O BCE deverá anunciar nesta quinta-feira mais uma subida dos juros, trazendo más notícias para quem tem créditos indexados às Euribor, que se movem de mãos dadas com as taxas que a autoridade monetária da zona euro decide a cada seis semanas. Mas Christine Lagarde não será a única a anunciar novas subidas dos juros: também a Reserva Federal dos EUA e o Banco de Inglaterra devem fazer o mesmo nos próximos dias, numa altura em que todos os principais bancos centrais prometem não desarmar enquanto não se chegar ao objetivo de 2% na inflação – de onde vem a obsessão com este “número mágico” e, com a ameaça de recessão, até que ponto faria sentido repensar esta meta?
A definição de uma meta oficial para a inflação é algo que se tornou comum nos anos 90, com a Nova Zelândia (1989) e o Canadá (1991) a serem os primeiros bancos centrais a colocar de forma explícita nos seus estatutos um objetivo de 2% para a subida anual dos preços. Na base desta meta está a ideia de que os bancos centrais devem subir as taxas de juro, para arrefecer a procura por crédito, nas alturas em que a inflação supere os 2% – e, por outro lado, devem baixar as taxas de juro quando se quer estimular a expansão monetária e, por essa via, animar a economia.
Na zona euro, o Banco Central Europeu (BCE) começou por definir uma meta “perto, mas abaixo, de 2%” – uma formulação que foi abandonada após a “revisão estratégica” que o banco central fez nos últimos anos: a meta, agora, passou a ser, simplesmente, 2%. Nos EUA, foi em 2012 que a Reserva Federal passou a definir explicitamente o mesmo objetivo (2%). Mas porque é que esse é o valor definido pela generalidade dos bancos centrais? “Não é bem um número mágico, é apenas algo que se convencionou ser assim“, diz ao Observador Stefan Hofrichter, economista-chefe da gestora Allianz Global Investors.
BCE. "Ainda não é altura para parar" de subir os juros
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“Esta ainda não é altura para parar” de subir as taxas de juro, disse o economista-chefe do BCE, Philip Lane, na semana passada. O Conselho do BCE reúne-se esta quinta-feira e é praticamente certo que virá aí nova subida das taxas de juro – embora deva haver, como há houve na última reunião, quem defenda que as taxas já subiram o suficiente (como Mário Centeno).
A dúvida é se será mais um aumento de 50 pontos base (meio ponto percentual) ou apenas 25 pontos-base, ou seja, a diferença entre a taxa dos depósitos do BCE – a mais relevante para a política monetária neste momento – passar de 3% para 3,5% ou para 3,25%, respetivamente.
As estimativas que o Eurostat divulgou esta terça-feira para a inflação de abril não contribuíram a cimentar as expectativas nem num nem noutro sentido. A taxa de inflação na zona euro voltou a acelerar, de 6,9% para 7%, mas a chamada inflação “subjacente” (core), que exclui os preços da energia e dos alimentos não-processados, abrandou pela primeira vez em 10 meses.
Esse é o indicador que mais tem preocupado o Banco Central Europeu (BCE), já que é expurgado da volatilidade dos preços dos produtos energéticos e, por isso, permite perceber mais claramente se as pressões inflacionistas se estão a alastrar na economia.
A pequena descida da inflação core poderá não ser muito relevante porque se baseou, sobretudo, numa subida menor nos preços dos bens e não nos serviços. “Esta componente [dos bens] já se previa que baixasse dadas as melhorias nas cadeias de abastecimento mundiais”, diz o Capital Economics em nota enviada aos clientes e partilhada com o Observador. “A inflação nos serviços, que é mais preocupante, acelerou de 5,1% para 5,2%“, sublinha a firma de investimentos britânica.
Mas porque é que se convencionou assim? A ideia de que deve existir alguma inflação, num valor baixo e o mais constante possível, é praticamente consensual entre os economistas – embora haja quem defenda que qualquer inflação é uma coisa má, como o lendário investidor Mark Mobius, entrevistado pelo Observador em julho. “Porque é que havemos de ter qualquer inflação? O que eles [os bancos centrais] deviam procurar obter era deflação. A deflação é uma coisa boa para as pessoas comuns”, afirmou o investidor.
Essa é uma posição contrária à maioria dos economistas, já que as espirais deflacionistas são vistas como perigosas na medida em que podem induzir uma quebra na procura económica capaz de desestabilizar o mercado de trabalho, exacerbando recessões. Em termos simples, a teoria diz que uma das razões por que a deflação pode ser perigosa é que se alguém achar que um determinado produto ou serviço vai ser mais barato dali a algum tempo, possivelmente adiará essa compra – potencialmente causando um decréscimo geral do consumo, que é uma parte importante das economias.
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Excetuando-se visões como a de Mobius, a maior parte dos economistas defende que haver alguma subida anual dos preços é importante para promover que uma parte suficientemente grande das poupanças flua para investimentos mais arriscados (como as ações de empresas, por exemplo), investimentos que irão fomentar a inovação, o crescimento e o aumento da produtividade.
Aqui, a teoria diz que se não houver inflação os capitais não têm incentivo para se dirigirem para esses investimentos menos “seguros” – por outras palavras, sem a ameaça de uma perda de valor (causada pela inflação) as poupanças simplesmente iriam ser mais avessas ao risco e iriam fugir aos investimentos mais produtivos.
“Um objetivo para a inflação deve ser um número ligeiramente positivo“, argumenta Stefan Hofrichter, acrescentando que um valor positivo na inflação permite “que se crie alguma almofada contra a deflação nas fases mais negativas do ciclo económico”. Isso significa que, se a inflação fosse zero ou muito perto de zero, bastaria haver um momento económico menos bom e rapidamente se poderia cair numa possível espiral deflacionista. Assim, com a inflação (idealmente) em 2%, dá-se aos bancos centrais mais margem de manobra e tempo para reagir a uma desaceleração indesejável dos preços.
Mas a meta da inflação também não deve ser um valor demasiado elevado, acrescenta o economista alemão ligado à Allianz Global Investors, “porque sabemos quais são as consequências negativas da inflação elevada que enfrentámos, por exemplo, nos anos 70 e no início dos anos 80”. Assim, convencionou-se que 2% seria um bom número, que estimula o investimento sem provocar uma degradação demasiado rápida do valor do dinheiro.
“É hora de revisitar a meta de 2% para a inflação”, diz ex-economista do FMI
Porém, gerou-se nos últimos anos um debate relativamente intenso sobre se os bancos centrais deviam rever esta meta para um valor que implique um esforço menor das famílias e empresas. Num contexto de desaceleração económica – ao ponto de não estar descartado o risco de recessão –, até Olivier Blanchard, influente ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), defendeu que “é hora de revisitar a meta de 2% para a inflação“.
A argumentação de Blanchard sustenta-se sobretudo na vantagem que haveria em ter uma “almofada” maior em relação ao nível zero nas taxas de juro – o chamado “effective lower bound“, o limite mínimo efetivo. Se hoje a inflação preocupa por ser demasiado elevada, nos anos anteriores a preocupação era a inversa: subida dos preços demasiado lenta e riscos de deflação – e foi por isso que os bancos centrais mantiveram os juros em níveis historicamente baixos ao longo de vários anos, sobretudo a partir de 2015.
Nesses anos de juros (e inflação) baixos, em que se quis estimular o crescimento da massa monetária, os bancos centrais sentiram quão claustrofóbico pode ser um objetivo de inflação que, por ser de 2%, está tão perto do nível zero. “Desde o início de 2010, a taxa de juro nos EUA esteve no effective lower bound em 95 de 155 meses e, até às subidas recentes, os juros estiveram nesse limite inferior quase sempre tanto na zona euro como no Japão”, escreveu Olivier Blanchard num artigo publicado no Financial Times no final do ano passado.
Sendo teoricamente impossível baixar mais as taxas para menos de zero, na zona euro deu-se o passo de colocar as taxas de juro em níveis negativos, um passo inédito que não foi imitado nos EUA (embora nos EUA também se tenha enveredado – até primeiro, com efeito – pelo recurso ao quantitative easing, o aumento da massa monetária por via da compra de títulos de dívida).
Se houvesse um “objetivo de inflação de 4% (…) isso criaria mais espaço de manobra para que a política monetária fizesse o seu trabalho“, afirmou Blanchard, considerando, porém, que nas economias desenvolvidas seria ideal um objetivo de inflação mais próximo de 3% do que de 4%. “Desconfio que quando, em 2023 ou 2024, a inflação baixar para 3%, irá haver um debate intenso sobre se faz sentido [continuar a apertar a política para] fazer com que a inflação baixe mais, para 2%, sabendo-se que isso pode significar um grande abrandamento adicional da atividade económica”, escreveu Blanchard.
Stefan Hofrichter salienta que “o grande problema com esta visão é que, se numa altura de inflação elevada fosse revista a meta da inflação para um valor mais elevado, isso levaria a que os bancos centrais rapidamente perdessem a sua credibilidade não só junto dos investidores como, também, junto das populações”. Porquê? “Porque se, neste momento, passassem o objetivo para 3% rapidamente se ia perguntar ‘porque não 4%‘? ‘Porque não um número ainda maior’?“, diz o economista-chefe da Allianz Global Investors.
Embora o título do artigo de opinião no Financial Times defenda claramente a mudança das metas de inflação, o antigo economista-chefe do FMI confessa que ficaria “surpreendido” se os bancos centrais o fizessem, nesta fase, de forma oficial. Porém, Olivier Blanchard admite que o que pode acontecer é que os responsáveis monetários “podem decidir manter-se um pouco acima da meta, durante algum tempo – e, depois, um dia, rever o objetivo” oficialmente.
Na zona euro, Christine Lagarde garantiu que não é isso que irá acontecer. “Neste momento, não há qualquer razão para alterar o objetivo de 2% no médio prazo”, garantiu a presidente do BCE em Nova Iorque há poucas semanas. A francesa não excluiu que, eventualmente, a meta possa ser sujeita a uma reflexão mas isso só deve acontecer depois de se atingir o objetivo que está no mandato do BCE.
“Quando lá chegarmos, ao objetivo de 2%, e estivermos confiantes de que a inflação irá continuar nesse nível, aí poderemos debater o tema“, atirou Christine Lagarde.