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José Diogo no centro da imagem. Foi a 3o de setembro que agrediu o patrão, Columbano Monteiro, com uma faca
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José Diogo no centro da imagem. Foi a 3o de setembro que agrediu o patrão, Columbano Monteiro, com uma faca

José Diogo no centro da imagem. Foi a 3o de setembro que agrediu o patrão, Columbano Monteiro, com uma faca

O homicídio que acabou num tribunal popular em plena revolução

Foi em pleno PREC que um trabalhador matou o patrão, um grande proprietário agrícola. Uma "turba delirante" tentou julgar o caso num tribunal popular. Ensaio de Nuno Gonçalo Poças.

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Um crime

Columbano Líbano Monteiro, 72 anos, veterinário, grande proprietário agrícola, era também ex-presidente da Câmara de Castro Verde. Homem do Estado Novo, não sobreviveria aos primeiros meses da revolução. Logo em Agosto de 1974, fora assinada uma convenção de trabalho rural, representando uma subida significativa dos salários dos trabalhadores do campo, a qual não fora subscrita por Líbano Monteiro. Em Setembro, dia 30, seria agredido à facada por um trabalhador. Transportado para o hospital de Castro Verde, onde não se encontrava nenhum médico, foi levado de imediato para Beja. A 2 de Outubro acabaria transferido para a Casa de Saúde das Amoreiras, em Lisboa, onde morreria, a 12 daquele mês. Causa de morte: “Peritonite, ferida por arma branca e insuficiência cardíaca esquerda”.

A revista Flama, na edição de 15 de Agosto de 1975, numa peça assinada por Regina Louro e Luís Saraiva, lamentava as menções que constavam, “de forma seca”, do processo judicial que investigava o trabalhador suspeito do homicídio de Líbano Monteiro: “O guarda que prendeu José Diogo poderia ter acrescentado, a seguir ao nome do ofendido, alguns atributos que todo o povo da região lhe reconhece. Poderia ter indicado as palavras ‘latifundiário’ e ‘fascista’. Poderia ter mencionado que Columbano Monteiro estava ligado à extinta PIDE-DGS e que prestara importantes serviços à causa do fascismo, denunciando trabalhadores como comunistas, os quais acabavam nas masmorras da polícia política. Poderia ter revelado a sua folha de serviço nos catorze anos em que foi presidente da Câmara Municipal de Castro Verde. Poderia ter mencionado que o povo da região o considerava seu inimigo e desejava libertar-se dele. Poderia. Mas os autos policiais são necessariamente ‘sucintos e objectivos’…”.

José Diogo Luís, 36 anos, tractorista, marido, pai de três crianças, foi detido pela GNR de Castro Verde às 17 horas e 30 minutos do dia 30 de Setembro de 1974, suspeito de ter anavalhado o proprietário Líbano Monteiro. Encarcerado na prisão de Beja, da sua cela escreveria uma carta – divulgada pela UDP – à Associação de Ex-Presos Políticos Anti-Fascistas (AEPPA), na qual detalhava o contexto e os antecedentes do seu crime, um documento que a mesma peça da Flama retratava como, apesar de “cheia de erros”, um “libelo contra Columbano Monteiro, contra o patronato explorador, contra o fascismo” que bastaria “para que qualquer tribunal popular o condenasse”.

A capa do livro Liberdade Para José Diogo, com assinatura da Associação de Ex-Presos Políticos Anti-Fascistas (AEPPA), que nomeou os advogados para a defesa de José Diogo

Na carta, provavelmente escrita com a colaboração dos seus três advogados (Amadeu Lopes Sabino, José Augusto Rocha e Luís Filipe Sabino), escolhidos pela AEPPA, José Diogo declara-se marxista-leninista e denuncia a “justiça burguesa”. Nela se referia, naturalmente, ao fascista que “chegou mesmo a esbofetear e chicotear ceifeiros e outros ao seu serviço (…) e mesmo até em plena estrada chegou a bater em várias pessoas, uns por não tirarem o chapéu quando ele passa-se [sic], outros por estarem a urinar ou mesmo por não se porem em sentido quando ele passa-se [sic] como se fosse o presidente da República.”

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José Diogo Luís trabalhara para Líbano Monteiro (“este carrasco”) durante três meses e meio, executando a sua profissão de tractorista, no tempo da debulha. “Claro todo o tempo que trabalhei para este fascista foi do nascer ao pôr do sol, encluindo [sic] domingos e feriados, sem que me fosse pago qualquer tempo extraordinário que pelo contrário ainda me pagava 10$00 menos que o ordenado estabelecido pelo sindicato. E sempre o maldito carrasco levava os dias atrás de nós no trabalho e dizendo aos seus amigos que se não tivesse [sic] lá presente que nós que não faríamos nada. Também me quis obrigar a que eu deixasse de fumar, coisa que lhe não obedeci e se o fizesse era cobarde, e mesmo era insuportável um homem trabalhar um dia seguido de 12 a 14 horas sem parar por vezes uns 5 minutos para fumar, depois de ter apanhado tanto pó e tanto calor encima [sic] de uma ceifeira debulhadora sem ter sombra nem nada, em pleno sol escaldante. (…) Mas a seguir chegou a Castro Verde o acordo de uma convenção de trabalho, mas na qual em que este fascista não existiu [sic], e nem queria cumprir suas leis do sindicato, nem do ordenado nem das 8 horas de trabalho. (…) Eu sempre lhe dizia que as leis eram para se cumprir então se era lei para uns era para todos, que o tempo já não era o mesmo do atrasado [sic]. Então o bicho raivoso, voltava-se para mim dizendo que não tinha nada a ver com o que os outros lhe quisessem impor e que nunca tinha havido e não haverá um Presidente como o seu amigo Salazar, pois era o único que sabia o que queria e o que dizia. Que isto agora era um regime de bandidos, patifes, gatunos, etc. Tanto os trabalhadores como os sindicatos e até mesmo o próprio governo novo não sabem o que dizem nem o que querem. E eu dizia-lhe não sei, são leis, estas tanto podem ser postas pelo sindicato, como pelo próprio Governo Provisório, portanto seja como for, há que cumprir estas leis, bem o sabe que isto agora é Democracia e não fascismo. Então a fera fascista volta-se para mim como quem me quisesse comer, dizendo um homem respeita as leis quando quer, não querendo caga-se nelas. E dizia vocês não sabem que isto da Democracia que é uma merda? (…) E assim foi continuando nessa luta de classes, até que me despediu. Em que se aproveitou como vingança um dia em que eu e meus dois colegas de trabalho que nos recusámos a ir carregar uma palha a Santa Bárbara que fica a 14 km de Castro Verde, ora isso foi motivo do adiantado da hora, e que se seguíssemos esse destino de trabalho marcado quando íamos a chegar ao local de trabalho previsto talvez já tivesse passado da hora de largarmos o trabalho. Claro daí fiquei sem trabalho para angariar o sustento para os meus filhos e meu lar. Tendo eu a meu cargo além da minha mulher mais três filhos menores, sendo o mais velhinho de 5 anos e o mais novo de 2 anos mas depois de tudo isto passado e com a necessidade de angariar fundos para o sustento do lar, vime [sic] obrigado a ir de novo pedir trabalho ao fascista, isto foi uma semana após. (Eu sei que foi tudo isto o meu erro)…”

Assunção Maria Palhinha, que vivia em casa de Columbano Monteiro, afirmaria tempos depois que teria ouvido dizer ao povo de Castro Verde que, após a agressão, foram oferecidos 500 escudos à mulher de José Diogo, a quem teria sido dito que se Líbano Monteiro morresse receberia mais 500 escudos.

José Diogo foi, então, despedido por Columbano Monteiro e voltaria a pedir-lhe trabalho pouco tempo depois. O seu relato prossegue: “Mas diregime [sic] a pedir-lhe trabalho por eu necessitar de ganhar e não ter ainda encontrado o trabalho necessário de minha profissão, e para me deslocar para fora do sítio, não tinha fundos para isso. E sabendo que ele tinha falta de um tractorista por ter um tractor parado e estarmos na época de arranjar as terras para a nova cultura tendo-as todas em bruto. Claro com este sentido me deregi [sic] ao portão do seu quintal para falar com ele, ao que pedi licença para lhe falar, e assim me deu autorização para entrar no seu quintal. E eu ao dirigir-me ao sítio onde se encontrava o carrasco, que estava ao fundo do seu quintal, nem tal me lembrou de tirar o boné que levava na cabeça. Então por isto, o carrasco fascista já não me deixou falar, começando a chamar-me estúpido por não ter tirado o boné e mais de tudo quanto é pior, sendo isto um quintal em pleno ar livre, agarrando-se a mim querendo-me pôr fora de seus muros à força da força, a pontos de me magoar fazendo-me sangue nos braços que me apertava ferozmente com suas unhas e agredindo-me a soco. Ora eu ao ver-me ferido e pelos tratamentos de que estava a ser alvo, perdi o control [sic] de mim mesmo puxando do canivete que usava no bolso piquei o fascista em minha defesa de suas garras. Em que o fascista depois foi levado para Beja e a seguir para Lisboa onde morreu 15 dias após o crime mas já um camarada me disse que ele não morreu da facada mas de uma doença cancerosa que tinha.”

Columbano Líbano Monteiro morreria, como consta do relatório da autópsia referido, do esfaqueamento, um crime que o próprio José Diogo confessa ter cometido. Assunção Maria Palhinha, que vivia em casa de Columbano Monteiro, afirmaria tempos depois que teria ouvido dizer ao povo de Castro Verde que, após a agressão, foram oferecidos 500 escudos à mulher de José Diogo, a quem teria sido dito que se Líbano Monteiro morresse receberia mais 500 escudos. Assunção, interrogada pela polícia, não tinha visto as navalhadas, mas tinha sido a primeira a assistir à cena seguinte: Columbano Monteiro, nos braços de José Diogo, tentara explicar-lhe de imediato o que lhe sucedera. O depoimento de Assunção Palhinha, porém, tornar-se-ia irrelevante, face às próprias declarações de José Diogo.

O produto de uma turba delirante

As ocupações ainda não tinham começado, ainda não havia as famosas Unidades Colectivas de Produção, mas os ventos revolucionários que sopravam no Alentejo já eram fortes. A detenção de José Diogo após o crime, na prisão de Beja, fez crescer ainda mais as labaredas do fogo revolucionário. O slogan “Liberdade para Zé Diogo” torna-se um mantra, espalha-se pelo País, e é iniciada a luta contra a “justiça burguesa”, incapaz de compreender a luta de classes e, por isso, verdadeiro entrave à revolução.

[Imagens do julgamento no tribunal de Tomar incluídas na reportagem “Portugal 74-75” de Joaquim Furtado, José Solano de Almeida, Cesário Borga e Isabel Silva Costa emitida pela RTP:]

Conduzido ao Tribunal de Ourique, cujo juiz de instrução deduziu a acusação, a morte de Líbano Monteiro devia-se sem qualquer dúvida à acção de Zé Diogo, que teria intenção de matar. A política, contudo, ia-se tornando mais rápida que a justiça, apesar da celeridade da acusação. O PCP, de que Zé Diogo era militante, não quis tomar posição em cima de um crime de sangue e deixou campo aberto. A AEPPA, o GAC – Grupo de Acção Cultural e outros sectores da extrema-esquerda começaram a fabricar um mártir. O GAC, grupo cançonetista de que fez parte José Mário Branco, chegou mesmo a dedicar-lhe um tema, enaltecendo a virtude da acção de Zé Diogo contra a opressão do fascista Columbano Monteiro. Foi ainda realizado um documentário de longa-metragem, por Luís Galvão Teles, intitulado “Liberdade para José Diogo”, cuja exibição seria proibida por conter, mesmo em contexto revolucionário, linguagem demasiado sectária. O Comité Alentejo Vermelho, a FEC-ml, o PUP e, com mais relevância, a UDP tomaram as rédeas políticas do primeiro caso mediático da justiça do pós-25 de Abril.

[“Zé Diogo”, a canção do Grupo de Acção Cultural:]

No jornal A Voz do Povo, órgão da UDP, afirmava-se a posição do partido e da AEPPA: “A actuação do camarada Zé Diogo é o resultado de um ódio acumulado por anos e anos de trabalho a troco da fome e da opressão, das bofetadas e das prisões que o fascista nunca se cansou de fazer em vida. Agora já não faz mal a ninguém, foi saneado da face da terra.” No jornal exigia-se, pois, que o homicida não fosse julgado com base num fundamento pouco democrático: “O caso de José Diogo é bem elucidativo do carácter de classe do direito burguês, vigente em Portugal e nos outros Estados capitalistas. Para os tribunais, juízes, leis e polícias burgueses, José Diogo é um homem acusado de ter morto outro homem. Para o direito capitalista não há exploradores e explorados, há apenas homens iguais perante a lei. Ora essa igualdade, pretensamente garantida pelas leis burguesas, é uma farsa, um logro, uma mentira.”

A justiça, porém, prosseguia a vontade de levar por diante o julgamento. Sem sucesso. As tentativas de promover as audiências terminavam sempre frustradas por razões de segurança. Enormes massas populares, num tempo em que tudo era política e a política era tudo, boicotavam qualquer tentativa de iniciar um julgamento. Em Ourique, o procurador da República invocou “o clima emocional excessivo” provocado pelas tentativas de boicote para justificar o adiamento – cenário de pressão política a que Boaventura Sousa Santos, que acompanhou de perto o processo e sobre ele se debruçou academicamente anos mais tarde, se refere como “expressões de solidariedade” para com o preso.

O processo seguiria para Lisboa, mas também aí as manifestações a favor da libertação impediriam o julgamento. A Voz do Povo, porém, apontaria o dedo às forças de direita, culpando-as pela não realização do julgamento: “Marcado para o dia 8 de Julho, o julgamento de José Diogo realizar-se-á na Boa-Hora, no 1.º Juízo Criminal de Lisboa. Entretanto, as forças da direita tentam impedir de todos os modos que o julgamento se faça, ou, pelo menos, que o tribunal possa ser o local em que as testemunhas de José Diogo denunciem o ambiente de terror, opressão que serviu de pano de fundo aos acontecimentos pelos quais este camarada é julgado. Pressões exercidas sobre as testemunhas, ameaças veladas exercidas no próprio momento em que se faz a notificação têm apenas um objectivo – calar a voz do povo no tribunal burguês, ou melhor, no tribunal fascista.” Zé Diogo acabaria por ser transferido para a cadeia de Leiria e o julgamento deveria realizar-se em Tomar, por decisão do Supremo Tribunal de Justiça, proferida na sequência de um requerimento apresentado pela parte contrária, onde se pedia também um julgamento por júri.

Num tribunal apinhado, com gente espalhada pelas salas, corredores e escadarias, onde se gritavam e ostentavam frases como "Liberdade para o povo, repressão sobre a reacção" ou "Viva o Poder Popular", foi rápida mas não idoneamente composto um júri com vinte trabalhadores.

Com efeito, a 1 de Julho, tinha sido apresentado um requerimento subscrito por Daniel Proença de Carvalho, advogado da irmã de Columbano Monteiro, que representava os interesses da vítima no processo. Na peça processual, Proença de Carvalho aponta o dedo às forças políticas “que transformaram um delito comum – praticado sem qualquer motivação ideológica, como facilmente se vê da simples leitura do processo e designadamente das declarações do próprio réu – num acto heróico de luta antilatifundista e antifascista, deslocou o problema em causa do foro judicial para os domínios insondáveis da política e da opinião pública”, afirma que “a legitimação do acto de José Diogo representa um retrocesso milenário na história da humanidade, das suas regras e dos seus códigos” e recorre ainda à vulgata daquele tempo: “A sociedade sem classes não será certamente atingida concedendo aos cidadãos, ou a certos cidadãos, o direito de se esfaquearem uns aos outros”. E anuncia, num outro requerimento, que não se deslocaria ao julgamento: “Um julgamento realizado neste circunstancialismo não é um julgamento, é uma farsa teatral. O resultado dessa farsa nunca pode ser a justiça, será necessariamente um simulacro de justiça.”

Marcado para dia 25 de Julho de 1975, nem em Tomar o julgamento seria nessa data realizado. Na referida peça, a revista Flama refere: “Segundo a AEPPA, que organizou a defesa de José Diogo, a escolha do local e da data traduziram ‘uma opção política deliberada’: a de ‘realizar o julgamento de José Diogo exactamente em plena ofensiva dos fascistas e numa zona onde ultimamente eles vêm actuando em crescendo de violência’. O fim seria ‘enquadrar o julgamento num ambiente francamente hostil às ideias progressistas, isto é, favorável à acusação, quer dizer, ao fascismo’. Mas este objectivo foi logrado. Não houve caciques locais nem pressões reaccionárias capazes de levar o povo de Tomar a levantar-se contra José Diogo ou a impedir que trabalhadores do Alentejo, do Algarve e de Lisboa se deslocassem àquela cidade para, uma vez mais, exigir a libertação de José Diogo.”

Os advogados de José Diogo, por seu turno, intercediam junto do MFA, pedindo às Forças Armadas intervenção directa no processo de modo a que o julgamento fosse realizado em Lisboa ou, preferencialmente, em Ourique, que seria o territorialmente competente para o julgamento. Sem sucesso. José Diogo conseguiria, apenas, liberdade provisória mediante o pagamento de fiança, que lhe tinha sido recusada inicialmente, ainda em Ourique, uma vez que o tipo de crime em causa não a previa.

O cartaz do filme "Liberdade para José Diogo" de Luís Galvão Teles

O tribunal, de facto, voltaria a não ter condições para julgar e o que se seguiria ficaria para a história como um grotesco caso de justiça popular. O julgamento “oficial” não teria ali lugar porque o tribunal colectivo desconhecia o paradeiro do réu, transferido pelos Serviços Prisionais da cadeia de Beja para a de Leiria. Assim, o juiz-presidente declarou: “Uma vez que decorreram quase duas horas sobre a designada para o início do julgamento, sem que tenha sido comunicada a este tribunal qualquer razão para a falta do réu, cuja presença é obrigatória, o tribunal adia o julgamento para o dia 1 de Outubro próximo. Considerando que a ausência do réu não pode ser-lhe atribuída e que os Serviços Prisionais tinham obrigação de o conduzir a julgamento, o tribunal concede ao réu a liberdade provisória mediante caução de 50 mil escudos.”

Haveria, outrossim, lugar a um folclórico julgamento popular. Com efeito, o relato do sucedido a 25 de Julho de 1975 no tribunal de Tomar é, na verdade, sintomático de um tempo (que se diluiria progressivamente após os acontecimentos políticos ocorridos exactamente quatro meses depois) de clivagens políticas e ideológicas profundas. Adiada a justiça, a AEPPA tomava as rédeas do processo em conjunto com a UDP, sugerindo imediatamente que ali fosse realizado um julgamento popular. Num tribunal apinhado, com gente espalhada pelas salas, corredores e escadarias, onde se gritavam e ostentavam frases como “Liberdade para o povo, repressão sobre a reacção” ou “Viva o Poder Popular”, foi rápida mas não idoneamente composto um júri com vinte trabalhadores: oito representando comissões de trabalhadores (da Setenave, Sorefame, Mocar, Fábrica de Fiação e Tecidos de Torres Novas, Termo-Eléctrica, Metalúrgica Duarte Ferreira e Hospital de Cascais), dez representantes do povo de Castro Verde e dois membros da AEPPA.

No Expresso, na edição de 26 de Julho, escrevia-se: “Mas houve julgamento levado a efeito por um tribunal popular, ali mesmo constituído por 20 membros democraticamente eleitos pela audiência, como eles composta por operários e camponeses e que funcionou na escadaria do tribunal de Tomar. Da deliberação tomada pelo primeiro tribunal popular revolucionário, de cunho inteiramente inédito até mesmo em relação aos processos revolucionários conhecidos em outras partes do mundo, assinalamos a parte final: ‘Consideram os membros do júri que é inteiramente correcta e justa a constituição deste tribunal popular. Consideram no entanto que os tribunais populares devem assumir a forma de assembleias populares de massas e deliberam submeter à assembleia popular de Castro Verde a decisão que vão tomar: condenar postumamente o latifundiário Columbano, pela opressão e exploração que exerceu sobre o povo alentejano. José Diogo não cometeu nenhum crime, embora seja seu juízo que o acto de José Diogo foi um acto individual, explicado pelas circunstâncias relatadas nos documentos lidos e ouvidos neste tribunal popular. Mais deliberaram enviar esta sentença à assembleia do MFA, reunida hoje’. Eram 11:50 horas quando o tribunal popular reuniu nas escadas do tribunal, perante uma assistência de quase um milhar de pessoas, e iniciou os seus trabalhos com o apelo, várias vezes repetido, a quem quisesse alegar algo em defesa de Columbano Monteiro para o expressar livremente. Foi depois lida parte de uma peça descritiva do comportamento daquele latifundiário alentejano na região de Castro Verde, das suas ligações com a ex-PIDE e das sevícias físicas e morais que exerceu impunentemente [sic] sobre trabalhadores que dele dependiam. A confirmá-las, o tribunal popular escutou a narração de dois trabalhadores, que serviram de testemunhas de defesa de José Diogo e de acusação de Columbano Monteiro, descrevendo os maus tratos e ameaças de que foram vítimas oito trabalhadores rurais, agredidos e detidos sem culpa formada, durante semanas na cadeia de Beja, por terem reclamado para um deles o equivalente a hora e meia de trabalho, 3$00 na época. ‘Acusaram-nos de bolchevistas, salteadores e incendiários de igrejas, ameaçaram-nos com o Tarrafal nem água nos deram para beber’, diria na altura Joaquim Sales, um dos oito maltratados à ordem de Columbano; o outro declarante foi Manuel António, a quem o veterinário alentejano Columbano Monteiro agrediu e calcou os pés por ter reclamado salário: ‘Nem sei quantas orelhadas levei, já não sabia o que me estava a acontecer, dorido e cheio de sangue. Só sei que ele morreu o ano passado; pois deviam-no ter morto há muito tempo!’. Logo a seguir, o júri constituído por populares, entre eles dois elementos da Associação dos Ex-Presos Políticos Antifascistas, continuou a perguntar ‘se há aqui algum que queira falar livremente em defesa de Columbano Monteiro’. Como ninguém surgisse com esse propósito, o tribunal pediu uma interrupção para deliberar e ao fim de uns vinte minutos tornou pública a sentença que atrás referimos.”

A legitimação da justiça popular não precisava de muito, mas Otelo Saraiva de Carvalho, então comandante do COPCON, não deixou de sublinhar algumas das ideias que a fundamentavam: "Nós, o COPCON, somos praticamente um órgão ilegal porque ignoramos o Código Penal. Agimos de acordo com o bom senso…"

A Ordem dos Advogados consideraria os acontecimentos do tribunal de Tomar o produto de uma turba delirante, estando aquela Ordem convicta de que a irracionalidade das massas populares e os insultos dirigidos ao sistema judiciário e seus funcionários destruíam a desejada autoridade democrática, promovendo a anarquia e o regresso a uma ditadura, mesmo que diferente da que o país conhecera até 24 de Abril de 1974.

A legalidade revolucionária

A legitimação da justiça popular não precisava de muito, mas Otelo Saraiva de Carvalho, então comandante do COPCON, não deixou de sublinhar algumas das ideias que a fundamentavam: “Nós, o COPCON, somos praticamente um órgão ilegal porque ignoramos o Código Penal. Agimos de acordo com o bom senso… não sabemos nada sobre o Código Penal. Temos de arrumar o Código Penal na gaveta e assumir uma atitude puramente revolucionária. (…) Não existem limites para a legalidade revolucionária além dos que são impostos pelo bom senso e a coerência revolucionária… A experiência diz-nos quais as boas medidas e quais as más. Então eliminamos as más e criamos novas leis com base nas boas”. A profundidade de pensamento não abundava, o que ficava claro quando lhe perguntava como é que, afinal, se distinguiam “as boas medidas” das “más medidas”. Otelo não era jurídica ou filosoficamente elaborado, mas era claro: “O benefício para os trabalhadores. Se a classe trabalhadora aceitar as nossas medidas isso significa que estamos no bom caminho.”

Como escreve Boaventura Sousa Santos (cfr. As Bifurcações da Ordem – Revolução, Cidade, Campo e Indignação, Almedina, 2017), “de modo a funcionar adequadamente, qualquer sistema moderno de justiça estatal deve ser suportado por uma estrutura repressiva disciplinada, coesa e eficiente. Em Portugal, após o 11 de Março [de 1975], esta estrutura colapsou. As contradições conducentes ao colapso encontram-se tanto entre diferentes agentes de aplicação da lei como no interior de cada um deles. Quando a polícia se encontrava prestes a executar uma ordem de tribunal, as pessoas chamavam o COPCON que, invocando a precedência militar, forçava a polícia a retirar. Dada a crescente politização das tropas, a sua forma de intervenção dependia muitas vezes da ideologia política do oficial no comando.”

[excerto do filme “Liberdade para José Diogo”, de Luís Galvão Teles:]

Mas em 1974/1975, nada disto estava em causa. Como cantava o GAC na canção “Zé Diogo”, “Só da nossa luta nascerá tudo quando é justo e quanto é novo. E a justiça só será popular quando o governo e o poder forem do povo”. Estávamos no domínio da luta de classes e da democracia popular, por oposição à democracia burguesa que seria, no fim de contas, fascista – mesmo que o antigo regime não se assemelhasse em nada a uma democracia de tipo ocidental, os factos nunca foram grande obstáculo às narrativas revolucionárias. Era dali, dos homens bons da revolução, que sairia tudo quanto era justo e novo. No artigo da revista Flama aponta-se mesmo o dedo ao “direito burguês elaborado em plena época dourada do fascismo, que, afirmando-se hipocritamente acima das classes, serviu de suporte a este regime e continua a servir a classe dominante”, pelo que para este tipo de justiça “o processo José Diogo é o de um homem que matou outro homem”. E prossegue, tomando posição: “Um direito popular, pelo contrário, distinguiria claramente entre explorados e exploradores. Segundo este, o processo José Diogo seria o de um oprimido que abateu um opressor. O seu acto, porque individual, não é revolucionário. Mas as condições políticas que determinaram a sua prática não permitem que seja qualificado como um crime.” Defendia-se, deste modo, a sentença do tribunal popular de Tomar que absolveu José Diogo e condenou postumamente Columbano Líbano Monteiro.

José Diogo seria, por fim, condenado a uma pena de 6 anos, tendo sido libertado pouco tempo depois do julgamento oficial. A sua história é parte da história do Portugal do século XX: da miséria e da exploração que se vivia nos campos, da prepotência de um regime caduco e deposto, dos delírios revolucionários, do risco que tivemos de mergulhar em nova ditadura. Tudo isto teria espelho no grande “julgamento popular” da história recente. Foi a 25 de Julho de 1975, há 46 anos, numa altura em que se lamentava a igualdade dos homens perante a lei.

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