Lula tinha feito um único pedido para o jantar oferecido pelo Presidente português no sábado à noite, no Palácio da Ajuda: bacalhau. O desejo foi concedido, mas Marcelo Rebelo de Sousa — que chamou o Presidente brasileiro de “amigo” quatro vezes num discurso de dez minutos — tinha mais para oferecer: apoio na UE para um acordo com o Mercosul e a exigência de que o Brasil tenha um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, instituição liderada por esse, sim, “amigo” de longa de data de Marcelo (António Guterres).
No jantar, Marcelo vestiu a pele de alto diplomata, uma das funções presidenciais, e centrou-se nas relações externas. Se o ministro Gomes Cravinho é o CEO da diplomacia, o Presidente assumiu-se como uma espécie de chairman. Que não deixou, nas entrelinhas, de enviar recados sobre a Guerra na Ucrânia a Lula da Silva. O Presidente português quer um “um Brasil mais presente, mais ativo, mais atuante, através de uma ação multilateral na ONU”, instituição cuja “reforma não deve excluir o Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança.”
Marcelo disse, ao lado de Lula e da sua mulher Janja, que o Brasil deve seguir na sua política externa (isto dias depois do presidente brasileiro ter estado com Xi Jinping e Sergei Lavrov) um multilateralismo que inclua a “defesa intransigente do direito internacional”, os “princípios da integridade territorial e da segurança entre Estados”. O Presidente português — sugerindo que ainda não o é — diz que Portugal precisa que o Brasil seja “um aliado por excelência também aí, no reforço das democracias e no respeito pelos direitos humanos”.
Recados à parte, o clima foi sempre amigável entre ambos no jantar. Lula da Silva voltou, quando foi a vez dele de discursar a fazer uma graça com o jacaré no Lago do Paranoá, onde o Presidente português nadou em janeiro. “Ele ficou genuinamente chocado com a loucura do Marcelo de ter mergulhado, por isso é que repetiu”, contou ao Observador uma das entidades presentes no jantar, que decorreu fechado à comunicação social, e de onde apenas foi disponibilizado, nas redes sociais da Presidência o discurso de Marcelo (Lula optou por não o tornar público).
Os bróculos bimi e o fado tropical do Chico (com mira em Bolsonaro)
Até na ementa, os esforços diplomáticos não falharam. O prato principal foi precisamente aquele que Lula da Silva tinha pedido na conferência de imprensa com Costa horas antes. Bacalhau, mas não um qualquer: Lombo de bacalhau dom puré de grão e brócolos bimi. A sopa, não foi Vichyssoise, mas um quente creme de tomate com ovo e rebentos de soja. E a sobremesa uma mousse de chocolate, morangos macerados em Porto e molho de baunilha. Já os vinhos ficaram um Azul de Ventozelho de 2021 do Douro e Valado 3 Melros, também do Douro, mas de 2019. Os convidados puderam ainda contar com digestivos/aperitivo um Madeira Justino’s 3 anos e um Porto Noval 10 anos.
Satisfeito o desejo de requinte, Marcelo trataria também dos afetos. Desde logo, falou da “honra acrescida” que era o “bom amigo” Lula da Silva ter escolhido Portugal para a sua primeira visita oficial na Europa. E deixaria o mesmo bombom de Costa: utilizar o Prémio Camões para atacar o maior inimigo interno de Lula da Silva: Jair Bolsonaro.
Costa e Lula culpam Bolsonaro e prometem tirar relações Portugal-Brasil das águas de bacalhau
No discurso, o Presidente português destacava “a poesia de Ruy Guerra e de Chico Buarque de Hollanda, a quem teremos a alegria há muito esperada de juntos entregar o prémio Camões 2019, que dou voz a esta mensagem de boas-vindas, evocando o emblemático fado tropical“. E começou a citar o início da música, com métrica e entoação de poema, dispensando a musicalidade:
Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata!
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Marcelo parou precisamente quando ia entrar na parte da letra que diz que falta ao Brasil “cumprir o seu ideal” e transformar-se “num imenso Portugal”. Em metáforas musicais, o Presidente português já repetiria antes, no mesmo discurso, que a relação entre Portugal e Brasil era “única” e que “será então esse o nosso fado, o de um Portugal que não esquece quem ama, que quer encontrar quem porventura se perdeu e os portugueses que nunca se poderão sentir estrangeiros no Brasil, como nunca serão para nós estrangeiros os brasileiros que vivem em Portugal.”
Tanto se falou de fados mais ou menos tropicais, que uma das atuações foi de Camané. O Quarteto de Cordas da Guarda Nacional Republicana também faria uma atuação no jantar em que Marcelo Rebelo de Sousa foi o anfitrião, tendo sido ele, com a ajuda do ministério dos Negócios Estrangeiros, a escolher os convidados.
Voltando ao discurso de Marcelo, o chefe de Estado português destacou ainda os “tempos de incerteza” para a “evolução da paz, da política e da economia internacionais” que só juntos (“par a par”) os países conseguem ultrapassá-los. Marcelo citou na ocasião o arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer: “Quando se vê um arvoredo, o importante não são as árvores, mas os espaços entre elas.” E acrescentou: “Portugal e o Brasil precisam de cuidar desses espaços comuns, ligando convictamente o acervo que nos une: a Língua Portuguesa, a mais falada no hemisfério sul”.
O brinde à “felicidade pessoal” de Lula
Várias figuras da política nacional fizeram questão de ir ao jantar e cumprimentar Lula da Silva. Exemplo disso são a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, ou líder do Livre, Rui Tavares, que foi de cravo na lapela (e segundo fontes presentes ouvidas pelos Observador terá feito críticas da governação de Carlos Moedas junto de alguns convidados). O antigo primeiro-ministro Francisco Pinto Balsemão ou o antigo candidato presidencial António Sampaio da Nóvoa também estiveram presentes.
Vários ministros marcaram igualmente presença (quer brasileiros, quer portugueses). A ministra Adjunta Ana Catarina Mendes, por exemplo, estava na mesma da ministra da Igualdade Racial brasileira, Anielle Franco, do presidente do CES, Francisco Assis, dos ministros da Cultura dos dois países, Pedro Adão e Silva e Margareth Menezes.
Todos corresponderam ao repto presidencial, quando Marcelo Rebelo de Sousa propôs um “brinde pela saúde, a felicidade pessoal do presidente Lula da Silva e da primeira dama, pela felicidade e progresso do querido povo irmão brasileiro”. E, olhando para Lula e Janja, citou Carlos Drummond de Andrade: “Sempre necessitamos ambicionar alguma coisa que, alcançada, não nos faz desambiciosos.”