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Correia de Campos
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Correia de Campos

TIAGOCOUTO/Observador

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O "pântano" de Guterres, o ministro polémico de Sócrates e a influência junto de Temido. As memórias de Correia de Campos

No segundo volume das suas memórias, Correia de Campos fala do fim de ciclo de Guterres, das controvérsias que somou como ministro da Saúde de José Sócrates e de como trabalhou de perto com Temido.

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Não foi a primeira escolha de António Guterres e chegou ao governo já em fim de ciclo. Com José Sócrates no poder, ambicionou outra missão, lamentou o desgaste que a tutela da Saúde provocava e o mal que pagava o lugar de ministro. O então primeiro-ministro, mesmo tendo-o convencido a aceitar o cargo, reconheceu que era assim mesmo, dizendo inclusivamente que já tinha pedido dinheiro à mãe para comprar roupa. Tornou-se um dos mais polémicos ministros de Sócrates, teve ajuda de especialistas em comunicação, mas acabou mesmo por ser afastado. Manteve-se influente junto de António Costa e foi relevante nas escolhas de sucessores, como Adalberto Campos Fernandes e de Marta Temido.

No segundo volume das suas memórias, Do Pantâno à Pandemia (Leya), apresentado nos últimos dias, e ao longo de 675 páginas, António Correia de Campos vai discorrendo sobre a sua curta experiência durante o segundo governo de António Guterres, sobre o convite de José Sócrates para integrar o seu primeiro governo e as guerras que comprou com o setor, sobre a forma como foi afastado do cargo, sobre a experiência posterior como eurodeputado socialista e ainda como presidente do Conselho Económico e Social (CES).

Mas é também um relato de quem viveu sempre perto do centro das decisões políticas, mesmo quando não estava necessariamente no ativo — fosse nas lutas internas do PS e nas campanhas eleitorais, fosse nas escolhas de Adalberto Campos Fernandes e, depois, de Marta Temida para os cargos de ministros da Saúde.

A Saúde era, nas palavras de Correia de Campos, uma "pasta muito difícil", que "pouco" o atrai e que, ainda por cima, "mal" pagava. Sócrates conseguiria convencê-lo num diálogo que é, em parte, transcrito neste volume de memórias. "Mas para que queres tu o dinheiro, se no governo não vais ter tempo para o gastar? O trabalho é tanto que não dá para respirar. Também me queixo do mesmo e acabei agora de pedir dinheiro à minha mãe para comprar roupa", terá confessado o então primeiro-ministro

O fim de ciclo “previsível” de Guterres

Respeitando a ordem cronológica, este segundo volume de memórias arranca com o convite de António Guterres para um encontro em Lisboa, no verão de 2001. Estava em Coimbra, numa reunião, quando a secretária do então primeiro-ministro telefonou a convocá-lo para uma reunião numa “residência privada”. O futuro ministro da Saúde percebeu rapidamente do que se tratava e telefonou a Jorge Sampaio, amigo próximo, que ficou “encantado com a ideia“.

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O encontro teve lugar na casa de Guilherme d’Oliveira Martins, em Lisboa. Correia de Campos, que não escondia a “esperança frustrada de entrar para o governo logo em 1995”, impôs uma única condição: que “jamais fosse curto-circuitado nas negociações com os poderosos lobbies do setor”. Assim que foi confirmado como ministro da Saúde, “Sampaio rejubilava”. Mas a experiência foi tudo menos “notável”, assume o próprio — Guterres cairia nove meses depois e ficaria tudo ou quase tudo por fazer.

“No final do primeiro governo de Guterres, o país encontrava-se ‘capturado’ pelas mais diversas corporações. O governo na Saúde estava cercado por ordens, sindicatos, misericórdias, IPSS, prestadores privados, indústria e comércio de medicamentos, setor privado que se preparava para entrar em força na hospitalização e até pelas associações de doentes”, reflete a esta distância. Depois, mesmo vencendo as eleições legislativas de 1999, o segundo governo de Guterres acabou “muito marcado por fatores imprevistos ou autodestrutivos” e “não foi capaz de reunir forças que o levassem a aguentar a perda das eleições autárquicas”.

“Guterres havia estado ocupado na presidência da União Europeia durante todo o primeiro semestre de 200o. Deixou expandir a ideia de que se desinteressara da governação, sem tempo para acompanhar o trabalho dos ministérios. Concedeu espaço excessivo às oposições e ano e meio depois perdia as eleições autárquicas, precipitando a sua desistência”, escreve Correia de Campos, antes de lamentar: “O fim de ciclo era previsível, mas não começou em 2001. Começou com a limitadíssima ambição reformista do governo do PS, entre 1995 e 1999. Guterres resignou para não soçobrar no pântano político e o país não avançou quando podia e devia.”

"Tão convicto que estava da minha razão e da qualidade do trabalho que desenvolvíamos que não me dei conta de que esta seria a last chance diet para a minha função", recorda a esta distância. Até este relato encontra alguns paralelismos com o presente: Luís Montenegro, tal como José Sócrates no passado, reforçou as equipas de comunicação das ministras da Saúde e da Administração Interna para evitar mais tropeções

O convite de Sócrates, as reservas em aceitar e a revelação do PM sobre a mãe

A Guterres sucederia depois Durão Barroso e, na saída deste para a Comissão Europeia, Pedro Santos Lopes. Eduardo Ferro Rodrigues assumiu a liderança do PS, antes de deixar o cargo em rutura com o então Presidente da República, Jorge Sampaio. Num partido obrigado a escolher entre José Sócrates, Manuel Alegre e João Soares, Correia de Campos apoiou Sócrates desde o primeiro minuto, entrando posteriormente no núcleo de reflexão do secretário-geral socialista.

Com a vitória de José Sócrates nas eleições legislativas de 2004, Correia de Campos era um candidato óbvio ao cargo de ministro de Saúde. O então primeiro-ministro convocou-o para uma reunião em casa dele, no cruzamento da Rua Castilho com a Rua Braancamp, em Lisboa, e tentou seduzi-lo para o cargo. “Começou por lamentar que, contra a sua opinião, Guterres não me tivesse convidado para o seu primeiro governo em 1995 e que só o tivesse feito em 2001, quando o seu projeto político já denotava fadiga”, recorda a esta distância Correia de Campos.

O próprio, segundo as suas memórias, terá confessado algum alívio pela estranha conjugação dos astros. “Respondi que ainda bem que Guterres não me tinha convidado para o seu primeiro governo; se o tivesse feito, eu teria saído antes dos primeiros seis meses quando verifiquei que o governo, sendo minoritário, tinha sido constituído para garantir a paz e não o conflito.”

Ao mesmo tempo, neste livro, Correia de Campos não esconde que não tinha interesse em ser ministro da Saúde de José Sócrates. Estava afastado da área e focado noutros desafios, nomeadamente a reforma da Administração Público. A Saúde era, nas palavras de Correia de Campos, uma “pasta muito difícil”, que “pouco” o atrai e que, ainda por cima, pagava “mal”. Sócrates conseguiria convencê-lo num diálogo que é, em parte, transcrito neste volume de memórias.

“Mas para que queres tu o dinheiro, se no governo não vais ter tempo para o gastar? O trabalho é tanto que não dá para respirar. Quanto ao pagamento, nenhumas perspetivas de melhoria salarial, pelo contrário, a situação financeira e económica é dramática e teremos pela frente reduções salariais na função pública. Também me queixo do mesmo e acabei agora de pedir dinheiro à minha mãe para comprar roupa”, terá confessado o então primeiro-ministro.

"Adalberto Campos Fernandes teve grandes condições para o cargo. infelizmente sofreu lapsos comportamentais e gerou uma situação de incompatibilidade com as Finanças, que nele perderam a confiança"

Quando uma equipa de comunicação tentou salvar o ministro

Correia de Campos acabou por aceitar o desafio e teve quase três anos no cargo de ministro de Saúde. Comprou quase todas as guerras — algumas delas viria a lamentar anos mais tarde — e outras que não poderiam ser mais atuais: encerramento de maternidades para otimizar recursos, reorganização de urgências e as supostas falhas no socorro pré-hospitalar.

Já muito perto do pico da contestação, em maio de 2007, o antigo ministro da Saúde conta como quase deitou tudo a perder num encontro inopinado no restaurante Solar dos Presuntos com o jornalista Baptista-Bastos, que “não conhecia pessoalmente”, mas que o recebeu com “um chorrilho de impropérios e insultos”.

“Baptista-Bastos era um homem alto, dotado pela natureza de uma voz aflautada que contrastava com a sua figura e agressividade dos insultos que proferia. (…) Argumentei que aquele não era o local nem o momento se manifestar. O meu ânimo começava a ferver lentamente, dada a tremenda injustiça e covardia dos comentários (…) Pouco faltou para que agarrasse numa cadeira e o desancasse. Contive-me. Ceder a esse impulso seria o fim da minha carreira política”, recorda.

Em janeiro de 2008, o desgaste já era tremendo e parte do partido já o contestava abertamente (como António Arnaut, António Vitorino ou Manuel Alegre, por exemplo). Contra a sua vontade e por decisão do gabinete do primeiro-ministro, o socialista aceitou receber “três especialistas de comunicação“, dois deles em direta articulação com José Sócrates, para afinar a mensagem. Recebeu, diz, 22 sugestões, coisas como apostar em “mensagens curtas e simples”, “exaltar o que foi feito”, não pensar nos “adversários” ou “reverter qualquer pergunta agressiva ou maldosa transformando-a numa questão positiva”.

“Tão convicto que estava da minha razão e da qualidade do trabalho que desenvolvíamos que não me dei conta de que esta seria a last chance diet para a minha função”, recorda a esta distância. Até este relato encontra alguns paralelismos com o presente: Luís Montenegro, tal como José Sócrates no passado, reforçou as equipas de comunicação das ministras da Saúde e da Administração Interna para evitar mais tropeções.

Correia de Campos acabaria mesmo por cair e seria lembrado como ministro da Saúde que contribuiu para uma onda de partos nas ambulâncias em virtude do encerramento de alguns serviços de urgência. Neste livro de memórias, recorda como recebeu a notícia de que iria ser remodelado.

“[29.01.2008] José Sócrates recebe-me com um semblante carregado, mas afável como sempre. Descreve-me o contexto de contestação muito generalizada à política do Ministério da Saúde, embora estivesse de acordo com ela, o ambiente de guerrilha mediática que começava a prejudicar os objetivos gerais da governação e a necessidade de eu sair do governo. (…) Declarei que nem mais um dia permaneceria em funções. Sócrates pareceu-me aliviado. Estaria porventura à espera que eu reagisse, como teria acontecido se fosse um político profissional. (…) Não vou confessar que fiquei satisfeito, não seria verdade.”

Nem depois de ter sido afastado António Correia de Campos deixou de ser considerado por José Sócrates. O então primeiro-ministro telefonou-lhe a perguntar a opinião sobre Ana Jorge, que seria sua sucessora. Ao telefone, o longo silêncio traiu-o — preferia Maria do Céu Machado, então Alta-Comissária para a Saúde. “Ora bolas! Ninguém me informou convenientemente. Agora é tarde, está tudo combinado e a notícia sairá depois desta nossa conversa”, recorda.

“Ana Jorge tinha sido assessora no meu gabinete aquando da minha primeira passagem pelo governo, sem deixar rasto visível. Não era muito apreciada então a sua presença no ministério, embora jamais me tivessem chegado razões de queixa”, recupera agora, mesmo acrescentando que acabou “por ficar em dívida” para com ela. “Respeitou sempre as grandes linhas da minha política, quando lhe teria sido fácil revogar tudo nos primeiros meses.”

"[14.10.18] António Costa acordou-me pela 01h30 para pedir opinião sobre nomeação de Marta Temido como ministra da Saúde. Respondi que ela seria, na minha opinião, a pessoa com melhores condições para substituir Adalberto Campos Fernandes"

O dedo nas escolhas de Adalberto e Temido

José Sócrates acabaria por cair em 2011. O PS voltou ao deserto da oposição, Pedro Passos Coelho governou durante quatro anos, algures no caminho António José Seguro foi afastado da liderança do partido, Costa viria a perder as legislativas, mas, mesmo assim, chegar ao poder com o Bloco de Esquerda e o PCP como aliados.

Apesar de afastado da política ativa, Correia de Campos mantinha-se influente no PS. Neste livro, aliás, conta como, nas vésperas do congresso do PS, ainda em 2014 e antes das eleições legislativas que colocariam frente a frente António Costa e Pedro Passos Coelho, o líder socialista ligou a “perguntar o que pensava de Adalberto Campos Fernandes“. “Percebi que Costa pretendia lançá-lo para voos futuros. Dei as melhores informações”, confessa.

O percurso de Adalberto Campos Fernandes como ministro da Saúde acabou por ser inglório. “Teve grandes condições para o cargo. infelizmente sofreu lapsos comportamentais e gerou uma situação de incompatibilidade com as Finanças, que nele perderam a confiança”, argumenta Correia de Campos. A influência do antigo ministro da Saúde seria outra vez relevante na escolha de Marta Temido como sucessora.

“[14.10.18] António Costa acordou-me pela 01h30 para pedir opinião sobre nomeação de Marta Temido como ministra da Saúde. Respondi que ela seria, na minha opinião, a pessoa com melhores condições para substituir Adalberto Campos Fernandes”, escreve Correia de Campos, que assume ter tentado ainda convencer a futura ministra da Saúde, de quem era muito próximo, a manter Fernando Araújo (futuro diretor executivo do SNS) e Rosa Matos na equipa — esta última foi preterida —, e não indicar Francisco Ramos como secretário de Estado por razões de saúde — Temido insistiu na escolha.

Com Temido, colaborou ativamente no desenho da Lei de Bases da Saúde, que acabaria por motivar longas horas de debate e muitas versões, entre as influências internas (Maria de Belém tinha a sua própria versão) e as negociações à esquerda. Em 2019, já com Rui Rio como líder do PSD, Correia de Campos falharia a reeleição para o CES. Meses depois, o país entraria em confinamento por causa da pandemia de Covid-19, período que ocupa as últimas páginas do livro.

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