Neto de jogador e filho de jogador só podia dar jogador. Gonçalo Ramos garante que não foi obrigado a nada, mas que o “bichinho” sempre esteve lá. Desde que começou a dar os primeiros pontapés na bola, no quintal dos avós e na areia da Praia do Farol, até este domingo, o dia em que conquistou o primeiro Campeonato com o Benfica.
O avançado algarvio de 21 anos chegou ao Seixal em 2013, há uma década, depois de dar os primeiros passos no Olhanense e também no Benfica de Loulé. Subiu pelas camadas jovens a dar sempre nas vistas, primeiro como médio, depois como segundo avançado e só então como ‘9’ assumido — ainda que raramente seja um verdadeiro ‘9’ assumido. Estreou-se pela equipa principal em 2020 e à boleia do interino Veríssimo, ganhou espaço com Jesus e tornou-se crucial com Schmidt. Pelo meio, foi ao Qatar fazer um hat-trick no Campeonato do Mundo.
De forma natural, Gonçalo Ramos é uma das principais figuras do título conquistado pelos encarnados. Não só pelos golos, pela juventude, por ser aposta da formação e pelos milhões que pode dar a ganhar: mas pela ideia sempre clara e notória de que, quando tem a bola nos pés, tem um mundo inteiro de benfiquistas a apoiá-lo.
Um ‘8’ que deu um ’10’ e acabou a tornar-se um ‘9’: Gonçalo Ramos não é nada e é tudo ao mesmo tempo
“Onde é que me sinto mais confortável? É ali a segundo avançado, médio ofensivo. O importante é jogar, sempre, mas o sítio onde me sinto mais confortável é ali atrás do ponta de lança”. A frase ainda não tem três anos e pertence a Gonçalo Ramos, que em julho de 2020 dava uma entrevista à BTV dias depois de se estrear pela equipa principal do Benfica pela mão de Nélson Veríssimo e com dois golos apontados ao Desp. Aves. A referência ofensiva encarnada, o melhor marcador do plantel encarnado no Campeonato, até preferia não ter essa responsabilidade.
Gonçalo Ramos é um daqueles casos onde é quase impossível dizer que filho de peixe sabe mesmo nadar. Nascido em junho de 2001 em Olhão, no Algarve, é neto de Matias, antigo jogador e dirigente do Olhanense, e filho de Ramos, antigo jogador do Farense e do Salgueiros. Apesar de nunca ter visto o pai jogar, só nos vídeos e nas cassetes que a família guarda em casa, não esconde que apanhou o “bichinho do futebol”. “Mas nunca fui obrigado a nada. Isto foi uma paixão minha”, ressalva, também na entrevista à BTV.
De forma natural, começou a jogar e dar nas vistas no clube da terra e onde também tinha raízes, o Olhanense — foi ao primeiro treino de captação aos cinco anos, pela mão do pai e depois de chutar muitas bolas no quintal dos avós e na Praia do Farol, e destacou-se dentro de um grupo de 60 miúdos. Foi aprovado, colocado numa equipa em que eram quase todos mais velhos do que ele e repetia insistentemente que queria ser jogador de futebol como o pai havia sido. O mesmo pai que agora, quase 20 anos, nunca se esquece de lhe enviar um mensagem assim que um jogo do Benfica termina.
O momento decisivo surgiu anos depois, quando o Olhanense foi disputar um torneio a Vila Real de Santo António e conquistou o Prémio Fairplay. A distinção consistia numa visita ao recém-inaugurado Benfica Campus, no Seixal, e foi assim que Gonçalo Ramos teve o primeiro contacto com os encarnados e com a ideia de que podia mesmo dar o salto. Meses depois, estava a jogar no Benfica de Loulé, a principal escolinha do clube na região do Algarve.
Só em 2013, já com 12 anos, é que deixou definitivamente Olhão e a casa dos pais para se mudar para a Margem Sul do Tejo. Partilhou balneário com Samuel Soares, também na equipa principal do Benfica, Fábio Silva, ex-FC Porto e agora no PSV, e ainda Paulo Bernardo, Jota, Florentino e Rodrigo Conceição, o filho de Sérgio Conceição que está agora nos dragões. Aos 17 anos, mereceu a aposta de Renato Paiva e foi lançado na equipa B.
Gonçalo Ramos: o “menino querido” de Olhão que orgulha os pais e se faz estrela no Qatar
“Olhava para o treino como um momento muito importante. Trabalhava muito, gostava de aprender e sabia ouvir. Jogava a ‘8’, a médio, mas tinha tanto golo e finalizava tão bem nos treinos que começámos a colocá-lo como segundo avançado. A partir daí foi a grande explosão dele, quando começou a marcar golos de forma imparável em todos os escalões”, explicou o agora treinador do Bahia numa entrevista ao Canal 11, onde acrescentou que o desenvolvimento físico de Gonçalo Ramos também foi crucial para esta mudança posicional.
Ano e meio depois, já em 2020, chegamos ao momento em que o interino Nélson Veríssimo decide convocar e lançar o jovem avançado. Em plena Vila das Aves, no infame Campeonato que teve de ser disputado verão dentro devido à pandemia de Covid-19, Ramos entrou aos 85′ e ainda marcou dois golos para finalizar a goleada do Benfica. O último a marcar dois golos na estreia pelos encarnados tinha sido o galês Mark Pembridge, em 1998 e três anos antes de o avançado nascer, e o algarvio acabou por carimbar um registo impressionante com aquele bis: na mesma temporada, 2019/20, fez golos pelos juniores, pelos Sub-23, pela equipa B e pela equipa principal. Algo que nunca ninguém tinha alcançado na história do Benfica.
Benfica teve Olhão em Ramos e avançado foi o segundo mais novo de sempre a bisar na estreia
“Nem há palavras para explicar. Só o facto de me estrear e ter a oportunidade de partilhar o momento é o sonho de qualquer jogador, já é fantástico. Ainda para mais com golos… É inacreditável. Nem nos meus melhores sonhos. Nem sequer vi bem a bola a entrar, só vi toda a gente a festejar. Nem queria acreditar no momento. Antes de o Nuno [Tavares] bater o livre pedi-lhe a bola ao primeiro poste. Ele meteu lá a bola e eu fiz o que tinha a fazer”, disse o jovem avançado na altura, há quase três anos, na zona de entrevistas rápidas da BTV.
Pelo meio, naturalmente, foi sendo convocado para as Seleções Nacionais jovens, fazendo parte da equipa de Sub-19 que em 2019 chegou à final do Campeonato da Europa do escalão — terminando como melhor marcador e com a alcunha de “feiticeiro”, alegadamente por ter sempre muita sorte nos ressaltos na grande área. Um cognome que hoje em dia ostenta com o de “pistoleiro”, pela forma como celebra os golos.
De quase sair no verão a tornar-se um dos melhores marcadores da Liga. Um ano que foi uma montanha-russa com paragem no Qatar
Ainda assim, e apesar do êxito retumbante na estreia, Gonçalo Ramos dificilmente imaginaria o momento que vive atualmente. Em 2020/21, já com Jorge Jesus ao leme, foi tapado pelo recém-chegado Darwin e também pela presença de Waldschmidt e até Seferovic e só participou em 12 jogos da equipa principal — mantendo o registo goleador, com quatro golos, e acumulando outros 11 pela equipa B. No ano seguinte e principalmente com a saída de Jesus a meio da temporada e o regresso de Nélson Veríssimo na condição de interino, voltou a ser opção de forma mais consistente e foi opção em 46 encontros, duplicando os números para oito golos (e ainda duas assistências).
Até que chegamos à atual temporada — ou, antes até, ao mercado de transferências do passado verão. Já com Roger Schmidt ao leme, depois de concluída a venda de Darwin para o Liverpool por 75 milhões de euros (mais 25 em cláusulas variáveis) e com a renovação do ataque alinhavada com as chegadas de David Neres, Musa e até Draxler, a continuidade de Gonçalo Ramos não estava assegurada. Os encarnados começaram por rejeitar uma abordagem de 30 milhões de euros, ainda em junho, mas não fechavam a porta à saída do jovem avançado se os valores subissem até perto dos 40 milhões: até porque existia a intenção de equilibrar as contas entre entradas e saídas face ao segundo ano consecutivo com as contas no negativo.
A proposta pretendida nunca chegou e o Benfica encontrou outras alternativas para encaixar alguns valores substanciais, como as saídas de Everton (14 milhões, para o Palmeiras) e Yaremchuk (17 milhões, para o Club Brugge) e até a transferência a título definitivo de Jota, que até aí estava emprestado ao Celtic (7,5 milhões). Em resumo, Gonçalo Ramos ficou — e só o tempo permitiu saber quem é que, em junho, quis dar 30 milhões de euros pelo avançado português.
Em outubro, quatro meses depois, o L’Équipe revelava que tinha sido o PSG a fazer a tal abordagem pelo jogador. Ramos foi um dos principais alvos dos franceses durante o verão, assim como o italiano Gianluca Scamacca, mas a equipa de Messi acabou por decidir manter Sarabia no plantel (que em janeiro saiu para o Wolverhampton) e contratar uma opção mais barata, o ex-Stade de Reims Hugo Ekitiké, investido de forma mais musculada no reforço de outras posições.
Em Lisboa, longe de Paris, Gonçalo Ramos assentou arraiais como a referência ofensiva preferencial de Roger Schmidt. Depressa se assumiu como o goleador de serviço da equipa que perdeu pela primeira vez em dezembro e foi o abono de família de um conjunto que foi sempre líder do Campeonato, que chegou aos quartos de final da Liga dos Campeões e que este domingo se sagrou campeão nacional. Entre a eficácia acima da média que lhe permite fazer muitos golos com poucas oportunidades, a capacidade que tem para não ser um ‘9’ clássico mas sim um avançado móvel na área e ainda as recordações que traz de Nuno Gomes com as movimentações sem bola que arrastam adversários, o avançado de 21 anos chegou naturalmente ao radar de Fernando Santos e da Seleção Nacional.
Mas não de forma imediata. No final de setembro, na antecâmara da última dupla jornada da Liga das Nações contra República Checa e Espanha, a estreia de Gonçalo Ramos nas convocatórias da Seleção Nacional parecia um dado adquirido. O avançado estava a evidenciar-se no arranque de uma grande temporada do Benfica, marcava muitos golos e até tinha historial nas seleções jovens — mas Fernando Santos, na altura, optou por esperar.
Já em novembro, quando se fizeram e refizeram cogitações sobre a lista final de convocados para o Mundial do Qatar, o nome de Gonçalo Ramos caiu nas prioridades das bolsas de apostas. O avançado do Benfica lesionou-se, perdeu alguns jogos dos encarnados e até viu Petar Musa aproveitar bem as oportunidades que lhe foram dadas por Roger Schmidt — mas Fernando Santos, na altura, optou por arriscar. Numa escolha naturalmente associada às lesões de Diogo Jota e Pedro Neto e à renúncia de Rafa, o selecionador nacional convocou o jogador, então melhor marcador da Primeira Liga, e levou-o para o Campeonato do Mundo.
O resto, como se sabe, é história. Gonçalo Ramos foi titular contra a Suíça e em detrimento de Cristiano Ronaldo, nos oitavos de final do Mundial do Qatar, e apontou um hat-trick que somou registos históricos: aos 21 anos, Ramos o primeiro hat-trick do Campeonato do Mundo, tornou-se o mais novo desde Pelé a fazer um hat-trick num Mundial e ainda integrou o lote restrito de jogadores portugueses que fizeram um hat-trick num Mundial (com os crónicos Eusébio, Pauleta e Ronaldo).
O regresso à realidade nacional não foi fácil, entre uma lesão, a quebra de rendimento do Benfica e o desaparecimento dos golos. O avançado encarnado chegou a estar sete jogos seguidos sem marcar, com o universo do clube a começar a pôr em causa a sua titularidade indiscutível e a ausência crónica de Musa do onze inicial, mas o golo que marcou ao Portimonense parece ter quebrado o enguiço. Com 19 golos apontados no Campeonato, o último este sábado e perante o Santa Clara, ficou apenas atrás de Taremi na lista de melhores marcadores da competição.
Números que, obviamente, o tornam novamente um alvo para o mercado que está prestes a abrir. Com contrato até 2025 e uma cláusula de rescisão de 120 milhões de euros, o Benfica olha para Gonçalo Ramos como a principal possibilidade para realizar novamente um encaixe financeiro acima da média e na sequência dos de Darwin e Enzo Fernández. O avançado, contudo, ainda não pensa no assunto. “A minha vontade é estar no Benfica e continuar no Benfica. Renovação? Não há muito a dizer”, atirou recentemente. Ficando ou saindo, uma coisa é certa: Gonçalo Ramos, o miúdo que até preferia jogar a médio e que quase saiu no verão, é uma das grandes figuras do 38.º título conquistado pelo Benfica.