O que é a Direita? De quantas faces é feita como se revelam? E como se relaciona com a Esquerda? São algumas das perguntas que geraram o ponto de partida para o novo livro de Jaime Nogueira Pinto, cronista do Observador e autor de mais de duas dezenas de livros, sobretudo relacionados com História e Ciência Política.
Mas se a definição de Direita (ou “das Direitas”) está na génese deste título, outra motivação era a de Nogueira Pinto, que defende que a Direita é muitas vezes associada a redutos e preconceitos que não a explicam nem a querem entender na sua abrangência. Sobretudo quando colocada em oposição face à Esquerda, que diz exercer um domínio cultural no espaço euro-americano desde há muito.
Neste excerto do livro “De Que Falamos Quando Falamos De Direita”, da Bertrand Edidora, que chegará às livrarias no próximo dia 21 e de que o Observador faz a pré-publicação, Jaime Nogueira Pinto faz uma viagem pela Direita desde os Pais Fundadores do país até à mais recente eleição de Donald Trump, tendo também como protagonista o vice-presidente eleito, J.D. Vance.
O Verão de 2024 vai ficar como mais um Verão quente. Na Europa, no Médio-Oriente, na América. Temos uma memória histórica de verões quentes e de consequências trágicas ou até apocalípticas; talvez entre todos o de 1914, o que começou em Sarajevo, com a morte do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do império dos Habsburgo, e da sua mulher, Sofia Chotek.
Nessa manhã de princípio de Verão, na cidade servo-otomana, acabava o “mundo de ontem” de Stefan Zweig e começava o mundo de hoje – o mundo que é capaz de estar agora a acabar. Há uma infinidade de ilustrações da época que cristalizam o momento em que um dos conspiradores, já em retirada, vê a poucos metros o carro do Arquiduque. O chauffeur enganara-se no caminho e desse “engano” nascia o mundo contemporâneo.
A nós, portugueses, as imagens do casal Habsburgo na clássica pose de vítimas, trazem-nos à memória as de D. Carlos, de D. Amélia e de D. Luís Filipe no Terreiro do Paço, com o Buíça a disparar a carabina Winchester 1907 e o Costa a acabar o Rei com um tiro à queima-roupa pelas costas. Em Sarajevo, os Arquiduques foram também vítimas dos tiros certeiros de um terrorista de dezanove anos, Gravilo Princip, que usou uma pistola Browning FN 1910, uma arma semiautomática. O cérebro da operação teria sido o chefe da Inteligência Militar sérvia, o coronel Dragutin Dimitrijevic, a quem, pela pesada corpulência, chamavam “Apis” ou, mais explicitamente, “o Touro”. Apis era o chefe da “Mão Negra”, um grupo terrorista clandestino já com um considerável currículo de magnicídios: Alexandre I da Sérvia, a rainha Draga e uma série de ministros em Belgrado, na Primavera de 1903. Alexandre I era da dinastia dos Obrenovic, descendente de Milos Obrenovic, que chefiara em 1815 a insurreição contra os otomanos. Como os reis assassinados não deixaram filhos, a Assembleia Nacional sérvia entronizou Pedro Ǘaradordevic, de uma outra linhagem principesca. Havia uma diferença importante: os Obrenovic eram pró-Áustria e os Ǘaradordevic pró-Rússia. O resultado não foi muito diferente do da chamada “revolução da dignidade”, em 2013-2014, na Ucrânia, com a substituição de pró-russos por pró-ocidentais.
Voltando a esse longínquo Verão de 1914, a morte do arquiduque e da arquiduquesa desencadeou a conhecida escalada de arrogâncias e exigências – e de humilhações e cedências – que, juntamente com um emaranhado de alianças e compromissos diplomáticos e militares, levaria à vertigem suicida da guerra.
Foi um mês de Julho em que a alta diplomacia europeia, de Viena a Paris, de Berlim a São Petersburgo, e os chefes daquele mundo – reis, chanceleres, diplomatas, generais – se desdobraram em afirmações de princípio. Em Berlim, no dia 5 de Julho, ao almoço, sem consultar o Chefe do Governo, von Bethman Hollweg, o kaiser Guilherme II, indignado com a morte do seu amigo Francisco Fernando, garantiu ao ministro austríaco dos Negócios Estrangeiros o apoio incondicional da Alemanha. Um cheque em branco para lidar com a crise. E foi o princípio do fim desse mundo de ontem.
Trump, na mira
No Verão de 2024, cento e dez anos depois de Sarajevo, um atirador solitário, Thomas Crooks, um ano mais velho que Princip, talvez também movido pela fixação do Mal num líder político, quis matar um antigo presidente americano, disparando de um telhado onde conseguira instalar-se, a menos de 150 metros do alvo, por notória falha da segurança. O alvo, Donald Trump, tinha vindo a ser assim designado por um discurso que, se viesse dele ou dos dele, seria considerado “discurso de ódio”. Porém o seu rival de então, o Presidente Joe Biden, ao dizer literalmente que o queria pôr no centro da mira, mais não fizera que repetir uma velha narrativa generalizada e validada pelos “poderes instituídos”.
Discurso figurado, evidentemente; e como era contra o Mau da Fita, contra o Mefistófeles fáustico da extrema-direita, inteiramente aceitável. Entretanto os tiros de Crooks mataram um homem no comício republicano, feriram mais dois e lançaram o pânico. Mas ao alvo, só lhe passou uma bala de raspão pela orelha. E levantou-se ensanguentado e icónico, de punho cerrado, incitando à luta.
Na assombrosa narrativa de alguns comentadores locais, chegou a sugerir-se a tese da encenação. Porque não? Afinal, “o Diabo” escapara, o atentado funcionara a seu favor, e era sabido que “os nazis e os fascistas eram mestres na encenação”.
Na segunda-feira, 15 de Julho, na abertura da Convenção Republicana, esperava-se a escolha do Vice-Presidente; uma escolha decisiva, dada a expectativa de mudança de ciclo na América.
As hipóteses eram muitas, quase uma dezena: meia dúzia de mulheres, dois negros e três ou quatro brancos, uns mais jovens outros mais velhos. Marco Rubio, “o little Marco”, adversário de Trump nas primárias 2016, descendente de cubanos fugidos para os Estados Unidos, católico, representante e depois senador pela Florida e agora indefectível no apoio ao Trump, que antes o apoucara, era um deles; Nikki Hailey, também antiga adversária, representante dos republicanos ditos “tradicionais”, era outra; Tim Scott, senador negro da Carolina do Sul, outro ainda; e, por fim, J. D. Vance, senador pelo Ohio, protagonista e contador de uma história muito americana, Hillbilly Elegy (2016), outrora crítico feroz de Trump. Sem grande surpresa, foi Vance o escolhido pelo “miraculado” Trump, poupado pelo Destino às balas assassinas.
Mas o que era feito e o que é que tinha ficado do conservadorismo americano, depois de Donald Trump ter conquistado a liderança republicana, neutralizando qualquer concorrência, como em 2016 neutralizara os políticos tradicionais do partido, nos debates das primárias?
Uma coisa era certa: a paisagem mudara. As classes trabalhadoras e parte das classes médias reagiam agora perante as consequências do globalismo financeiro e dos seus custos para a indústria americana, voltando-se para a “direita populista”.
Já havia mais trabalhadores na direita do eixo político do que na esquerda e no centro. Talvez também pela percepção de que a nação e o nacionalismo podiam ser a defesa, a grande defesa, dos seus interesses. Significativamente, o Presidente da International Union of Teamsters, um dos maiores sindicatos norte-americanos, discursara na Convenção Republicana de 2024 e não comparecera na Democrática. Embora a direcção do sindicato dos camionistas como tal não apoiasse nenhum dos candidatos, era sabido que a maioria dos associados votava Trump.
Esta mudança no panorama nacional e, consequentemente, na direita americana, passava por uma europeização, com a introdução ou reposição do Estado nacional como valor político e poder arbitral na ordem económica – onde o mercado dos conservadores clássicos deixara de ser rei e senhor.
Assim, a direita conservadora norte-americana tornava-se menos hamiltoniana, no sentido elitista, e mais popular ou populista, ou mesmo mais progressista, em matérias sociais.
O pai da direita americana, ou da Direita na América, foi Alexander Hamilton. Filho ilegítimo de um progenitor ausente, James Hamilton, um comerciante escocês, e de Rachel Faucette Lavien, uma anglo-francesa casada com outro homem, Alexander Hamilton nasceu em 1754 em Charlestown, Saint Kitts and Nevis, nas chamadas Índias Ocidentais. Aos quinze anos foi estudar para Nova Iorque e tornou-se um entusiasta da independência. Serviu como capitão de uma companhia de artilharia no exército de Washington, distinguindo-se em várias batalhas. Acabou como ajudante do próprio Washington.
Depois da guerra, foi delegado no Congresso de Filadélfia, numa assembleia legislativa e executiva que partilhava o poder com o Presidente, e em 1781 fundou o Banco de Nova Iorque. Hamilton foi nomeado Secretário do Tesouro no primeiro governo de Washington, criou o First Bank of the United States e defendeu o papel do Estado como dinamizador da economia norte-americana e a criação de uma poderosa indústria nacional que potenciasse uma defesa forte e dissuasora. Mas para tal era preciso que a Confederação passasse a Federação; isto é, que houvesse um poder americano central. Hamilton bateu-se por isso.
Era um pessimista antropológico que, no rasto de Maquiavel e de Hobbes, achava que o bem comum devia prevalecer sobre os interesses individuais. Para ele, a natureza humana era mais má do que boa, movendo-se por paixões e interesses privados: havia, pois, que considerar “o lado negro da humanidade”.
Hamilton integrou-se na sociedade de Nova Iorque pelo percurso político e militar e pelo casamento com Elizabeth Schuyler, uma “menina de família”. Era um conservador ao modo de Burke, que ao culto das grandes palavras abstractas contrapunha a valorização das instituições que passavam a prova do tempo. E ao contrário dos futuros conservadores norte-americanos, hostis ao “estatismo” do New Deal e à regulação económica em geral, era partidário de um governo federal forte, interventor através do controlo do crédito e de um banco central capaz de estimular as empresas industriais da nova nação americana para a tornar independente da economia inglesa e de outros impérios europeus.
Uma expressão importante da direita conservadora anglo-americana de Hamilton é a sua polémica sobre os valores e o sentido da Revolução Americana com outros Founding Fathers, como Thomas Jefferson, James Madison e o governador de Nova Iorque, George Clinton (contra o qual se batera – e fora eleitoralmente derrotado – o general Philip Schuyler, seu sogro).
Na polémica, Jefferson alinhava com as posições mais à esquerda, como a defesa da Revolução Francesa em nome dos direitos humanos feita por Thomas Paine (que acabaria por passar um mau bocado em França no tempo de Robespierre e do Terror), e Hamilton com o cepticismo crítico de Burke. Hamilton queixava-se, numa carta a Washington, das “maquinações” de “Mr. Jefferson” e da sua perene inimizade. Jefferson era Secretário de Estado na Administração Washington e favorecia uma aproximação a França, enquanto Hamilton privilegiava a Inglaterra.
Quer pelo seu pessimismo antropológico, quer pelo seu conservadorismo burkeano e pela polémica que manteve com os Founding Fathers mais radicais, não parecem restar dúvidas de que Hamilton se situava “à direita”; uma direita que diríamos nacional-conservadora, acrescentando à visão mais tradicionalista e estética de Burke, autor das Reflections on the Revolution in France, a dinâmica de uma nova Nação, sempre com a sua quota de revolução e ruptura.
Porém, como observaram os biógrafos de Hamilton, na esteira de Clinton Rossiter, o homem-Hamilton, radicalmente silencioso sobre a sua vida e sentimentos privados, permanecia um enigma. Estávamos, nesse fim do século XVIII, nos alvores do romantismo, do confessionalismo, num tempo em todos falavam de si e do seu “eu”, de Rousseau aos românticos alemães e ingleses. Hamilton “permanecia calado”.
Ao mesmo tempo, na vida pública – na sua visão para a Constituição, no seu contributo para os Federalist Papers, como Secretário do Tesouro ou como conselheiro de política externa e da criação e reforma das forças armadas – mostrava empenhamento, sentido de realidade e sentido de grandeza, a necessidade de pensar, planear e executar em grande.
Assim poderíamos dizer, com Clinton Rossiter no seu Alexander Hamilton and the Constitution, que os Estados Unidos são “um país mais hamiltoniano do que jeffersoniano”. Porém, olhando para os valores dos dois Founding Fathers, tantas vezes apresentados como rivais, também poderia e deveria reconhecer-se, com Louis Hacker, uma complementaridade:
“Os americanos são jeffersonianos porque acreditam na liberdade humana, na dignidade do indivíduo, no seu direito de dissidência, na repartição do poder; e hamiltonianos porque querem instituições políticas estáveis, um governo sério nas suas relações internas e externas, livre empresa e a liderança dos inovadores privados que sabem arriscar.”
Alexis de Tocqueville problematizou bem esta rivalidade Jefferson/Hamilton na tradição política norte-americana ao reflectir sobre a tensão permanente entre os valores da democracia liberal – Igualdade e Liberdade – e o risco da “tirania da maioria”. Para Rousseau, que Talmon considerou um dos pais da Democracia Totalitária, não havia contradição ou risco possível porque “os homens só podiam ser livres se fossem politicamente iguais”.
No entanto, como Tocqueville suspeitara e a História dos últimos 250 anos o demonstraria, não seria bem assim. Nesta como em muitas outras coisas “o passeante solitário” de Genebra enganara-se. Sonhara.
Jefferson e o idealismo jeffersoniano tinham outra base; uma base especificamente americana: se havia povo escolhido por Deus, era o povo que trabalhava na terra, o povo no qual o Criador depositara a genuína virtude.
Esta versão agrária e popular da América de Jefferson contrastava com a concepção nacionalista, centralista e industrializada de Hamilton. Para Hamilton o modelo colonial inglês que os patriotas tinham vencido era, na forma de gerir o Estado, o mais eficaz para governar os Estados Unidos independentes.
Este modelo – poder central forte, unidade nacional dentro da diversidade dos Estados, industrialização, caminhos-de-ferro – é o que emerge da vitória do Partido Republicano e do Norte na Guerra Civil. (Embora o agrarismo esclavagista do Sul, exaltado por John Caldwell Calhoun, estivesse, à partida, mais ligado à imagem de uma sociedade tradicional desigual, o romantismo nostálgico da sua “causa perdida” persistiria na Literatura e no Cinema norte-americanos do século XX.)
No final do século XIX, em reacção à linha que considerava oligárquica dos republicanos e democratas, apareceu o Partido Populista, com raízes e força no Sul e no Oeste dos Estados Unidos. Os populistas apoiaram William Jennings Bryan, do Partido Democrata, na eleição de 1896. Mas o republicano William McKinley venceu Bryan, e o populismo como força política partidária perdeu então importância.
Tudo isto mudou no século XX, depois da Grande Guerra e das revoluções totalitárias e autoritárias na Europa. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha foram poupados à radicalização, mantendo-se em linhas clássicas de conservadorismo versus progressismo, numa evolução ideológica dentro da continuidade das instituições.
Na América, teve grande impacto social a proibição de produção, distribuição e consumo de bebidas alcoólicas, que impulsionou a criação e multiplicação do crime organizado – tal como Hollywood influenciou os valores e a política da América, num tempo extremamente politizado entre guerras.
O conservadorismo americano, ou na América, seguiu este trilho, respondendo também ao que ali passou a ser a Esquerda. Nos anos 30, o New Deal, com os seus aspectos económicos mais estatistas ou socializantes, reforçou o liberalismo económico e a defesa da propriedade e da iniciativa privada como valores centrais da Direita ou à direita – não esquecendo as correntes mais radicais, como o primeiro America First, de Charles Lindbergh, mais próximas das direitas revolucionárias europeias.
No pós-Segunda Guerra, a comunidade intelectual ligada aos estúdios de Hollywood tendia para a Esquerda, com excepções mais conservadoras, como o produtor e cineasta Cecil B. DeMille e os actores Gary Cooper e James Stewart. Ou mesmo Ronald Reagan, o futuro campeão do conservadorismo americano, que foi por muitos anos presidente do Sindicato dos Actores e se distinguiu por posições anticomunistas.
Como sempre, o inimigo fez o amigo. O comunismo soviético e o estatismo de F. D. Roosevelt no New Deal fez com que os conservadores se tornassem grandes defensores do liberalismo económico. E assim continuaram passado o “nacionalismo iliberal” do America First de Lindbergh. Mas é depois das derrotas – de Nixon, em 1960, e de Goldwater, em 1964 – que vem a primeira Nova Direita, que ganha com Nixon, em 1968 e 1972, recua com ele depois do Watergate e triunfa com Reagan. E dá volta à América e ao mundo ao ganhar a Guerra Fria em 1989-1991.
O meteoro
Donald J. Trump chegou à política como um meteoro. Foi a partir de 2012, bem passado dos sessenta anos, que o milionário do imobiliário de Nova Iorque deu os primeiros passos entre aqueles que iriam ser os “seus” – a América popular conservadora, cansada das administrações Clinton e Obama, mas também desiludida com o internacionalismo democrático de George W. Bush, orientado pelos neoconservadores na resposta ao 11 de Setembro. Resposta que se saldara em longas e distantes guerras para converter às instituições da democracia liberal euro-americana as periferias perigosas do Iraque e do Afeganistão.
Quando Trump apareceu na campanha eleitoral de 2016 e começou a destratar os candidatos conservadores – Marco Rubio, Ted Cruz, Jeb Bush –, era justa a indignação e a irritação republicana: quem é que aquele recém-chegado, vindo do coração “liberal chic” de Nova Iorque, julgava que era, para tratar assim os velhos routiers do conservadorismo? Mas, estranhamente, os destratados – mais de uma dezena – não se uniram contra ele e o estranho foi ganhando os votos dos republicanos nos Estados da União.
Antes da vitória de Trump nas primárias falei a Edwin Feulner Jr., republicano, católico e conservador, fundador e alma da Heritage Foundation, e fiz-lhe a velha pergunta leninista: “Que fazer?”; “Agora ou é ele ou a Hillary”, foi a resposta.
E “a Hillary”, Hillary Clinton, encarnava precisamente tudo aquilo que Trump, entretanto, abandonara por outras lealdades. Ou seja, independentemente das suas motivações e personalidade, Trump pegara na América popular e conservadora, alheada das agendas progressistas dos departamentos de Ciências Sociais das universidades da Costa Leste e da Califórnia, endossadas e repetidas por uma imprensa de referência alheada do “povo”, uma América descrente da utilidade do envolvimento em guerras intermináveis, ditadas por lobbies de armas e de opinião e justificadas com chavões ideológicos.
Trump tornou-se assim campeão dos “deploráveis”, mas também da classe média branca e dos fiéis que o aceitavam apesar da sua acidentada biografia, perante a promessa de que defenderia os valores em que acreditavam.
Ao tempo, Donald John tinha o conselho estratégico de Steve Bannon e fez nos últimos dias de campanha os curtos mas eficazes raids no Rust Belt, onde estavam os brancos pobres, arruinados pela desindustrialização e pela migração das empresas: do automóvel, do aço, das minas. Foi o que lhe deu a vitória nos chamados Swing States que, entretanto, em 2020, perderia para Biden, um democrata não-elitista, católico, moderado e popular, que colhia apoio entre o operariado branco. Porém, quando no poder, Joe Biden iria render-se aos poucos às elites do sistema e às minorias esquerdistas do Partido Democrata.
Em 2024, levado pela intuição, Trump resolvia recrutar o seu vice na cintura industrial norte-americana ou na “cintura da ferrugem”.
“Vance Vincit”
Vindo directamente do coração do Rust Belt, J. D. Vance era um homem de convicções e de valores que, por ser também um homem de pensamento e de escrita, tinha documentado a sua história intelectual e de vida numa pequena memória publicada em The Lamp, explicando a sua conversão ao catolicismo, em 2019.
James David Vance começava ali por falar de uma presença determinante na sua vida, ou no princípio da sua vida: “Mamaw”, a avó paterna. Mamaw era uma mulher de fé, mas alheia, senão hostil, às religiões organizadas. Gostava de Billy Graham, (o pastor baptista que lançara nos anos 50 as cruzadas radiofónicas de evangelização) e simpatizava com F. D. Roosevelt e H. R. Truman – dois presidentes democratas.
Em 2005, J. D., alistado nos Marines, partia para o Iraque. Era então, confessava, “um jovem idealista decidido a espalhar a democracia e o liberalismo pelas nações atrasadas do globo”. Mas em 2006 voltava “céptico quanto à guerra e à ideologia que a justificava”. Nesse tempo, considerava-se ateu, ocultando-o da família. Porém, se o conservadorismo social lhe passara com o ateísmo, o liberalismo económico mantivera-o fiel aos republicanos. Lia Christopher Hitchens, historiador e jornalista anglo-americano e um dos “Quatro Cavaleiros do Novo Ateísmo”. Com Richard Dawkins, Sam Harris e Daniel Dennett, Hitchens fazia parte integrante da campanha cultural contra as religiões.
Hitchens (1949-2011), autor de God is not Great: How Religion Poisons Everything, inicialmente um homem de esquerda radical, tornara-se um liberal progressista e ateu militante, para quem “o amor cristão” era coisa “mais da Coreia do Norte do que da América”. Vance reagia a este e a outros absurdos, mas permanecia céptico. Depois, com o sucesso da carreira universitária, primeiro na Universidade de Ohio, depois em Yale, com o convívio com as elites da Nova Inglaterra, o seu cepticismo fora-se cristalizando num meritocracismo elitista, sem que, no entanto, isso o fechasse à crítica e à alternativa.
E a alternativa ia chegar-lhe pela mão do Santo Agostinho de A Cidade de Deus, que se pusera a ler por indicação de um professor da Universidade de Ohio.
A propósito do Livro do Génesis, Agostinho escrevia sobre “matérias obscuras e muito para além da nossa compreensão” e sobre outras em que “eram possíveis diferentes interpretações, sem prejuízo para a Fé”. Um não-cristão podia discorrer acertadamente, “pela razão e pela experiência”, sobre as coisas “da terra, dos céus e de outros elementos deste mundo”; e um cristão, embora certo nas coisas de Deus e do Além, podia, sobre as coisas terrenas, “só dizer disparates” – levando o não-cristão a considerar falsas as Escrituras e coisas de outra ordem, como matérias que tratavam “da ressurreição dos mortos e da esperança na vida eterna no reino dos céus”.
Para o jovem J. D. Vance, que então dividia o mundo em crentes (ignorantes e boçais) e agnósticos, ateus ou livre-pensadores (sofisticados e inteligentes), Santo Agostinho, que lera por dever académico, ia ser importante.
Houvera depois um encontro, em 2011, que também o iria transformar: uma conferência em Yale de Peter Thiel, o bilionário co-fundador do PayPal e do Facebook. Estranhamente, Thiel, “the smartest person” que J. D. alguma vez encontrara, era cristão. Afinal havia crentes inteligentes, ou até brilhantes e bem-sucedidos nos negócios.
Estava instalada a dúvida crítica, o ponto de partida de todas as dissidências e conversões. Nos anos seguintes, ao longo de uma carreira profissional exemplar, Vance fora lendo. Continuara com Santo Agostinho, mas conhecera também o pensamento do filósofo francês expatriado nos Estados Unidos René Girard, o teórico da mimésis e do desejo mimético, o “Darwin das ciências humanas” do século XX. Na sua teoria mimética, Girard filiava muito do comportamento humano na vontade de imitar os outros. Daí vinha a tese antropológica da violência e da catarse social nas sociedades primitivas, através do sacrifício e do “bode expiatório”. Cristo teria sido o primeiro “bode expiratório” consciente, expiando voluntariamente “o pecado do Mundo”.
O pensamento de Girard é muito rico, com pistas importantes para entender o mundo moderno. Girard nasceu em Avinhão, no dia de Natal de 1923, de um pai republicano anticlerical e de uma mãe católica praticante. Foi para os Estados Unidos a seguir à Segunda Guerra, em 1947. No início da década de 60, quando preparava o livro Mensonge romantique et vérité romanesque, encontrou-se com Dostoiévski e o seu mundo, um mundo que ia dos Irmãos Karamazov a O Eterno Marido, do exemplar e cristianíssimo Aliocha Karamazov, ao estranho triângulo do marido, do amante e da mulher morta de O Eterno Marido. E foi a partir do mundo de um Dostoiévski oscilante entre momentos de fé profunda e grandes crises de fé que Girard encontrou, no princípio dos anos 60, a porta para Cristo.
Vance publicou em 2016 o seu itinerário de rapaz pobre da Appalachia. Nascera em Middletown, Ohio, em 1984, de pai alcoólico e mãe inconstante em companhias masculinas mas constante no consumo de drogas. Salvara-o a avó paterna, a tal Mamaw, modelo de mulher forte da Bíblia e das montanhas da Appalachia, que o educara numa religiosidade onde o Bem e o Mal estavam bem definidos. Era, literalmente, uma mulher de armas – tinha quase vinte em casa –, as armas dos velhos americanos da fronteira para se defenderem dos “maus”, porque o Xerife estava longe: “She loved the Lord she loved the f-word, that’s what Mamaw was”, escreve Vance.
A revolução no Bom Velho Partido
Entretanto, em 2019, Vance converte-se oficialmente ao catolicismo, baptiza-se e recebe a comunhão numa igreja de padres dominicanos, não longe de casa.
Reagira muito mal ao aparecimento e triunfo de Trump. Usara até contra o recém-chegado ao Partido Republicano os argumentos mais extremos, comparando-o a Hitler, o símbolo do Mal absoluto. Não faltariam depois mensagens a lembrar o seu passado recente de anti-trumpista radical.
Mas em 2016, perante a pós-moderna “celebridade” do negócio imobiliário e do show business televisivo, era natural que alguém com o itinerário de Vance estranhasse o recém-chegado e o associasse simultaneamente ao modelo de tudo o que era política e humanamente excêntrico e tresloucado na História e ao pior das “elites liberais”. Mas logo entre Hillary e Trump a sua escolha seria pelo mal menor. E, como presidente, Trump não fora afinal Hitler ou, tão pouco, o Diabo.
O que acontecera a J. D. Vance? Num longo artigo do Washington Post, Simon van Zuylen-Wood procurou responder à pergunta, não hesitando em falar do senador do Ohio como um dos representantes do “populismo intelectual”, uma nova categoria do pós-liberalismo ou do nacional-conservadorismo americano: “Profundamente católico, definitivamente anti-Woke, céptico em relação ao big business, nacionalista quanto ao comércio e às fronteiras e com alguma simpatia pelo primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán.”
Aparentemente, D. J. Trump esquecera as ofensas de J. D. Vance. Apesar de amplamente diabolizado pelos media e de se ter tornado alvo dos paranóicos em que a nação americana parece pródiga, Trump sabia que tinha a lealdade do núcleo duro do povo republicano. Escolher Vance fora um acto de inteligência política.
Trump é um político tardio que se tornou campeão de uma tribo maioritariamente branca e cristã, mas que está a crescer também entre as tribos ditas minoritárias da América. Dos 246 milhões eleitores norte-americanos, há 36 milhões de eleitores “latinos”, 34,5 milhões negros ou afro-americanos e 15 milhões asiáticos. Ou seja, cerca de 30% dos votantes pertencem a estas categorias.
Em meados de Julho de 2024, segundo o Pew Research Center, notava-se uma evolução significativa no voto dos “latinos”: em 2020, 61% tinham votado por Biden; depois do debate de 27 de Junho e do atentado contra Trump de 13 de Julho mas ainda antes da desistência de Biden e da sua substituição por Kamala Harris, os dois candidatos estavam empatados no “voto latino”. Já entre os afro-americanos, era grande a diferença entre Biden e Trump, com 77% para Biden e apenas 18% para Trump. Mesmo assim, Trump progredira desde 2020 no voto negro. Quanto aos asiáticos, onde se observava uma grande intenção de participação nos actos eleitorais, a maioria (50%) inclinava-se claramente para Biden, com cerca de 30% para Trump. Cinquenta e cinco por cento destes eleitores estavam concentrados em cinco Estados, sobretudo na Califórnia, mas também em Nova Iorque, no Texas, no Hawai e em New Jersey.
Para onde vai hoje o Partido Republicano, o Grand Old Party, o GOP, o Bom Velho Partido de Lincoln, Ted Roosevelt, Nixon e Reagan? Porque o Partido Republicano, tal como o Partido Democrata e a política norte-americana, tiveram já várias formas, modos, valores. E passaram por transformações e reencarnações. Em 1956, na primeira eleição americana de que me lembro, o republicano Eisenhower arrasou o candidato democrata Adlai Stevenson. O curioso é que os sete Estados que votaram democrata eram, em parte, do Sul profundo – as Carolinas, o Alabama, a Geórgia… Em 1960, quando já havia aqui televisão, lembro-me do duelo J. F. Kennedy/Richard Nixon, muito cerrado no voto popular (Kennedy teve pouco mais de 100 mil votos que Nixon, em cerca de 70 milhões de votantes, mas teve 303 votos do Colégio Eleitoral contra os 219 de Nixon). No tempo de Kennedy, a “questão racial” tornou-se, com a guerra do Vietname, a questão central na eleição. E em 1964 o republicano Barry Goldwater teve maioria apenas em seis Estados, o seu Arizona natal e os pilares da Confederação – Louisiana, Mississippi, Alabama, Geórgia e Carolina do Sul.
Da derrota funda e profunda de Goldwater nasceu um movimento que alertava a Direita para a importância da “batalha cultural”. Criaram-se depois think-tanks e fundações, como a Heritage Foundation de Edwin Feulner Jr., que iriam ser decisivos. Mil Novecentos e Sessenta e Oito viu a vitória de Nixon, com uma “Southern Strategy” – mais popularizada que inventada por Kevin Phillips – que roubou terreno aos democratas; ao mesmo tempo George Wallace, o eterno governador do Alabama, roubava também ao democrata Hubert Humphrey parte do Sul Profundo. Nixon ganhava em 32 Estados, Humphrey em 13 e em Washington DC e Wallace vencia nos cinco pilares da Confederação.
E em 1972, Richard Nixon alcançava a maior vitória da história eleitoral dos Estados Unidos, ganhando em 49 Estados da União, isto é, em todos menos no Massachussetts, contra George McGovern da esquerda democrática. A percentagem nacional de votos era 60,7% contra 37,5%. Na eleição, pela primeira vez, os maiores de dezoito anos puderam votar graças à 26.ª Emenda à Constituição, que baixara a maioridade eleitoral de vinte e um para dezoito anos.
Eleito pela maior maioria de sempre, em votos populares e votos no colégio eleitoral, Nixon ia ser vítima do escândalo de Watergate, um caso que marcaria profundamente o poder americano e as regras do jogo em Washington. Seguir-se-ia o tempo de Gerald Ford, derrotado por curta margem por Jimmy Carter, um “Process President”, isto é, alguém que privilegiava os métodos, processos e instrumentos da política sobre os conteúdos políticos. Carter não tinha programa, era indeciso, perdeu o Irão do Xá para os Aiatolas e foi responsável pelo Ocidente na segunda metade dos anos 70, quando a União Soviética parecia estar, país a país, a ganhar o mundo (ainda que estivesse a caminho da “queda final”, como nos assegurava em 1976 Emmanuel Todd, então voz única a pregar no deserto).
E veio Reagan. Com o seu passado hollywoodesco, e logo em westerns como Santa Fe Trail, Tennessee’s Partner ou The Last Outpost, Reagan era então o alvo preferencial da troça de todas esquerdas, das liberais mais dignas às trotskistas mais radicais. Era um mero “actor de segunda”, apesar de ter sido governador da Califórnia por dois mandatos, quase tão estranho (“weird”) como Trump e Vance passariam depois a ser para os adversários. Entretanto, os mesmos comentadores que então ridicularizavam Reagan, passariam a exaltá-lo por comparação com Trump.
Reagan é hoje especialmente importante porque é uma referência do republicanismo conservador americano quando a questão das ideias e dos valores políticos do Partido Republicano volta a pôr-se. A conjuntura internacional do seu tempo era ainda bipolar, com uma União Soviética económica e politicamente centralista a expandir a sua esfera de influência, o que condicionava tudo.
Reagan era um patriota americano, anticomunista e religioso, conservador nos valores e liberal em economia. Pode dizer-se que o movimento de ideias à direita – que vinha de longe, mas que se tornara mais activo politicamente a partir da década de 60 – tinha três famílias independentes que iriam convergir na “Revolução Reagan”: os libertários económicos, os tradicionalistas religiosos e os militantes anticomunistas populares ou populistas, alguns vindos até de áreas progressistas.
No movimento intelectual do reaganismo couberam estas diferentes famílias de pensamento. Os liberais económicos eram discípulos de Ludwig von Mises e de Friedrich von Hayek, os emigrados fundadores da Escola Austríaca defensores do liberalismo clássico. Muitos dos princípios dos “austríacos” – defesa da iniciativa privada, descida de impostos, governo residual, mercado livre, moeda forte – seriam advogados pela Escola de Chicago, liderada por Milton Friedman, o autor de uma obra capital: A Monetary History of the United States, 1867-1960.
Uma segunda família intelectual era a dos cristãos conservadores e tradicionalistas: uns mais cristãos, outros mais tradicionalistas – Russell Kirk, autor do The Conservative Mind – From Burke to Eliot, Robert Nisbet, William F. Buckley Jr., Michael Novak, entre muitos outros. Eram profundamente anticomunistas, mas também criticavam o capitalismo sem freios e o seu individualismo sem valores de orientação permanente. Muitos deles eram cristãos e católicos, como Kirk, Buckley e Novak. Kirk era um convertido que abraçara o catolicismo já depois dos quarenta anos. Buckley era um católico praticante de toda a vida, que começara como defensor de Joseph McCarthy e seria a voz intelectual da Direita nos Estados Unidos ao longo de sessenta anos. Era entusiasta de Ronald Reagan, mas crítico de George Bush e das suas aventuras no Médio Oriente, ao serviço do neoconservadorismo e da exportação da democracia.
Houve depois uma importante facção de ex-esquerdistas que viraram à direita; de resto, o próprio Reagan tinha sido um progressista do New Deal. A família dos “arrependidos” foi muito importante, com o ex-trotskista Irving Kristol como chefe intelectual do neoconservadorismo. Havia na Europa toda um elenco histórico de esquerdistas radicais arrependidos: André Gide, Ignazio Silone, Arthur Koestler. E nos Estados Unidos ficara famoso Whittaker Chambers, comunista e espião soviético convertido, que Reagan condecoraria postumamente com a Presidential Medal of Freedom.
A viragem à direita destes homens de esquerda vinha ao encontro do que se estava a passar na luta pela “alma” do Partido Republicano: em 1952, Robert A. Taft, um senador conservador do Ohio, tinha tentado a nomeação republicana, encontrando pela frente, à última hora, Eisenhower. Por esse tempo, gente como Robert Nisbet, sociólogo de Berkeley, Russel Kirk e Leo Strauss estavam, cada um por seu lado, a criticar os valores do establishment político americano.
A cruzada contra o comunismo mundial que, nos anos 50, depois de ocupar a Europa Oriental e depois de reprimir as revoltas de Budapeste e da Alemanha de Leste avançava pelo “Terceiro Mundo”, contribuía para a unidade à direita.
Em 1955, William F. Buckley Jr. lançava a National Review, que iria funcionar como um agregador de correntes de pensamento nacional-conservador. Ao mesmo tempo, o “Eastern Establishment” ia perdendo terreno no Partido Republicano para elites alternativas vindas do Sul e do Oeste, enquanto, também ali, cresciam novos e prósperos negócios e nasciam milionários.
O sucesso do reaganismo ficaria também a dever-se à cooperação entre as várias famílias intelectuais da direita – os libertários económicos, os conservadores e tradicionalistas cristãos e os nacionais populistas –, que, entretanto, mantinham as suas divergências e a sua independência na relação com a elite política.
Com um Partido Republicano sensível ao que acontecia no país, havia um cimento muito forte para uma convergência à direita. Até porque o inimigo externo – o comunismo internacionalista soviético – continuava a ameaçar a América e o Mundo.
O Director dos Serviços de Inteligência de Reagan, William B. Casey, atacou os soviéticos no Terceiro Mundo, com guerras indirectas, por interpostos freedom fighters, na Nicarágua, no Afeganistão e em Angola. Estas guerras – sobretudo a do Afeganistão – causaram aos russos um sério problema político-militar, que acabou na retirada humilhante das suas tropas, entre Maio de 1988 e Fevereiro de 1989.
O desmantelamento da União Soviética e o fim da Guerra Fria despertaram, contudo, perigosos sentimentos de arrogância em Washington e noutras capitais do Ocidente. A derrota da União Soviética foi vista por muitos como a vitória da democracia liberal euroamericana e não como fruto de uma coligação e aliança do Ocidente demo-liberal com regimes tradicionais autoritários e totalitários, como a monarquia saudita e até a China comunista (cujo nacionalismo levara a considerar os soviéticos como russos, vizinhos e inimigos). E houve nos vencedores norte-americanos a tentação de exportar o modelo de democracia competitiva ocidental para todo o mundo.
Nesta política de exportação ideológica distinguiram-se os chamados neoconservadores. Os neoconservadores vinham de um núcleo fundacional de intelectuais judeus de Nova Iorque, como Irving Kristol e Norman Podhoretz. Irving Kristol foi um caso emblemático de conversão da Young People’s Socialist League até ao Partido Republicano de Reagan. Foi fundador do Encounter, do Public Interest e do National Interest. Vindo de uma extrema-esquerda inspirada no dogmatismo trotskista, evoluiu para uma atitude metapolítica que o levava a escrever um tanto ou quanto ao jeito de Charles Péguy, uma alma mística de outra confissão: “A Política começa no misticismo e o misticismo acaba sempre em Política.” Mas Kristol sabia que, com o fim da Guerra Fria, era “difícil para uma grande potência – uma potência mundial – articular uma política externa na ausência de um inimigo digno desse nome”. E concluía, numa clara linha schmittiana: “No fundo, é o inimigo que ajuda a definir o ‘interesse nacional’, seja qual for a forma que ele possa assumir.”
Na verdade, as guerras da América no século XX tinham estado muito ligadas a propósitos ideológicos e às suas respectivas justificações. Mas havia também justificações de interesse nacional e geopolítico, com alguns objectivos inconfessáveis e máximas proibitivas. Uma delas fora impedir a todo o custo um entendimento Alemanha-Rússia, ou mais alargadamente, Europa (Ocidental)-Rússia.
A Grande Guerra de 1914-1918, a Segunda Guerra Mundial, a guerra da Coreia, a guerra do Vietname e as guerras ofensivas nos Balcãs e no Médio Oriente, no dobrar do século XX para o XXI, tinham tido uma causalidade múltipla. Bill Clinton, herdeiro da vitória de Reagan-Bush, iniciou alguns conflitos ideológicos nos Balcãs. Bush-filho começou com uma nota de realismo republicano, mas o 11 de Setembro e a resposta ao macroterrorismo lançaram-no nos braços dos neoconservadores. O fracasso das “primaveras árabes”, já com Obama, contribuiu para a contenção ideológica que Trump, no meio de algum frenesim de nomeações e demissões, acabou por consolidar. E Biden ficou marcado pela queda de Cabul, com o seu discurso da cruzada das democracias contra as autocracias iliberais a contribuir para isolar o Ocidente do resto do mundo.
A dupla Trump-Vance não marca o regresso do republicanismo reaganista – um republicanismo nacional-conservador essencialmente concebido para uma época, a Guerra Fria, e condicionado internamente pelos problemas da América pós-Jimmy Carter, com a hiperinflacção e a concorrência com o Japão. Traz um nacionalismo mais identitário e perdeu, como consequência do fim da Guerra Fria, a carga ideológica anticomunista. Seguindo os conselhos de Schmitt e Kristol sobre o inimigo principal como essencial para a construção do próprio em valores e ideias, o inimigo principal interno desta nova direita americana – dentro do espaço político do “Ocidente” – passou a ser a esquerda liberal radical, de tipo woke; e o externo, numa perspectiva geopolítica e de razão de Estado, a República Popular da China.
A preocupação de exportar instituições euroamericanas, como a democracia liberal partidária, para todas as latitudes – para geografias onde não existem nem tradição cristã, nem propriedade privada, e para Estados sem nação nem sociedade civil – permaneceu na narrativa da Administração Joe Biden. Deste modo, os neoconservadores e os seus lobbies, que dominaram parcialmente na Administração Reagan, que se mantiveram em administrações democratas e que foram afastados no mandato de Trump, parecem prestes a deixar o Partido Republicano.
Em 2016, a polémica foi dura, com George Weigel e Robert P. George a publicarem na National Review um manifesto de católicos republicanos anti-Trump, e Phyllis Schlafly, a lobista conservadora, a encorajar os cristãos a apoiarem Trump em The Conservative Case for Donald Trump, um texto publicado logo a seguir à sua morte, em Setembro de 2016. Desta vez, com J. D. Vance, não iam ser precisos certificados externos: o senador do Ohio era um representante da “direita pós-liberal”, um pós-liberalismo que punha, claramente, o bem da comunidade acima da liberdade individual. E que era, entenda-se, uma rejeição do liberalismo não apenas no sentido do progressismo norte-americano, mas no sentido do liberalismo de sempre, que, para os seus críticos à direita, punha em causa os interesses da comunidade nacional, dividindo-a e fragmentando-a. Daqui viriam consequências políticas essenciais – nacionalismo, proteccionismo da indústria e da agricultura, conservadorismo nos valores, estabilidade e solidariedade social, reindustrialização.
Nado e criado entre “deploráveis” da tribo branca pobre, Vance explica como a “esquerda económica”, podendo ser mais compassiva para com os seus do que as direitas, sempre fora “de uma compaixão desprovida de esperança”, de uma compaixão “que tresandava a desistência”; e que, mesmo que se traduzisse nalguma melhoria material, acabava por “não servir para nada”. Assumir que uma pessoa é “inevitável e fatalmente desfavorecida” era ter por ela “a simpatia que se tem por um animal enjaulado no jardim zoológico”. Tal como Vance, muitos dos intelectuais e políticos da nova direita nacionalista e popular são católicos. E percebe-se porquê.
É uma revolução em curso na direita americana e nas direitas em geral que, como todas as revoluções, traz consigo incógnitas e desafios.