submetem ao PEARS tem vindo a aumentar. No ano passado foram 17; este ano serão mais de 20. Vai demorar até que o implante compense todo o investimento, mas Golesworthy mostra-se otimista. "As coisa está a animar", diz, entusiasmado.

No que diz respeito ao futuro do PEARS a mais longo prazo, Pepper está confiante. “Provámos que funciona”, afirma. Não vê este procedimento a substituir por completo os outros dois que existem. Os pacientes cujo síndrome de Marfan não seja hereditário podem estar menos informados e, desse modo, quando procuram ajuda a sua condição poder estar numa fase avançada. Tentar utilizar uma manga numa aorta muito dilatada e, consequentemente, frágil pode acabar por causar a calamidade que o PEARS pretende evitar. Mas abaixo de um determinado tamanho, Pepper vê este procedimento a tornar-se o padrão: “Se o paciente procurar tratamento numa fase inicial da doença e a aorta estiver dilatada, mas não desmesuradamente, o PEARS é a opção certa.”

Os futuros pacientes com síndrome de Marfan que se perguntem a quem devem agradecer o humilde tecido que os mantém vivos ficarão certamente curiosos ao descobrir as suas origens. Qualquer gratidão que sintam deverá ser repartida entre os seus cirurgiões e um engenheiro persistente e obstinado: alguém que também tinha síndrome de Marfan e achou que sabia melhor do que os seus médicos como tratar o seu problema – e tinha razão.

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