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Independentemente das contradições, omissões e dúvidas sobre as revelações de Frederico Pinheiro, o ex-adjunto do ministro das Infraestruturas exonerado na última quarta-feira, dia 26 de abril, há um facto que tem suscitado polémica: agentes do Serviço de Informações de Segurança (SIS) foram chamados para recuperar um computador que, segundo o próprio João Galamba, terá sido furtado.

Na conferência de imprensa que deu este sábado, Galamba alegou que o computador continha documentos que tinham sido classificados como segredo pelo “Gabinete Nacional de Segurança” e que a chamada do SIS e da Polícia Judiciária tinha sido articulada com o “secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro” [António Mendonça Mendes], com “o secretário de Estado da Modernização Administrativa [Mário Campolargo, especialista em cibersegurança]” e com a “ministra da Justiça” [Catarina Sarmento e Castro].

Governo chamou SIS para reaver computador do ex-adjunto de Galamba

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Questionado pela comunicação social sobre o enquadramento legal que permitiria a ação do SIS, o ministro das Infra-Estruturas recusou pronunciar-se, dizendo apenas que “autoridades competentes terão feito aquilo que entenderam que a lei permite fazer”.

Será mesmo assim? O Observador responde a oito perguntas sobre este caso.

Como é que tudo começou?

Frederico Pinheiro foi exonerado pelo ministro João Galamba na quarta-feira, tendo ido ao Ministério das Infraestruturas pelas 20h30 levantar bens pessoais e o computador com o qual costumava trabalhar. Há várias versões, nomeadamente acusações de agressões físicas, sobre a forma como Pinheiro recuperou o computador e saiu das instalações do ministério com o mesmo — que podem ser consultadas aqui.

Certo é que o ex-adjunto levou o computador do Ministério das Infraestruturas para casa. E foi por isso que o SIS acabou por ser chamado a intervir, visto que o aparelho, segundo João Galamba, continha documentos classificados como confidenciais pelo Gabinete Nacional de Segurança — organismo público que operacionaliza a classificação da documentação confidencial do Estado e emite as respetivas credenciais de acesso. Ao ser exonerado, Pinheiro tinha perdido precisamente essas credenciais.

As secretas portuguesas escutam os telefones e invadem os emails dos cidadãos? Não sabemos. É segredo de Estado

Quem chamou o SIS para recuperar o computador?

O Observador e outros jornais tinham noticiado esta manhã que foi Eugénia Cabaço, chefe de gabinete de João Galamba que já foi referenciada no caso EDP, quem chamou os elementos do SIS — informação confirmada pelo ministro das Infraestruturas na sua conferência de imprensa deste sábado.

Galamba, contudo, fez questão de revelar como todo o processo ocorreu. “Eu não estava no Ministério quando aconteceram as [alegadas] agressões” a Eugénia Cabaço e a duas assessoras por parte de Frederico Pinheiro, começou por contar o ministro.

“Liguei imediatamente ao primeiro-ministro [António Costa]. Penso que o primeiro-ministro (PM) estava a conduzir e liguei ao secretário de Estado Adjunto do PM [António Mendonça Mendes], a quem reportei esses factos. O secretário adjunto do PM julgo que estava ao lado do secretário de Estado da Modernização Administrativa [Mário Campolargo]. Disseram-me que eu devia falar com a ministra da Justiça [Catarina Sarmento e Castro], o que fiz. E depois disseram-me que o meu gabinete devia comunicar aqueles factos às duas autoridades. O que fizemos. Foi isso”, concluiu

As duas autoridades a que João Galamba se refere são o SIS e a Polícia Judiciária (PJ).

O SIS pode realizar diligências, como solicitar a um cidadão a entrega de um computador do Estado?

A resposta é simples: não. Nenhum serviço de informações, seja o SIS (que se ocupa de ameaças internas à segurança nacional), seja o SIED – Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (que tem como missão prevenir e monitorizar as ameaças externas a Portugal) podem realizar este tipo de ações.

Mais: qualquer tipo de apreensão está explicitamente vedada ao SIS e ao SIED. Quem o diz é a própria lei que rege o funcionamento do SIRP — Serviço de Informações da República Portuguesa (memorize esta sigla, caro leitor, porque será importante mais à frente), no seu artigo 6.º, intitulado precisamente “limites das atividades”:

“Aos membros do Gabinete e aos funcionários e agentes referidos no número anterior é vedado exercer poderes, praticar atos ou desenvolver atividades do âmbito ou da competência específica dos tribunais, do Ministério Público ou das entidades com funções policiais.”

Mais: a lei diz mesmo que o “Secretário-Geral [do SIRP], os membros do seu Gabinete e os funcionários e agentes do SIED, do SIS e das estruturas comuns não podem desenvolver atividades que envolvam ameaça ou ofensa aos direitos, liberdades e garantias consignados na Constituição e na lei”. Ou seja, não podem atentar contra os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Vários juízes, procuradores e advogados contactados pelo Observador dizem que a recolha do computador por parte do SIS seria uma “apreensão”, mesmo que Pinheiro já tenha afirmado publicamente que entregou voluntariamente o computador, depois de ter enviado um email ao centro de gestão da rede informática do Governo para dizer que tinha o computador na sua posse e que ficava a aguardar indicações. Ao Público, o ex-adjunto de Galamba garante que ninguém foi a sua casa, ainda que não especifique onde, quando ou a quem entregou o aparelho.

Contudo, repete-se, o SIS não é um órgão de polícia criminal e não tinha (nem podia ter) um mandado judicial para apreender o computador de Frederico Pinheiro.

Aliás, o próprio SIS faz questão de referir no seu site, na página “Perguntas Frequentes”, isso mesmo. “Os Serviços de Informações não dispõem de competências policiais, estando os seus funcionários, civis ou militares, proibidos de exercer poderes, praticar atos ou desenvolver atividades do âmbito ou competência específica dos tribunais ou das entidades com funções policiais, sendo-lhes expressamente proibido proceder à detenção de qualquer indivíduo ou instruir processos penais”, lê-se no site, no que é um copy/paste do art. 6.º do SIRP.

Resumindo e concluindo: o SIS não tinha qualquer competência legal para exigir o computador a Frederico Pinheiro, nem o ex-adjunto de João Galamba estava obrigado a entregar o computador aos agentes do SIS.

O que faz o SIS? Pode realizar diligências no terreno?

O SIS, como o seu próprio serviço informa na sua página na internet, apenas “atua em território nacional, contribuindo para a salvaguarda da segurança interna através da prevenção da sabotagem, do terrorismo, da espionagem, da criminalidade organizada, da proliferação e das ciberameaças, bem como da prática de atos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruir o Estado de Direito constitucionalmente estabelecido.”

Contudo, ao SIS estão vedadas praticamente todas as atividades operacionais que, muitas vezes, o cidadão comum associa às secretas, muito por via da influência cinematográfica ou televisiva. Eis alguns exemplos:

  • Não podem realizar vigilâncias operacionais a cidadãos nacionais e estrangeiros, nem produzir relatórios sobre as mesmas;
  • Não podem realizar escutas telefónicas, buscas domiciliárias ou não domiciliárias, detenções ou, como se viu no ponto anterior, simples apreensões de bens ou documentos;
  • E não podem ter sequer acesso aos metadados das comunicações, como muitos serviços de informações europeus têm.

Na prática, o SIS pode, e deve, recolher informações “necessárias à preservação da segurança interna” com meios que não os dos órgãos de polícia criminal, produzindo os respetivos relatórios e informações para serem analisadas pelo poder executivo, nomeadamente pelo primeiro-ministro — que é quem tutela o SIRP.

As fortes restrições aos serviços de informações em Portugal sempre foram explicadas pelo poder político com a memória dos quase 50 anos de Ditadura e da atividade das diferentes polícias políticas do Estado Novo.

Se o SIS não podia recuperar o computador, quem era a autoridade policial com competência legal para o fazer?

A reposta está no art. 249 do Código de Processo Penal: os órgãos de polícia criminal. E quem são os órgãos de polícia criminal? A Polícia Judiciária, a Polícia de Segurança Pública, a Guarda Nacional Republicana, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a ASAE, entre outros.

E porquê só estes? Porque são estes que recebem as ordens das autoridades judiciárias competentes, nomeadamente do Ministério Público ou dos tribunais de instrução criminal, para praticarem “os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.”

Tendo em conta que João Galamba afirmou que o seu gabinete fez uma participação ao SIS e à Polícia Judiciária (PJ), alegadamente por furto, era à PJ que competia recuperar o computador para salvaguardar os “meios de prova” para o inquérito criminal que, entretanto, foi aberto devido à suspeita de vários ilícitos criminais.

Dito de outra forma, se há suspeitas de um crime (seja furto, violação de segredo de estado ou até ofensa à integridade física), é à PJ — a quem foi feita participação — que compete a realização de diligências processuais.

Quando é que a PJ agiu?

Ao que o Observador apurou, a PJ só apreendeu o computador na quinta-feira, dia 27 de abril. Ou seja, só quase 24 horas depois de Frederico Pinheiro o ter entregue ao SIS é que o aparelho chegou ao órgão de policia criminal legalmente competente para o efeito.

Ainda não é claro quem é que entregou o computador aos agentes da PJ que têm a investigação criminal a cargo, mas terá sido o Governo a fazê-lo.

Certo é que a lei processual penal dá 72 horas à PJ para validar junto do Ministério Público a apreensão do computador pessoal de Frederico Pinheiro. O Observador sabe que tal validação já ocorreu, estando a apreensão legalmente validada.

A lei permite ao SIS agir para assegurar a proteção dos documentos classificados?

Esta é uma tese que fontes governamentais colocaram a circular junto de alguns órgãos de comunicação social para tentar explicar a atuação do SIS a pedido do Executivo de António Costa. Mas o Observador contactou vários magistrados e juristas especialistas na lei de serviços de informações, que negam categoricamente que tal seja admitido por lei.

Por exemplo, o art. 4 da lei que rege o SIRP admite que “incumbe assegurar as informações necessárias à preservação da segurança interna”. Para que este articulado contemplasse a intervenção do SIS neste caso, seria necessário encarar a recolha do computador como um ato de recolha de informação e a “preservação da segurança interna”.

O problema, enfatizam as fontes judiciais do Observador, é que o SIS não tinha qualquer autoridade legal junto de Frederico Pinheiro para exigir a devolução do computador.

O que falta saber sobre este caso?

A resposta tem muito a ver com a informação que foi revelada por João Galamba, nomeadamente a cadeia de telefonemas e opiniões que vários membros do Governo emitiram para legitimar a chamada do SIS. E que resumem nas seguintes perguntas:

  • António Costa foi colocado a par de toda a situação depois de ter parado o carro que estaria a conduzir durante a noite de quarta-feira, dia 26 de Abril? É uma pergunta relevante, tendo em conta que é ao primeiro-ministro que compete tutelar diretamente o SIRP — que é liderado por Maria da Graça Mira Gomes, ex-embaixadora de Portugal junto da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa.
  • Quem é que disse a João Galamba para chamar o SIS? Na sua conferência de imprensa, o ministro das Infraestruturas afirmou: “O secretário adjunto do PM [António Mendonça Mendes], julgo que estava ao lado do secretário de Estado da Modernização Administrativa [Mário Campolargo], disseram-me que eu devia falar com a ministra da Justiça [Catarina Sarmento e Castro], o que fiz. E depois disseram-me que o meu gabinete devia comunicar aqueles factos às duas autoridades [SIS e PJ].” Não é claro se foi Sarmento e Castro que deu essa recomendação, se foi Mendonça Mendes e Mário Campolargo.
  • Se existir, qual a lei e respetivo enquadramento legal que permitiu ao SIS intervir neste caso?
  • O que disseram os agentes do SIS a Frederico Pinheiro para o convencer a entregar o computador voluntariamente?
  • E, finalmente, esta foi a primeira vez ou o Governo já chamou o SIS para ações semelhantes noutras situações? Dito de outra forma: esta é uma prática comum do Executivo de António Costa? Se for, quais as outras situações concretas em que o SIS agiu desta forma?

Perguntas que ainda carecem de respostas.