Pela segunda vez na história, o convento da Cartuxa de Évora despediu-se dos monges silenciosos que compõem uma das ordens religiosas mais fechadas da Igreja Católica. A primeira vez foi em 1834, altura em que, após quase trezentos anos de vida contemplativa naquele mosteiro centenário, a ordem Cartusiana foi expulsa do país. Agora, o fim da comunidade religiosa do mosteiro de Santa Maria Scala Coeli (Santa Maria da Escada Celeste), um dos ícones da cidade de Évora, é o mais recente sintoma da falta de vocações global da Igreja Católica. Os quatro monges cartuxos que ainda resistem — todos com mais de 80 anos de idade — chegam esta sexta-feira aos conventos espanhóis onde continuarão a viver em clausura e silêncio, deixando para trás 60 anos de uma vida monástica que marcou de forma determinante aquela cidade alentejana.
Cartuxos despedem-se de Évora e congregação vai para Espanha. Veja as fotos da despedida
Durante décadas, o padre Antão Lopez, monge cartuxo e superior da comunidade que agora chega ao fim, falou pouco. O voto de silêncio feito por cada cartuxo só lhes permite conversar com os irmãos duas vezes por semana, para falarem sobre as leituras que vão fazendo nas suas celas individuais. Quem vai quebrando mais vezes o voto é mesmo o superior, responsável pelos raríssimos contactos com o mundo exterior. Por isso, Antão Lopez chegou com a voz cansada a um encontro promovido no último sábado pela Fundação Eugénio de Almeida, responsável pelo restauro e pela manutenção do convento, para assinalar a despedida dos monges cartuxos. O último mês tem sido fora do normal. A notícia da despedida fez disparar a atenção mediática sobre o mosteiro. Entre iniciativas públicas, entrevistas, reportagens e conferências, o padre Antão Lopez tem falado “continuamente”.
“Este último mês, para mim, tem sido fora do que é a Cartuxa. Estou super cansado“, afirmou o monge no início da conversa de uma hora com o jornalista José Manuel Fernandes, publisher do Observador, que antecedeu a inauguração da exposição fotográfica “Saudades dos Cartuxos” — que ficará agora como memória da presença desta ordem em Évora. “Por outro lado, estou comovido, porque a despedida ultrapassa tudo o que imaginávamos. Tenho imenso prazer em responder e agradecer todo este afeto que estão a demonstrar-nos”, continuou, num português com sotaque espanhol, o monge nascido há 85 anos em Cádiz. Está desde os 30 anos de idade em Évora — e só saiu para visitar outras Cartuxas ou para representar a comunidade no Capítulo Geral, em França, respeitando sempre o princípio de viajar porta a porta. Ou seja, da porta de um convento à porta do convento de destino, sem se desviar: dormiu inúmeras vezes na Cartuxa de Barcelona, a caminho de França, mas nunca visitou a Sagrada Família.
[Ouça a conversa entre José Manuel Fernandes e o prior da Cartuxa clicando aqui.]
A clausura, ainda assim, não os impediu se ir sabendo o que se passava no mundo, até porque para falarem a Deus sobre os homens — a sua missão — é preciso conhecer a realidade do dia a dia. Ao convento chegaram, por exemplo, ecos do Sínodo da Amazónia, que levantou, entre outras coisas, a possibilidade de ordenar como padres homens casados, para combater a escassez de sacerdotes na região. Antão Lopez não ficou convencido, porque “um índio é um índio, por muito bom que seja”: “Chegar a um índio e aceitá-lo como ele é não me convence. Penso que devemos pregar-lhe, dar-lhe a ele o que recebemos da revelação divina e pedir-lhe que, se quiser, que aceite, que acredite ou não acredite. Não compreendo essa situação selvagem que se encontra”.
O início da clausura e as 8 mil galinhas
A comunidade cartuxa de Santa Maria Scala Coeli remonta a 1960, ano em que Vasco Maria Eugénio de Almeida, herdeiro da família que havia adquirido o complexo do mosteiro após a expulsão da ordem no século XIX, conseguiu reabrir o convento e entregá-lo novamente aos cartuxos. Tinha uma grande “visão política”, lembra hoje o superior do mosteiro: em vez de entregar oficialmente o mosteiro à ordem, criou uma fundação — a Fundação Eugénio de Almeida — para ficar como proprietária. Desse modo, garantiu que, após o 25 de Abril, aquele património não seria retirado à Igreja, como aconteceu com muitos edifícios católicos no Alentejo. Em 1960, mais de um século depois, sete monges voltaram a entrar na Cartuxa de Évora para cumprir a regra monástica: ora et labora.
“Temos oito horas de oração, oito horas de trabalho, oito horas de descanso“, explica Antão Lopez. Mas Évora tem sido especial: “A vida de oração, com certeza, foi igual a qualquer outra Cartuxa, mas o trabalho aqui foi muito interessante. Aqui, cantamos os mesmos livros que se cantam noutras Cartuxas, em língua portuguesa, e o horário é igual. Agora, o que foi interessante, o que constitui o centro e a substância da história desta Cartuxa, destes 60 anos, foi o aspeto laboral, o nosso trabalho”. Sobretudo na primeira metade deste período, que ficou conhecida na cidade graças à vacaria e ao galinheiro dos monges. Com a herança deixada à fundação, os monges compraram os primeiros animais: gado charolês, “um gado excecional, diferente”. Começava ali uma criação de gado que ficaria famosa por todo o país e lá fora. “Tivemos a única medalha de ouro da Península Ibérica. Tínhamos touros de mil quilos e vacas de 800.”
Na cidade de Évora, foram as galinhas que tornaram famosos os monges. “Tínhamos também um aviário de 8 mil galinhas, que eram mais conhecidas na própria cidade. As galinhas viviam dois anos, e a cada ano vendia-se metade, quatro mil galinhas. Num momento, era no Carnaval, aproximadamente, vendíamos quatro mil galinhas ao mesmo tempo, na porta da estrada de Arraiolos. Aquilo era de tal maneira anti-cartusiano… De verdade. As senhoras conversavam, conversavam, conversavam ali enquanto esperavam. E foi feita uma casinha pequenina, na porta que liga ao Valbom, onde eram vendidas as galinhas. Aquilo era famoso na cidade, vinham todos ao mesmo tempo levar as galinhas“, lembra hoje o superior do convento.
Há 30 anos, porém, o panorama começou a mudar. Em linha com uma escassez generalizada de vocações em toda a Igreja Católica — muito acentuada em congregações religiosas de clausura como a Ordem Cartusiana —, a renovação geracional do mosteiro nunca se deu verdadeiramente. O número de monges desceu, as idades aumentaram e, a partir da década de 90, a congregação passou a ser composta por uma mão cheia de idosos. “Fomos obrigados a renunciar ao trabalho laboral e a essa agricultura“, lembra Antão Lopez. A fundação tomou conta da atividade agrícola e a “família de eremitas” dedicou-se, mais do que nunca, à oração.
Falar a Deus sobre os homens — e não aos homens sobre Deus
“Há uma frase muito repetida: o Cartuxo não fala aos homens de Deus, fala a Deus dos homens. Um missionário vai a África ou ao Alasca falar àqueles homens de Deus. Dizer que Deus é bom, falam dos Dez Mandamentos… E nós vamos a Deus e dizemos: ‘Senhor, tem piedade daqueles que não cumprem os Dez Mandamentos’. Os apóstolos falam aos homens de Deus e nós falamos a Deus dos homens. Essas duas frases diferenciam completamente a vocação dos ativos e dos contemplativos“, sublinha Antão Lopez, quando lhe perguntam sobre o real contributo para a Igreja de quem não sai de um convento.
A clausura e o silêncio — a que os monges preferem chamar solidão, necessária para o encontro pessoal com Deus e causa do silêncio — são levados muito a sério pelos cartuxos. Até pelo único que sai e contacta com o exterior, o prior do convento. Dizem-se felizes na cela em silêncio como “os pilotos no céu e os marinheiros no mar“. E gostam pouco de quebrar esse isolamento — como agora, por causa do interesse que a saída de Évora gerou.
“Numa destas oito reportagens de televisão, a jornalista, muito simpática, disse-me: ‘Padre, o que é aquilo que mais gosta da sua vida?’. A minha oração à meia-noite. ‘E aquilo que gosta menos?’. Dos jornalistas (risos). Sinceramente! Neste momento, não sou um cartuxo. Por isso é que vim sozinho agradecer, agora, ao senhor bispo. Sou meio cartuxo somente. Nós temos, na nossa vida, o inconveniente de, de vez em quando, deixar de ser cartuxo e contactar com fora. É raro, para os superiores um pouco mais frequente, mas é o momento em que nós deixamos de ser cartuxos. Sentimo-nos diferentes do normal, do habitual para nós. Romper a normalidade custa”, conta Antão Lopez.
O próprio superior já se viu obrigado a resistir à tentação de usar as viagens para desvios pessoais. “Há vinte anos, fecharam a Cartuxa de Saragoça com 11 monges e a Cartuxa de Jerez com 12 monges. Nós éramos cinco, agora somos quatro, e resistimos anos. Quando se fechou a Cartuxa de Jerez, eu fui com um camião duas vezes para trazer as máquinas pesadas de carpintaria e da lavagem de roupa. Na altura, tudo o que era livros foi para a Cartuxa da Argentina, porque era de língua espanhola. Fiz o que tinha de fazer. Nós temos a norma de porta a porta. Quando vou ao Capítulo Geral, vou daqui, durmo na Cartuxa de Barcelona, meto-me no carro do prior de Barcelona e vamos a França. Vamos de porta a porta. Não conheço a Sagrada Família, nem a Rambla, nada. Vou daqui à Cartuxa de Barcelona, e da Cartuxa de Barcelona vou à Cartuxa de França. Então, nessa altura fui a Jerez. Eu nasci em Cádiz e, depois de eu ter saído dali, construíram uma ponte. Eu tinha uma curiosidade imensa. São seis quilómetros, uma ponte de seis quilómetros, que valia a pena. E voltei da Cartuxa de Jerez para aqui sem ver Cádiz. A minha família e os meus amigos do liceu de Espanha foram visitar-me à Cartuxa e eu não fui a Cádiz. O que me custou não foi deixar de ver a cidade, mas deixar de ver o mar, que nunca voltei a ver, e a ponte. Fora disso, só fiz o que fazem todos os cartuxos. De porta a porta, mais nada.”
“Temos um voto de estabilidade. Entramos numa Cartuxa para morrer nela. Temos também um voto de obediência, que significa que, se alguém te manda, vais para outra Cartuxa. Mas vamos de uma Cartuxa a outra, para viver na outra, e em cada Cartuxa vivemos em clausura. Esta viagem é ir para a estrada e entrar na porta. Nós admitimos este desejo principal de viver toda a vida em clausura. Não nos aproveitamos da viagem para ir ver a Sagrada Família (risos). Por fotografias, vi muita coisa diferente. Conheço nove casas, e o claustro da Scala Coeli é o mais bonito de toda a ordem. Temos ciprestes brancos e quem conhece a Sagrada Família compara os ciprestes às colunas da catedral“, acrescenta.
“Um índio é um índio, por muito bom que seja” — o mundo visto a partir do mosteiro
Só o prior tem um email — mas não quer dizer que tenha sempre acesso à internet. Não há televisão, mas um padre amigo leva cópias das reportagens sobre a congregação ou que possam ter interesse para os irmãos. Os jornais entram no mosteiro porque os monges querem viver isolados do mundo, mas sabendo do que se passa no mundo. Só assim, assegura Antão Lopez, é possível falar a Deus sobre os homens e a realidade concreta dos dias humanos.
A dominar a atualidade religiosa nos últimos dias esteve, evidentemente, o Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia — em que se abriu a discussão à possibilidade de ordenar como padres homens casados, para fazer frente à escassez de sacerdotes naquela região do mundo. Os monges da Cartuxa não ignoraram o que se passou em Roma nestes dias. Mas Antão Lopez não está convencido.
“Todas as coisas do mundo, até os concílios, têm aspetos positivos e aspetos discutíveis. Aspetos perigosos ou delicados. Esta situação da Amazónia tem vantagens e tem inconvenientes. Em primeiro lugar, para mim, é secundário — e penso que para eles também — o assunto de fazer sacerdotes os viri probati, pessoas de idade, de confiança. Isso é secundário. É muito mais importante essa mentalidade de aceitar a natureza sem revelação como algo positivo. Para mim, a revelação é o único que conta. Deus criou, e depois de criar revelou. A criação, per se, se só vivêssemos homens na criação, seríamos como os animais. Nós temos uma palavra de Deus, que nos revelou… Essa revelação muda completamente a nossa visão do mundo. Isso, parece-me a mim, não está claro neste sínodo”, considera.
“Conheço homens de família de absoluta confiança, mas que não sabem teologia para fazer uma homilia a cada semana, comentar o Evangelho de cada semana. É preciso passar num seminário. Mesmo aqui, os padres levam muito tempo para se preparar. Essa ideia de que os índios da ameríndia são bons e isso basta, penso que não dá suficiente importância à palavra de Deus. Nós temos recebido de Deus uma revelação que é pouco falada e pouco tida em conta, que muda totalmente a humanidade. Conhecendo Deus e o que Deus quer de nós, somos diferentes. Chegar a um índio e aceitá-lo como ele é não me convence. Penso que devemos pregar-lhe, dar-lhe a ele o que recebemos da revelação divina e pedir-lhe que, se quiser, que aceite, que acredite ou não acredite. Não compreendo essa situação selvagem que se encontra. Agora, se esses índios de facto se batizam, são bons, podem ser padres, isso é secundário. Falo assim com pouca informação, mas sou sincero. Um índio é um índio, por muito bom que seja. ‘Ide e pregai o Evangelho a toda a criatura’. Isso é o que falta”, assegura.
É preciso, diz o monge a partir do interior da clausura, separar o que diz o Papa e o que dizem os bispos. “O Papa Francisco, tudo o que diz, é aceitável. Agora, tudo o que há por trás desse sínodo, dessas reuniões, não é a palavra do Papa. Distingo o que o Papa diz e o que os bispos dizem. Estou pouco informado e acredito que não há problema com o que diz o Papa e há alguns problemas com o que dizem outros que não são o Papa.”
Depois de os monges abandonarem a Cartuxa de Évora, o edifício vai ser a casa de uma congregação feminina, de freiras argentinas. Tanto a diocese de Évora como a Fundação Eugénio de Almeida quiseram sempre que o mosteiro continuasse a ser um mosteiro. “Podia ter feito aqui um museu com manequins de hábitos cartuxos“, comenta o prior, entre risos. Mas não. Vão é ser precisas obras de remodelação. É que os cartuxos viveram sem água quente até há cerca de três anos — e sempre tomaram banho com recurso a um balde de água que vertiam sobre o corpo. “O senhor arcebispo comentou que, antes de virem as monjas, tem de dar um pouco mais de conforto às celas.”
Tudo ficou como estava. A cozinha, a biblioteca, a sacristia. Os monges levaram apenas a roupa que têm vestida e o livro de orações para rezarem durante a viagem. “Para que as monjas também possam vir com a roupa e encontrem tudo. Em parte, é um sacrifício, mas, por outro lado, também vamos encontrar tudo, não precisamos de levar nada. Partimos, e quando nós vamos de mudança de casa sempre foi assim. O livro de orações para rezar pelo caminho e a roupa vestida. É normal, mas não tem mérito, porque, quando chegamos lá, dão-nos o resto”, explica o prior.
A Cartuxa de Évora já estava para fechar há 30 anos. Foi aguentando, mas tornou-se inevitável. Ordens de Roma, comenta o superior da comunidade. As congregações com menos elementos deviam começar a concentrar as comunidades mais pequenas — até para bem dos próprios monges. Todos com mais de 80 anos, são ainda autossuficientes, mas podem deixar de ser em breve. Por isso, a Ordem decidiu que iriam juntar-se aos oito monges de Barcelona para criar uma comunidade mais coesa lá. Só Antão Lopez não irá com os outros: vai para Burgos, para a Cartuxa onde fez os seus primeiros votos. Um regresso a casa, 55 anos depois de ter saído. Deixará de ser superior e vai feliz. “Já são trinta anos a falar, a falar.” A partir desta sexta-feira, volta a fazer silêncio, como prometeu e como sempre quis.