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França enfrenta uma crise política inédita. A Assembleia Nacional aprovou esta quarta-feira uma moção de censura ao governo de Michel Barnier e derrubou-o, com uma maioria clara dos votos de todos os partidos da esquerda (Nova Frente Popular, que inclui socialistas, verdes, comunistas e ‘insubmissos’) e quase todos à direita (União Nacional e a UDR de Éric Ciotti, não tendo tido os votos dos Republicanos). É a primeira moção de censura a um governo aprovada em França desde 1962. Barnier ultrapassou, assim, o seu antecessor, Gabriel Attal, e “ganhou” o título de primeiro-ministro com o mandato mais curto da V República francesa — três meses.
O momento afigura-se “histórico” — como definiram vários líderes partidários na discussão desta quarta-feira — por uma acumulação de outros motivos. Em primeiro lugar, o Presidente Emmanuel Macron não pode dissolver o Parlamento e convocar eleições. Além disso, há um constrangimento de tempo: o ano está a acabar e França não tem Orçamento de Estado aprovado para 2025.
O funcionamento da máquina do Estado nunca irá parar, uma vez que a Constituição francesa prevê vários caminhos para que continue a funcionar em momentos de crise política. Mas a falta de precedentes para o momento que se vive levanta muitas questões sobre as soluções que existem e como podem ser operacionalizadas. Há uma certeza, contudo: o primeiro passo tem de ser dado por Macron, para propôr um novo nome para primeiro-ministro. O segundo num espaço de meio ano, depois das legislativas de julho passado.
Por que caiu o governo de Michel Barnier?
O governo caiu depois de ter sido aprovada uma de duas moções de censura, propostas pela Nova Frente Popular e pela União Nacional. A moção da NFP foi votada primeiro, porque tinha mais signatários. Precisava de 288 votos para fazer cair o governo: teve 331 — dos quatro partidos da esquerda, da UDR e da União Nacional. Aprovada, o governo caiu e a segunda moção não chegou a ser votada.
As moções de censura foram apresentadas como forma de bloqueio à mobilização do artigo 49.º, parágrafo 3 da Constituição francesa por Michel Barnier, que permite que o documento do Orçamento de Estado seja aprovado por decreto, sem precisar de ser aprovado pelo Parlamento. Uma moção de censura é a única forma de contrariar este artigo.
O choque entre o governo e os partidos da oposição deu-se relativamente à proposta concreta de Orçamento para a Segurança Social, quando Barnier tentou aprovar medidas que a União Nacional considerava que violavam as suas “linhas vermelhas”. A “linha vermelha absoluta” foi a proposta do governo para adiar a indexação das pensões à inflação de janeiro para julho, numa tentativa de poupar 4 mil milhões de euros; a UN queria que o ajuste fosse feito a partir do primeiro mês do ano. O governo apresentou uma contraproposta de reavaliar as pensões por metade da inflação e fazer uma recuperação do valor total nas pensões abaixo do salário mínimo em julho. A União Nacional não cedeu e a moção de censura foi apresentada.
A última vez que uma moção de censura tinha sido aprovada foi em 1962, quatro anos depois do início da V República. À data, o governo de Georges Pompidou caiu e o Presidente Charles de Gaulle dissolveu a Assembleia Nacional e convocou eleições antecipadas.
França vai ter novas eleições?
Não. Ao contrário do que aconteceu em 1962, Emmanuel Macron não pode dissolver o Parlamento e convocar eleições, porque já houve eleições legislativas este ano. O artigo 12.º da Constituição impede “uma dissolução no espaço de um ano depois” das últimas eleições. Ou seja, os franceses só podem ir às urnas para desenhar um novo Parlamento quando se completar um ano da segunda volta das legislativas deste ano. Isso será no dia 8 de julho de 2025.
O que acontece agora?
O primeiro passo é Michel Barnier formalizar a sua demissão perante o Presidente, segundo o artigo 50.º da Constituição, o que acontecerá esta quinta-feira de manhã. A partir daí, a responsabilidade passa para Emmanuel Macron, que deve apresentar um novo nome para liderar o executivo. Contudo, a lei não prevê um prazo concreto para a apresentação de um novo nome. Fontes do Eliseu avançaram à Reuters que o Presidente pretende apresentar um nome o mais rapidamente possível e deverá fazê-lo antes de sábado, quando os olhos do mundo estiverem em Paris para a reabertura da catedral de Notre-Dame.
Por agora, sabe-se apenas que Macron falará ao país na quinta-feira às 20h de Paris (19 em Lisboa). Em cima da mesa para liderar o executivo estarão, de acordo com o que fontes próximas do Eliseu revelaram ao Le Parisien, os nomes de François Baroin — que já ocupou pastas em vários governos –, Sébastien Lécornu — ministro da Defesa de Barnier e de Attal — e François Bayrou — fundador e líder do Movimento Democrático, que apoia Emmanuel Macron.
Teoricamente, nada impede o Presidente de apresentar novamente o nome de Barnier, mas isso é extremamente improvável, uma vez que o primeiro-ministro acabou de ser censurado pela Assembleia Nacional. O objetivo é apresentar um nome o mais consensual possível.
Emmanuel Macron conseguirá ter o seu governo aprovado?
Essa é a questão crucial. Tudo depende do nome que o Presidente apresentar. No rescaldo das eleições deste verão, Macron demorou várias semanas a propor um nome que gerasse consenso entre os diferentes partidos. Acabou por se decidir pelo nome de Michel Barnier, membro dos Republicanos (partido de centro-direita). Mas, esta quarta-feira, ficou claro que o antigo comissário europeu não gerava o consenso necessário, ao ser censurado pela maioria dos deputados.
As posições dos partidos mantêm-se firmes e quase inalteradas em relação a julho, como ficou visível no debate que antecedeu a votação da moção de censura. A França Insubmissa criticou Macron e acusou o governo de se aliar à extrema-direita. O Partido Socialista pediu ao centro que dialogue com a esquerda, uma vez que partilham “valores republicanos” — algo que dizem não acontecer com a União Nacional. Já o partido de Marine Le Pen criticou as propostas do governo, culpando-o por obrigar o seu partido a “partilhar espaço com a esquerda”. O centro e o centro-direita — macronistas do Renascença e Republicanos pró-Barnier — declararam-se pela “estabilidade” e dirigiram críticas aos dois lados da câmara.
Nenhum dos partidos tem uma maioria e é necessário um acordo multi-partidário para aprovar um novo governo. Ao facto de não poder haver eleições e de os partidos terem de fazer equilibrismo com a atual divisão da Assembleia Nacional, soma-se outra agravante: a falta de tempo. A menos de um mês de o ano acabar, França continua sem Orçamento de Estado para 2025. A situação é inédita na V República e não há precedentes para o que pode acontecer a seguir. Mas existem várias possibilidades.
Como pode ser aprovado o Orçamento para 2025?
O melhor cenário — leia-se de menor instabilidade política — seria Emmanuel Macron nomear um governo que conseguisse ser aprovado pelo Parlamento e que apresentasse um Orçamento para 2025. Dada a falta de tempo para preparar um novo documento, existe a possibilidade de este governo tomar como base o Orçamento imposto por Barnier? A doutrina divide-se. Aurélien Bandu, professor de Direito na Universidade de Lille, argumenta que, com a queda do executivo, todos os documentos que este propôs caem por terra e o executivo passa a funcionar apenas como governo de gestão. Já Mathieu Carpentier, professor de Direito em Toulouse, discorda: “Nada na História parlamentar recente justifica que a queda do governo torne os seus textos nulos”, argumenta ao Le Monde.
Até os especialistas estão a nadar em águas desconhecidas. Outra opção é o Orçamento nem sequer ser votado, o que pode acontecer por dois motivos: ou Macron não consegue apresentar um executivo consensual ou o governo não consegue propor um Orçamento. Em ambos os casos, o governo — seja o demissionário de Barnier ou o recém-nomeado — tem duas semanas (ou seja, até ao dia 19 de dezembro) para desencadear o artigo 45.º da lei orgânica relativa à lei das Finanças (LOLF), uma “lei especial”.
Esta lei, criada em 2001, nunca foi utilizada, mas permitiria que o Orçamento que esteve em vigor em 2024 fosse aplicado sem alterações em 2025, em duodécimos. Surge outro problema: a lei não atualiza os impostos em relação à inflação, o que, na prática, significa que os franceses pagariam mais impostos, tal como alertou Michel Barnier.
A aplicação desta lei permite que o Estado continue a funcionar, cobrando impostos e assegurando salários a funcionários públicos, mas é uma solução temporária pois não dá respostas à crise económica que o país enfrenta, alertam especialistas. “É um orçamento que seria apenas operacional”, resume a constitucionalista Anne-Charlène Bezzina.
A “lei especial” tem de ser aprovada no Parlamento, mas a líder da União Nacional garantiu que, caso chegue a isso, o partido votará a favor da mesma. “No mínimo, renova-se o Orçamento de 2024, enquanto se aguarda um novo governo e um Orçamento de Estado formal”, escreveu Marine Le Pen. Os votos da União Nacional, somados aos dos macronistas e dos Republicanos, seriam suficientes para passar a lei.
Caso todas estas possibilidades falhem, o artigo 16.º Constituição prevê outra solução: o Presidente assume poderes extraordinários para aprovar medidas orçamentais, sem precisar da aprovação do Parlamento. Mas seria, uma vez mais, algo sem precedentes: “É uma solução extrema. O recurso ao artigo 16.º poria em suspenso o funcionamento democrático normal do nosso regime político”, ressalva Aurélien Bandu.