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Quando voltou a Lisboa para festejar os 50 anos do seu curso na Academia Militar, Jacinto Veloso reencontrou-se com antigos camaradas de armas que ainda não tinham perdoado a sua deserção durante a Guerra de África. “Alguns foram altamente hostis, estavam absolutamente contra, mal falaram comigo: disseram que eu fiz muito mal, que não se faz e falaram em traição.”
Outros compreenderam-no e apoiaram-no. Tinham já passado muitos anos desde aquela tarde de 12 de março de 1963, em que este ex-piloto da Força Aérea Portuguesa, nascido em Lourenço Marques, colega de Otelo no liceu e na Academia Militar, decidiu voar para o lado do então inimigo, levando um avião para a Tanzânia, a partir de onde se juntou à luta pela independência de Moçambique. Montou uma rede de informações para a qual recrutou hospedeiras da TAP, a secretária de um grupo empresarial e militares portugueses em Moçambique e em Lisboa.
Doze anos depois, em 1975, Samora Machel chamou-o: “Então o que queres fazer agora?” Jacinto Veloso respondeu que gostava de ser diretor da companhia aérea moçambicana, onde poderia aproveitar a sua experiência como piloto. “Não, estás a brincar? Não é isso. Gostavas de ser ministro de quê?”, perguntou-lhe o primeiro presidente moçambicano, dando ele próprio a resposta logo a seguir: “Vamos pôr-te com a Intelligence“.
Foi nomeado ministro da Segurança e criou os primeiros serviços secretos de Moçambique, inspirados no KGB e na Stasi, com a ajuda de agentes soviéticos e da RDA. Em Portugal, estabeleceu relações preferenciais com o PCP. Muitos anos depois foi alvo de uma intriga, montada pelos serviços secretos estrangeiros de influência comunista, que envolveu uma conta na Suíça — foi afastado da pasta, mas manteve-se no governo, como ministro da Presidência para os Assuntos Económicos.
Quando saiu do governo, abriu uma empresa de consultoria, investiu no setor mineiro, tornou-se sócio do Casino do Hotel Polana, foi nomeado mediador do processo de paz com a Renamo e é há dez anos membro eleito do Conselho Nacional de Defesa e Segurança de Moçambique, fazendo assim parte do núcleo restrito de personalidades que se reúnem regularmente com o presidente Filipe Nyusi, para dar conselhos sobre estratégia militar.
Cabo Delgado tem sido obviamente o tema principal destas reuniões desde o início dos ataques dos insurgentes, em 2017. “Fomos todos apanhados desprevenidos”, admitiu Jacinto Veloso ao Observador, quando nos recebeu em sua casa em Maputo, a meio da tarde do último sábado de abril. Custa-lhe utilizar a palavra “fracasso” para qualificar o facto de os serviços secretos moçambicanos não terem antecipado o conflito no norte do país, prefere admitir “alguma deficiência”. “Temos de contra-atacar”, defende, mas diz que as forças armadas ainda estão a ser preparadas para este confronto com o inimigo. E admite que controlar o terrorismo na região pode demorar entre 2 e 5 anos. Pela importância da situação de Cabo Delgado e por não ser assim tão frequente conseguir respostas sobre o tema de alguém tão próximo do presidente, essa parte da entrevista foi transcrita num artigo à parte, que poderá ler aqui.
A fuga no avião. “Pensei: ‘Se tenho uma falha do motor ou de combustível, vou ter aqui grandes problemas’”
Foi de Mocímboa da Praia, vila hoje controlada pelos insurgentes na província de Cabo Delgado, que Jacinto Veloso partiu em 1963. Uns meses antes tinha levado o administrador do distrito a dar uma volta no avião e desenhou tantas piruetas aéreas que o deixou mal disposto. O próprio administrador sugeriu-lhe que voasse nesse dia 12 de março com João Ferreira, um delegado de propaganda médica, para ver como se aguentaria o estômago dele quando o avião começasse a dar voltas sobre si próprio. João Ferreira (que depois viria a ser ministro da Agricultura de Moçambique) era amigo de Jacinto Veloso e já tinham combinado o plano de fuga uns meses antes.
Neste dia almoçaram lulas grelhadas em casa do administrador do distrito, juntamente com o chefe das atividades anti-subversivas no norte, que os transportou ao aeroporto e lhes perguntou se esperava que voltassem. “Sim, sim, espere por nós que eu já volto”, ter-lhe-á respondido Jacinto Veloso, como relatou no seu livro Memórias em Voo Rasante. Praticamente sem bagagem, para não levantar suspeitas, e com pouco combustível no Harvard T-6 de dois lugares da Força Aérea Portuguesa, Jacinto Veloso voou três horas para norte, em direção ao Tanganica (hoje Tanzânia), em velocidade reduzida e altitude elevada, a olhar para o solo e para o mar ao longo da costa.
Hoje, 58 anos depois, como é que olha para esse momento em que tomou a decisão de sair com um avião da Força Aérea de Mocímboa da Praia para Dar-es-Salam?
Acho que tomei a decisão correta. À distância não há dúvida de que foi uma boa decisão. Não foi fácil. Sabia que ia entrar num esquema de grandes dificuldades e foi o que aconteceu. Mas acho que fiz bem, foi uma boa decisão.
Não teve nenhum momento em que se tenha arrependido?
Não. Houve muitos momentos difíceis no exílio, sem ter trabalho, mas consegui sobreviver.
Recorda-se de como olhava para Portugal quando tomou esta decisão?
Olhava para Portugal com muita simpatia globalmente, tinha amigos e pessoas que conhecia. Mas o que via era Salazar, a PIDE, o regime colonial e fascista. De resto, a maior simpatia… E dentro da Frelimo, a filosofia era essa. O Presidente Samora Machel dizia sempre aos guerrilheiros: a nossa luta não é contra o povo português, é contra o regime opressor.
Ainda recorda a sensação física de ir no voo, em que teve de ir a alta altitude, devagar, para poupar combustível?
O problema ali era apanhar muito mau tempo. Quando passámos num rio chamado Rufingi, estava tudo alagado de água. Devia ter chovido enormemente. Não havia diferença entre aquilo e o mar. O que pensei foi: se tenho uma falha do motor ou de combustível, vou ter aqui grandes problemas. Depois, pensei: bom, vamos ter de encontrar uma saída, se houver problemas tenho de resolver. Não entrei em pânico nem nada disso. Quando consegui aterrar, com as lâmpadas vermelhas já acesas, foi um alívio.
Jacinto Veloso pediu asilo político antes de aterrar, mas o operador da torre de controlo não percebia nada do que dizia. Viria a ficar preso um mês e meio com o seu cúmplice João Ferreira, acusados de entrada ilegal no país, com espingardas, pistolas e munições a bordo (que levavam para a Frelimo).
A PIDE de Lourenço Marques (atual Maputo) demorou 24 horas a dar conta do que se tinha passado. Só no dia seguinte às 14h é que seguiu um telegrama para a Interpol, e com um erro no nome do piloto: “Avião militar área Moeda [sic], Cabo Delgado, teria seguido Tanganica tripulado supõe-se tenente Silva Carvalho, levando sua companhia João dos Santos Ferreira (…). Consta terem pedido asilo político autoridades Tanganica”. Mais tarde, o telegrama foi sublinhado em Silva Carvalho, e uma seta manuscrita indicava que se trataria afinal do “alferes Jacinto Soares Veloso”, da base aérea de Sintra, colocado em Nampula.
As autoridades do Tanganica tentaram capitalizar o acontecimento, como se fosse uma ação orquestrada pelo exército de Salazar, denunciando à ONU que um avião português tinha aterrado sem autorização, com armas a bordo, pedindo ao secretário-geral das Nações Unidas “para chamar a atenção o dr. Salazar”.
Em Portugal, os jornais não publicaram a história, nem a censura deixaria. Chegou a ser apenas noticiado que um avião português tinha sido forçado a aterrar na Tanzânia devido ao mau tempo. Mas Salazar tomou nota no seu diário do telefonema que lhe fez o ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, depois das seis da tarde de 14 de março (dois dias depois do aacontecimento), em que lhe falou “sobre o avião que se encontra em Dar-es-Salam, levantado de Moçambique”.
Para a PIDE esta deserção de Jacinto Veloso foi uma surpresa: até aí apenas tinha registo de ter “bom porte moral, não lhe sendo conhecidas ideias políticas”, quando entrou para a Escola do Exército, aos 20 anos, segundo a documentação consultada pelo Observador na Torre do Tombo. Já o seu cúmplice na fuga, João Ferreira, tinha sido identificado um ano antes como “desafeto e de tendências comunistas”, tendo sido acusado de crimes contra a segurança do Estado. Foram emitidas duas ordens de serviço da PIDE com mandados de captura, que nunca foram executados.
Mais preocupante ainda era o facto de Jacinto Veloso não ser um militar qualquer. A própria PIDE alertou uns dias mais tarde: “O alferes Veloso chegou a pertencer aos serviços de informação da Força Aérea, (…) e como tal é de pressupor que tenha conhecimento dos dispositivos de segurança da província”.
“Desisti da minha carreira e desertei para continuar a luta, desta vez a favor do povo a quem pertenço”
Quando foram presentes a um juiz no Tanganica, o tribunal estava apinhado e acotovelavam-se pessoas na varanda, a tentar espreitar pelas janelas. “Veloso vestia uma camisa de farda de caqui sem qualquer divisa e umas calças de caqui. As asas de piloto que ele usava na camisa à sua chegada tinham desaparecido”, descreveu o jornal Tanganyika Standard. Na sessão, Jacinto Veloso assegurou que se fosse enviado de volta para Portugal, a PIDE transformaria a sua vida num horror.
O cônsul de Portugal em Nairobi, no Quénia, enviou “pessoa amiga” (como lhe chamou num telegrama enviado ao MNE) ao Tanganica para tentar falar com as autoridades e com Eduardo Mondlane, líder da Frelimo, que estava também em Dar-es-Salam, muito irritado por não ter sido informado de nada pelas autoridades do Tanganica, e por ter tido um elemento da Frelimo que mal fala português a fazer de intérprete no julgamento: o então secretário-geral da Liga da Juventude da Frelimo.
Úria Simango, então vice-presidente da Frelimo, aparece citado em documentos arquivados pela PIDE a dizer que o piloto Jacinto Veloso e João Ferreira não seriam aceites como membros da Frente de Libertação de Moçambique, porque tinham como política admitir apenas africanos, embora depois da independência todas as raças fossem bem vindas.
Do lado de Moçambique, quando desertou, ninguém o recebeu com desconfiança? Ou a pensar que os vinha espiar?
Sim, isso causou naturalmente muita desconfiança. O investigador designado para me investigar e ao meu colega João Ferreira era um britânico, oficial do Criminal Investigation Department, e ele estava com um tanzaniano em treino, a fazer os interrogatórios. Naturalmente foi muito suspeito, um oficial que fez a academia militar aparecer ali com um avião… a suposição normal é que é o indivíduo está ali a infiltrar-se para tirar vantagem para o Estado português.
E do lado dos moçambicanos, sentiu isso?
Os moçambicanos encheram a sala para assistir ao julgamento. Quando fomos libertados, fomos bem recebidos pelos responsáveis da Frelimo que estavam em Dar-es-Salam.
Qual era o crime de que era acusado?
Eles não são burros. Acusaram-nos de entrada ilegal no território, que é uma coisa evidente, e não de tentativa de espionagem, isso estavam a tentar averiguar. Quando saímos da cadeia, fomos libertados com instruções para deixar o território em uma semana.
Como conseguiu ser bem aceite pelos moçambicanos?
Os responsáveis da Frelimo ofereceram-nos um jantar de despedida num restaurante lá que ainda existe até hoje. Pediram-nos para fazer uma conferência de imprensa para explicar. Isso fez parte da exploração da luta anti-colonial, para os média, incluindo para Portugal, da luta pela independência, etc. Dali conseguimos ir para o Egito. Os países chamados socialistas nem quiseram saber de nada. No Egito o presidente era o coronel Nasser e estavam muito ativos na frente anti-colonial em África. Tinham criado uma associação, a African Association, para receber os exilados e poderem ter um lugar para fazerem propaganda anti-colonial. Receberam-nos e uma das condições era fazer parte desta Association.
Jacinto Veloso e João Ferreira foram libertados a 20 de abril, depois de o tribunal ter retirado a acusação de entrada ilegal no país. Quando o magistrado lhes disse que estavam livres, “apertaram as mãos e abraçaram-se no banco dos réus”, segundo uma notícia da época, arquivada pela PIDE.
A 10 de maio, ainda em Dar-es-Salam, deram uma conferência de imprensa “para denunciar a agressão colonial portuguesa em África”. Jacinto Veloso disse que a sua insubordinação era uma prova de que as forças armadas já não estavam a favor do regime de Salazar e justificou assim a deserção: “Desisti da minha carreira e desertei para continuar a luta, desta vez a favor do povo a quem pertenço”.
O piloto enumerou depois os países que forneciam armas a Portugal, mostrou-se “pronto a dar todo o auxílio possível a todos os movimentos de libertação nacional” e desafiou outros militares a desertarem:
“Convido todos os meus camaradas a desobedecer às ordens de Salazar! Se for possível desertem do seu regime (…) Recusem ligar-se ao exército colonial. Não abandonem o vosso país natal e as vossas famílias para matar o povo inocente. Camaradas das forças armadas portuguesas: Recusem combater! Recusem tomar parte em qualquer ação agressiva e criminosa!”
“Eles roubaram o avião de Salazar”, noticiou no dia seguinte o The Central African Mail, da Zâmbia. Foi a 11 de maio, dia em que Jacinto Veloso aterrou no Cairo, dizendo aos jornalistas à chegada que aguardava instruções de Humberto Delgado, o general que se tinha candidatado às presidenciais em 1958 e era um dos líderes da oposição ao Estado Novo no exterior. O Ministério dos Negócios Estrangeiros informou a PIDE de que Humberto Delgado terá mesmo enviado um telegrama para o Cairo, em inglês, a recomendar a Jacinto Veloso e a João Ferreira que fossem para a Argélia.
A deserção num avião da Força Aérea Portuguesa permanecia praticamente desconhecida na metrópole, mas Jacinto Veloso ia dando a conhecer-se aos círculos da oposição no exterior. Em Junho de 1963, três meses depois da fuga, escreveu ao diretor do jornal Portugal Democrático, editado a partir do Brasil, a mostrar currículo de opositor ao Estado Novo:
“No dia 12 de março de 1963 abandonei definitivamente as Forças Armadas Portuguesas, recusando-me a receber mais ordens do governo fascista de Salazar. Abandonei assim toda a minha carreira militar, esqueci o meu curso da Academia Militar e Escola do Exército e junto-me à Oposição Portuguesa contra o regime fascista e colonial de Salazar, ao lado do Povo para a sua completa libertação e emancipação.
Devo esclarecer que a minha fuga num avião Harvard armado foi produto de quase um ano de planificação. Assim, pela primeira vez um civil e um militar se uniram e disciplinadamente organizaram a sua fuga da colónia de Moçambique. Pela libertação do povo, lutarei até os limites das minhas forças. Os cumprimentos do vosso camarada Jacinto Soares Veloso”.
O que aconteceu ao avião usado na deserção? Jacinto Veloso tentou recuperá-lo e ficou com a ideia de que teria sido desmontado, para o motor ser usado numa escola de mecânicos. Já uma informação secreta da PIDE de Porto Amélia (atual Pemba, Moçambique) deu conta de que a aeronave se encontrava em Zanzibar em Abril de 1967: “O aparelho está a ser tripulado por um piloto da Alemanha Oriental, que também voa num avião bimotor russo, de 16 lugares. Os dois aviões constituem a base de uma força aérea em formação naquela ilha, desconhecendo-se o fim a que se destina”.
Dilemas da guerra aos ex-camaradas. “Iria combater sem saber quem estava do outro lado”
Na última semana de setembro de 1964, quando começou a guerra pela independência de Moçambique, o Ministério dos Negócios Estrangeiros chefiado por Franco Nogueira enviou a todas as embaixadas de Portugal “alguns elementos recebidos do serviço de informação pública das forças armadas, que podem servir para contrariar a propaganda tendenciosa sobre a situação no Ultramar Português”.
Estes boletins procuravam contrapor à “propaganda terrorista” a “verdade dos factos”. De um lado da folha, reproduziam-se as notícias de meios da oposição na clandestinidade ou de órgãos de informação controlados por países adversários; do outro, a versão do Estado Novo sobre cada foco de conflito nas colónias africanas.
Exemplo: “O noticiário: Rádio Portugal Livre em 22 de agosto [de 1964], em língua portuguesa, anunciou ter havido recontros em Moçambique entre tropas portuguesas e forças nacionalistas moçambicanas. A verdade dos factos: trata-se, como é habitual, de uma notícia inteiramente falsa. Em Moçambique a paz e a tranquilidade são gerais e absolutas”.
Tanto não eram que logo a 25 de setembro de 1964, um telegrama secreto do governador geral de Moçambique para o ministro do Ultramar deu conta de obstrução de estradas e corte das linhas telefónicas entre Mocímboa da Praia e Mueda, duas vilas que quase 60 anos depois têm aparecido nas notícias por estarem no epicentro do conflito em Cabo Delgado: Mocímboa é hoje controlada pelos insurgentes; Mueda é a sede do maior quartel-general das tropas moçambicanas, a partir de onde se gere a guerra no norte do país, e que tem sido apontada como próximo alvo.
Abundam os pontos de contacto entre a guerra pelo ultramar em 1964, que opôs os independentistas ao exército português, e agora em 2021, entre os insurgentes e o exército moçambicano. Não são só os nomes das terras. Também as táticas utilizadas têm semelhanças.
Os telegramas do governador iam dando conta das palhotas incendiadas “para intimidação de nativos fiéis [a Portugal], tendo sido deixadas ameaças escritas para alguns”. Do controlo pelo inimigo da estrada entre Mueda e Mocímboa, com “grupos de nativos armados com arcos e espingardas e com intenções agressivas.” Da organização da defesa em Cabo Delgado, com recurso às populações nativas, para proteger as principais pontes e povoações. E da forma como os grupos locais se diluiam entre a população depois dos ataques: “Parece que vivem escondidos [no] mato apoiados [pelas] povoações próximas”. A forma como seis décadas depois os terroristas orientados pelo Estado Islâmico se misturam entre os civis e o apoio que recebem de parte da população é das maiores dificuldades de combate para o exército moçambicano, que também recorre a ex-combatentes e civis das forças locais para defender as vilas.
As questões de terminologia eram igualmente sensíveis. Num telegrama, o Governador Geral em Moçambique usou a palavra “rebeldes” para se referir ao inimigo, o que deu origem a um sublinhado do MNE e a uma chamada de atenção telefónica sobre os inconvenientes do uso de tal palavra — em vez de terroristas.
A barbaridade das decapitações era um temor dos nativos em relação aos brancos, como descreveu o cônsul português em Salisbury, numa carta ao MNE, com base nas impressões de viagem de um “europeu metropolitano” a Moçambique, em agosto de 1963:
“Na região da Zambézia, onde nos encontramos, o indígena continua humilde, serviçal e aparentemente dedicado. É evidente todavia que algo se passa e que se ensaiam tentativas de perturbação. Aqui há uns dias, por exemplo, numa das tais zonas nevrálgicas do norte, apareceram mortos, de “goelas cortadas”, doze indígenas. (…) Tal notícia também cá chegou. Soubemo-lo de maneira curiosa: ao andarmos pelo mato notámos que um grupo de indígenas fugia de nós. Um dos nossos motoristas, bastante desembaraçado, correu para eles e perguntou-lhes porque fugiam. Como resposta, apenas que temiam que o branco os matasse. (…) Com efeito, constava entre os pretos que se não fizessem isto ou aquilo o branco cortaria cabeça. Por isso, os criados do nosso hotel, receosos, iam para casa de táxi”.
Baltazar Rebelo de Sousa chegou a ser o governador geral de Moçambique, entre 1968 e 1970. No primeiro ano fez quatro visitas ao distrito de Cabo Delgado, onde a guerra era mais violenta e lançou mesmo a campanha “O Norte chama por nós”, para aproximar a zona sul, onde se vivia com menos sobressaltos, da zona mais instável. Passou o fim de ano de 1968 em Montepuez, com a mulher, os filhos (Marcelo, atual Presidente da República portuguesa, tinha 20 anos) e os militares portugueses.
Quatro anos antes, o antecessor do pai de Marcelo como Governador de Moçambique era o general José Augusto da Costa Almeida. A 1 de outubro de 1964, pediu autorização para decretar o estado de sítio em Cabo Delgado. Dias antes, tinha-se desenrolado um ataque com metralhadoras aos postos de sentinela do aeródromo de Mueda, ao aquartelamento do batalhão, ao reservatório das águas, à administração e aos calabouços. Não houve feridos, mas as ações de contra-ataque e as buscas para localizar inimigos não resultaram.
Mueda é precisamente o posto onde estava colocado Jacinto Veloso antes de desertar. Era liderado pelo comandante Miranda, com quem o desertor sempre tinha tido uma boa relação, ficando até a sentir-se em dívida por não lhe ter dado uma explicação sobre a fuga. O piloto não participou nestes ataques aos seus antigos camaradas, porque não chegou a combater no terreno.
Chegou a sentir-se português em algum momento enquanto militar?
Sim, sim, sou português naturalmente de origem. Mas optei pela nacionalidade moçambicana.
Não tem nacionalidade portuguesa?
Não tenho, mas posso ter.
A sua deserção, no limite, podia ter provocado a hipótese de ter de combater os seus antigos camaradas de armas. Isso chegou a acontecer?
Não, porque não cheguei a estar em frente de combate. Estive nos treinos e em visitas, mas não na frente de combate. Tive durante uns tempos informações sobre antigos colegas que estavam na frente portuguesa. Uma boa parte [do tempo] eu estava fora, na Tanzânia. Fui professor no Instituto Moçambicano, muito próximo de Dar-es-Salam.
Não chegou a ser confrontado com o dilema pessoal de ter de disparar contra o comandante Miranda. Teria sido capaz de fazer isso?
Isso é difícil de dizer. Para já era difícil acontecer. O comandante não estava na frente de combate, estava no escritório. Nesse tipo de combate, não se sabe quem está do outro lado. Se tivesse de combater era uma unidade, não sabemos quem está, até porque nessas alturas as pessoas andam meio camufladas, pintadas. Portanto, iria combater normalmente sem saber quem estava do outro lado, e vice-versa: também não saberiam se eu estaria deste lado.
Algum dos seus ex-camaradas perdeu a vida em Moçambique, vítima das tropas de guerrilha que ajudou a formar?
Que eu saiba não. Não tenho conhecimento de nenhum colega que tenha morrido em combate. Em acidentes, sim. Um ou outro tiveram ferimentos graves, ficaram inutilizados, mas sobreviveram. Mas não tenho notícia de alguém que tenha morrido em combate.
“Nunca é tarde para aprender”. A carta à afilhada sobre a “vida um pouco vagabunda”
Em 1970, o futuro presidente de Moçambique Joaquim Chissano era o responsável pela segurança e intelligence da Frelimo e incumbiu Jacinto Veloso de montar uma rede de recolha de informações em Moçambique e em Lisboa. O antigo piloto da Força Aérea desvendou essa operação no livro A caminho da paz definitiva, que lançou em 2018: recrutou hospedeiras da TAP que faziam a ligação Lisboa-Maputo, a secretária de direção de um grupo empresarial português, militares nas forças armadas portuguesas e quadros dos setores financeiros e económicos colocados em Moçambique e em Portugal.
Esta rede foi crucial para perceber a tensão crescente em Portugal antes da revolução e manteve-se ativa depois disso: um infiltrado no Estado Maior da Força Aérea teve acesso a mapas que mostravam um plano de ataque a bases da Frelimo na província de Tete, e essa informação foi usada como argumento nas negociações de junho de 1974 em Lusaka, entre as delegações lideradas por Samora Machel e Mário Soares.
A PIDE também ia arquivando as informações que ia colhendo sobre o desertor da Força Aérea. Em 1966 por exemplo, em resposta a um pedido das autoridades francesas, a polícia política do Estado Novo informou que Jacinto Veloso era um agente ao serviço do comunismo internacional, que tinha fugido com um avião por se ter dado conta de que as suas atividades tinham sido descobertas e a sua detenção estaria iminente. Não há qualquer indício no processo da PIDE de que tenha sido descoberto antes da deserção. A polícia não tinha quase nada sobre Jacinto Veloso, mas passou a segui-lo com muita atenção depois.
Registou por exemplo a sua presença em Argel, onde foi Chefe de secção de informação e documentação de voos na Air Algérie, mas não detetou muito mais movimentações, porque as autoridades lhe concederam um passaporte argelino com o nome falso de Louis Garcia, para poder circular mais livremente por outros países. Esta solução seria afinal pouco prática, porque precisava de vistos para entrar numa série de países e colocava-o sob suspeita quando chegava a um novo aeroporto, tendo ficado detido duas vezes para averiguações. Acabou por falsificar um passaporte português temporário passado pelo consulado em Estocolmo, alterando a validade de 60 dias para 5 anos, o que lhe permitiu andar mais à vontade pela Europa e pela América Latina.
No ficheiro da PIDE constam mesmo assim passagens de Jacinto Veloso por Paris, Oslo, Hamburgo e Berlim. E os artigos que publicou em 1968 no Correio da Manhã do Rio de Janeiro, com o título “A Guerra desconhecida”, e onde surgiu identificado como dirigente da Frelimo em Dar-es-salam onde dirigia uma escola de quadros políticos (dava aulas de Geografia, Física, Matemática e Ciências Naturais). A PIDE também tomou nota de que em 29 de maio de 1968 Jacinto Veloso foi notificado para abandonar a Tanzânia no prazo de 48 horas, juntamente com outros professores do Instituto Moçambicano. O cônsul português em Salisbury falou com um jornalista do New York Times, que lhe disse que esta e outras expulsões foram uma reação dos estudantes de etnia maconde, “contra o facto de a quase totalidade dos seus professores serem brancos”. O próprio Eduardo Mondlane, que liderava a Frelimo, era visado, porque os seus contactos com americanos e o facto de ser casado com uma branca americana lhes inspirariam desconfiança.
Também uma carta de Jacinto Veloso enviada de Paris à afilhada de 8 anos em Moçambique foi intercetada e arquivada pela PIDE. Nessa carta, escrita a 27 de outubro de 1968, um mês depois de Marcelo Caetano ter substituído Salazar na Presidência do Conselho, Jacinto Veloso dava conselhos à afilhada, usando como exemplo a sua própria experiência:
“(…) A minha vida agora está um pouco difícil, embora não tenha problema nenhum grave. A saúde é boa, e comida e bebida não falta. Mas penso que vou pegar outra vez nos livros e estudar. Como vês, nunca é tarde para aprender, mas o melhor é estudar quando se é novo. Por isso única coisa que te peço é estudar muito e bem, para poderes ganhar a tua vida mais tarde, sem depender de ninguém. Estou também desempregado agora, mas devo começar brevemente. O que me tem valido são os muitos amigos que arranjei nesta vida um pouco vagabunda. (…) Hoje mesmo vou escrever a minha mãe. E creio que te dei todas as novidades pelo momento. Recebe um beijo amigo do teu padrinho amigo”.
Quando desertou, a sua mãe estava onde? Como reagiu?
A minha mãe já estava em Portugal. Só soube por mim muito mais tarde. Ficou preocupada, mas…
Ela não foi vigiada pela PIDE?
Acho que foi. Tentaram saber onde eu estava, mas ela própria não sabia. Não teve nenhum problema sério.
Sentiu algum cerco da PIDE para o tentarem encontrar?
Sem dúvida. Notava-se através de outros amigos. Quando estive em Paris com nome falso e documento falso argelino, frequentávamos a casa de um angolano famoso, Câmara Pires, que recebia pessoas que lhe eram recomendadas. Era um indivíduo fora de série, que participou na guerra civil espanhola, foi secretário adjunto de finanças do movimento. E ele próprio me disse que tinha indicações, que eu devia ter cuidado com a PIDE. Uma vez dois indivíduos seguiram-me na rua em Paris, consegui despistá-los no metro e não os vi mais atrás…
Não é estranho a PIDE não ter feito pressão maior?
Creio que fizeram. Mas tomei providências para evitar. Depois andei em zonas onde a PIDE podia estar mas não lhe convinha agir, como no sul da Tanzânia, onde estive em vários lugares com a Frelimo.
Como acompanhou a queda de Salazar da cadeira?
Como coisas naturais que acontecem. Pensei: será que vai acelerar a queda do regime ou não? Há perguntas que se colocam. Nessa altura estava na Argélia. Era representante-adjunto da Frelimo. Tinha muito boas relações com os representantes das frentes das colónias de Angola e Guiné, mas também da Frente portuguesa. Tinha alguns amigos lá, que ficaram muito animados. Eu disse: caiu da cadeira, mas não significa o fim do regime, vamos ver.
Via uma diferença entre Marcelo Caetano e Salazar?
Via uma pequena diferença. Alguém que ia amenizar um pouco as coisas, mas não ia mudar a política.
Em Argel chegou a estar com Manuel Alegre?
Estive com Manuel Alegre muitas vezes, tinha muito boa relação com ele. A Frente Patriótica tinha várias pessoas, algumas importantes, como [Fernando] Piteira Santos. Eles viviam o mundo deles, também não nos encontrávamos todos os dias, íamos a algumas receções dos argelinos ou de um outro país que nos convidava no dia nacional. E de vez em quando encontrávamo-nos para conversar sobre a situação. Manuel Alegre tinha boas posições, tinha sido do PCP, depois virou socialista…
Achava que ele ia ter este futuro político?
Não tanto. Mas logo a seguir ao 25 de abril, os argelinos organizaram um avião para levar as pessoas da Frente Patriótica para Portugal. Fui despedir-me ao aeroporto e falei com vários, incluindo Manuel Alegre, a quem pedi para levar um recado a Otelo Saraiva de Carvalho. Tinha sido meu colega no liceu aqui em Moçambique, da mesma turma, e na academia militar, também fomos colegas na artilharia, depois mudei para pilotagem.
Qual era o recado?
O recado era: “Resolveram o fascismo em Portugal, agora vamos resolver o colonialismo em Moçambique”.
Teve resposta?
Não deu logo resposta, mas quando o reencontrei disse que recebeu e tomaram em consideração.
Que imagem guarda de Otelo?
Uma imagem boa, de uma pessoa muito animada, um grande contador de histórias. Depois da revolução, radicalizou-se lá no movimento das FP-25. Acho que foi errado, disse-lhe: isso não tem futuro nenhum. E ele: epá, não sabemos, vamos fazer… Acho que se arrependeu mais tarde. Mas tive relações com ele durante esse tempo das FP-25.
Pediu-lhe algum apoio?
Não. Mas algumas pessoas que tiveram problemas vieram para Moçambique e tiveram aqui algum apoio. Acolhimento, não apoio. Não houve nenhum apoio. Alguns ainda estão aí, reorganizaram a sua vida e casaram-se.
Depois da revolução, Jacinto Veloso integrou a delegação moçambicana que se reuniu com representantes do governo português, em Lusaka, em junho de 1974, e reencontrou-se com Otelo Saraiva de Carvalho, que lhe perguntou. “Mas tu achas que esta malta está preparada para governar Moçambique?”. Jacinto Veloso deu uma resposta que fez rir o futuro comandante do Copcon: “Acho que esta malta está preparadíssima para governar Moçambique. Contudo, se tu conheces um centro de treino para formar pessoal a fim de governar um país recém independente, diz-me que nós vamos já para lá fazer um estágio em ritmo acelerado”.
Uma desautorização: “Os soviéticos fizeram muita pressão para divulgar a rede da CIA e expulsá-los”
No dia 7 de setembro de 1974, a Frelimo e o Estado Português assinaram um acordo de cessar-fogo que previa uma amnistia para todos os militares detidos ou condenados por atividades contra a guerra colonial em Moçambique e a favor da Frelimo. Jacinto Veloso foi desafiado por Samora Machel para criar a rede de serviços secretos em articulação com as agências de espionagem da União Soviética e da RDA.
Residiu nessa altura em Maputo num apartamento no último andar do prédio Horizonte, onde antes chegou a viver o industrial português António Champalimaud, que tinha negócios em Moçambique antes da independência. Foi nesse apartamento que Jacinto Veloso escondeu a família de Joaquim Chissano, então primeiro-ministro, durante uma revolta de guerrilheiros da Frelimo que ameaçaram marchar sobre Maputo em dezembro de 1975 — e que demorou três dias a ficar controlada.
Depois da decisão de desertar e desses anos de luta pela independência, qual foi a sensação de tomar posse como ministro da Segurança?
Antes de tomar posse ainda houve outro episódio interessante. Samora Machel chamou-me quando estava a constituir o governo provisório: “Olha lá, o que tu queres fazer agora?” Eu disse: “Gostava de ser diretor da DETA, a companhia aérea [atualmente Linhas Aéreas de Moçambique (LAM)]. É a minha área”. E ele: “Não, estás a brincar, não é isso. Que ministro queres ser?” E ele disse: “Vamos pôr-te na intelligence”. E eu: “Ok, vamos tentar”.
Montou a rede dos serviços secretos de raiz…
Começámos com cinco pessoas. Mas depois como tínhamos muitas relações com os países do leste, em particular com a RDA, eles convenceram-nos a fazer um serviço cópia do da União Soviética e da RDA, um serviço muito pesado. Estive contra, disse: não devemos fazer isso. Mas o governo decidiu: tem de montar como eles dizem, eles já têm experiência. Fizemos. Depois tivemos de desmembrar isso tudo e ficou o que eu achava que devia ser, só intelligence, não tem operacionais, nem prisões. Mesmo a proteção dos responsáveis — que era feita por esse sector — saiu tudo para a polícia. A imigração estava com a segurança também, na realidade sou fundador dos serviços de imigração, mas não tive mais nada a ver com aquilo.
Mas tinham operacionais no terreno.
Logicamente. Tem de haver responsáveis nas províncias, nos distritos, etc.
Funcionava bem?
Funcionava, com muitas dificuldades, mas funcionava.
Mais focada no interior do país ou no exterior?
Mais no interior, mas também tínhamos boa ligação com alguns lugares, como Portugal e França.
Recolhia muitas informações de Portugal na altura?
De Portugal recolhíamos alguma. Tínhamos boas relações. Como tínhamos muito boa relação com o Governo. E mesmo com os militares. O coronel que foi brigadeiro e depois general, o Chefe do Estado Maior, o [Melo] Egídio, era meu amigo pessoal. Com ele, podíamos conversar sobre o que se passava. Naturalmente que ele não me dava toda a informação, mas o que achava que podia dar para ajudar… tínhamos muita informação por via militar, por via política. Tínhamos boas relações com o PS e PCP.
Tinha muitos agentes em Portugal?
Não.
Quais foram as principais missões?
O que nos interessava era o que andava a fazer a oposição ao governo. Tínhamos mais ou menos conhecimento do que se estava a passar. Através das nossas fontes e inclusive da parte portuguesa, que também estava interessada em saber o que se estava a passar. O foco era na oposição para, no caso de haver tentativa de colocação de bombas ou ações armadas, ver se era necessário tomar medidas preventivas. E também perceber as razões. No meu entender, um serviço de intelligence deve saber o que pensa a oposição, não para reprimir, mas porque a oposição em muitos casos conhece as fraquezas do governo para ganhar adeptos. Então a segurança pode ter informação para dizer ao governo: “Olhem, nós estamos a fazer mal isto, façam favor de corrigir”.
Conseguiram evitar ataques?
Por um lado. E por outro aconselhar ao governo que evitasse medidas erradas que dão azo a que a oposição ganhe adeptos.
Durante muitos anos foi o homem mais bem informado de Moçambique.
Não sei, mas pelo menos informado. Não vinham todas as informações, eram as que chegavam.
Gostou de ter esse papel?
Sobretudo como busca de informação é um trabalho muito interessante. Vim a conhecer outros [que tiveram a mesma função noutros países], como o rodesiano que desenvolveu o serviço de intelligence da Rodésia do Sul, o Central Intelligence Organization. Depois da independência do Zimbabwe acabei por conhecê-lo e trocámos impressões. Terminado o conflito, os operacionais militares e de segurança são colegas, embora tenham estado em lugares opostos. Mas dá para conversar. Assim como aqui em Moçambique: quando foi o governo de transição, os comandantes de guerrilha da Frelimo e os comandantes militares portugueses, tínhamos almoços semanais para conversar.
Qual foi a decisão mais difícil que teve de tomar quando liderou os serviços de Intelligence?
As grandes decisões eram tomadas pela área política. Estive em contradição com o presidente num problema grande, quando identificámos a rede da CIA em Moçambique. Os soviéticos que estavam aí, faziam muita pressão para divulgar que havia uma rede da CIA e expulsá-los [em 1981]. Eu disse: não, já sabemos quem são, vamos controlando. Se nós operarmos [expusermos] isso, vão meter um novo grupo. Consegui aguentar-me durante um tempo, mais de um ano. Mas num dia veio o chefe do estado maior das forças armadas russas pedir um apoio logístico para a aviação russa poder fazer uma escala em Maputo, para uma base de investigação que estavam a desenvolver na Antártida. Dissemos que não havia problema. Veio com ele um militar de alta patente falar com o presidente, não sei o que eles falaram, mas convenceu-o de que devíamos operar a rede da CIA. Fui chamado pelo presidente: tem de operar aquilo, não pode esperar mais, é muito importante. E fizemos isto.
Porque é que o presidente confiou mais no militar soviético do que em si?
Perguntei uma vez. Ele achou que era bom mostrar que a Frelimo tinha um serviço muito forte, que até podia neutralizar a CIA. Talvez fosse este o ponto, ficou entusiasmado por mostrar que éramos melhores que a CIA. Mas isso é um puro engano.
Expulsaram-nos?
Expulsámos. Ainda por cima fizemos isso publicamente, o que normalmente não se faz. Eram uns 7 e havia uns moçambicanos envolvidos, que foram presos, eram os agentes locais. A pior situação foi essa.
Manteve-se no cargo? Isso mostra uma quebra de confiança do presidente em si.
Nem por isso. Outros colegas na direção política também acharam que era bom. Foi uma avaliação politicamente errada.
Andava armado?
De pistola, uma coisa simples. Ainda tenho a pistola. Mas nunca usei. Por causa da função e porque podia ser necessário em qualquer momento.
Andava escoltado?
Tinha um ajudante de campo, que funcionava também como segurança.
Recolha de informação económica em Portugal: “Tínhamos alguém ligado ao Partido Comunista que tinha um negócio”
Em 1985, Ernesto Melo Antunes, capitão de Abril e antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, visitou Moçambique e encontrou-se com Samora Machel, que lhe descreveu uma situação política estável e uma situação económica difícil, com “muitas carências”, “muitas fábricas semi fechadas ou semi-paralisadas” e falta de quadros para a gestão. No fim da conversa, Melo Antunes anotou, em documentos do seu espólio consultado pelo Observador na Torre do Tombo: “Para um maior detalhe dos problemas políticos relativos a Moçambique e África Austral, encarregou o ministro Jacinto Veloso de falar posteriormente comigo”.
Foi uma conversa muito centrada no “apoio externo à força do banditismo da Renamo”, com destaque para a “portuguese connection”, constituída por portugueses espalhados pelo Brasil, África do Sul e Portugal. “[Jacinto Veloso] referiu-se expressamente a Manuel Bulhosa, dando a entender que a sua influência em Portugal resultaria dos antigos apoios (financeiros, pelo menos) prestados a Mário Soares e Almeida Santos”, anotou Melo Antunes. O ministro moçambicano achava que o presidente dos EUA, Ronald Reagan, conseguiria bloquear as operações de apoio à Renamo, se estivesse convencido de que a desestabilização de Moçambique ia contra os interesses dos EUA. Ao mesmo tempo, insinuava a hipótese de “Moçambique recorrer cada vez mais ao apoio soviético”.
Coube aos Serviços de Defesa e Segurança liderados por Jacinto Veloso estabelecer as pontes com a Inglaterra de Margaret Thatcher e com os EUA, para tentar romper o bloqueio imposto pela tutela soviética. Em 1985, num almoço na Casa Branca, o presidente americano Ronald Reagan fez umas piadas para desanuviar o ambiente e Samora Machel terá pedido a Joaquim Chissano para também contar duas anedotas. Jacinto Veloso recorda no seu livro recente A caminho da paz definitiva que Reagan terá respondido: “Estes moçambicanos que contam estas piadas e nos fazem rir com tanta vontade não podem efetivamente ser comunistas! Os comunistas não riem assim!”.
Nesse mesmo ano de 1985, Jacinto Veloso esteve em Lisboa como governante para uma reunião com o Chefe do Estado Maior da Força Aérea, o general Jorge Miranda, o mesmo homem que comandava a Força Aérea no Norte de Moçambique quando o piloto desertou, 22 anos antes. No início do reencontro, o desertor ia explicar pela primeira vez ao seu ex-líder o que o tinha levado a fugir assim. O general português admitiu que ficou “muito perturbado” na altura, mas com o passar do tempo compreendeu e na reunião dispôs-se a ajudar a Força Aérea de Moçambique.
A saída de Jacinto Veloso do Ministério da Segurança e da liderança dos serviços secretos moçambicanos ainda teve uma espécie de empurrão dos serviços de informação do bloco de leste. O então ministro sentiu que era visto pelos pró-soviéticos como uma espécie de infiltrado “social-democrata” na Frelimo, que sabotava os planos marxistas-leninistas. Como pano de fundo, uma polémica envolvendo a Socimo (Sociedade Comercial e Industrial de Moçambique), uma empresa usada por Jacinto Veloso para identificar negócios ruinosos do estado moçambicano com o exterior: de cada vez que apanhava contratos de fornecimento de valor excessivo, a Socimo fazia de intermediária para encontrar fornecedores mais baratos e cobrava uma comissão entre 1 e 5%.
Esta empresa tinha também ligações a Portugal através do PCP e Jacinto Veloso recorda no seu livro uma negociação de percentagens de lucro com os comunistas portugueses: “Numa negociação entre a Socimo e uma empresa participada pelo PCP, quando propus que o lucro do negócio em que íamos participar fosse conjuntamente repartido a 50% eles disseram que isso era ‘leonino’ pois queriam pelo menos 70%!”
Além desta fonte de receita, a Socimo alugava também apartamentos em Maputo. Os rendimentos eram usados entre outras coisas para financiar operações secretas. Acabou em polémica e levou à mudança de pasta de Jacinto Veloso, que passou a ser ministro da Presidência para os Assuntos Económicos. Quando saiu do governo, formou uma empresa de consultoria e entrou no mundo dos negócios, com interesses no setor mineiro, no setor portuário, e nos transportes, sendo atualmente acionista do casino do Hotel Polana, o mais conhecido de Maputo.
Como foi a passagem da pasta da Segurança para a dos Assuntos Económicos?
Tinha criado um esquema económico, uma empresa, para investigar e realizar operações comerciais, para detetar as sobrefaturações, corrupção, esse tipo de coisas, isso teve muito sucesso, foi uma inovação. Foi através da Socimo, uma empresa de comércio internacional. Ajudou-nos a ter acesso a informações noutros países, onde instalávamos uma antena comercial da empresa. Chegámos a estar em muitos países com um representante, que nos permitia recolher informação sobretudo económica.
Tinha em Portugal?
Tinha.
Era português ou moçambicano?
Era português. Encontrávamos um parceiro local e associávamo-nos. Uma espécie de um fifty-fifty. Alguém ligado ao Partido Comunista que tinha um negócio. Depois tínhamos um ou outro sem ligação a partido nenhum. Mas o essencial era o esquema comercial do Partido Comunista.
O que saiu daí em relação a Portugal?
Vários negócios que foram feitos. Foram detetadas sobrefaturações que foram corrigidas. Nós aqui informávamos o governo: estão a fazer um negócio ruinoso. E corrigia-se.
É daqui que vem a sua transição para a pasta da economia?
Talvez por esta experiência, o presidente Samora Machel achou que devia sair da Segurança onde já estava há muito tempo. Disse que podia ser um conselheiro dele para a área económica. Mas talvez haja outra razão.
Que outra razão?
Este grupo dos chamados países socialistas que estavam a prestar apoio não gostavam daquele esquema comercial que não controlavam. Queriam controlar tudo. Faziam reuniões semanais entre eles de análise da situação do país. Quem estava cá era a RDA, a União Soviética e Cuba. Eram os três principais que estavam na área da intelligence. Montaram uma intriga muito bem montada, como os bons serviços secretos sabem fazer, para me desprestigiarem, promoverem a substituição e neutralizarem esse esquema comercial.
Qual foi a intriga que usaram?
A de que estaria a tirar vantagem pessoal desse esquema comercial, com contas na Suíça. O que era verdade, tínhamos montado contas da empresa para ter dinheiro fora, para poder utilizar em qualquer altura. Aqui o controlo cambial era muito forte. Se queríamos fazer uma operação, como mandar um indivíduo investigar o que se passa nas Maurícias — foi um caso concreto — a partir daqui era complicado. Íamos financiar a partir de uma fonte de fora. E outras coisas, como adquirir equipamentos sem dar muitas explicações às autoridades aqui. Era conveniente, mas não para meu uso pessoal.
E o que fez o presidente?
O presidente aceitou fazer um inquérito e fui retirado. Foi um inquérito que durou muito tempo, vários anos.
Foi um golpe duro para si?
Foi um golpe, mas também não fiquei muito aborrecido. Estava tranquilo e as pessoas que investigaram eram pessoas sérias.
Mas o seu nome ficou sob suspeita.
Não, porque não apareceu muito, isso foi feito por serviços secretos especializados, também para não queimar a pessoa. Sabem como se faz isso. Não é queimar, “o Veloso tem contas na Suíça”, isso não saiu em nenhum lugar. Ficou uma coisa muito restrita, para investigação interna.
Qual foi a conclusão?
A conclusão é que não havia contas nenhumas, etc. Mas entretanto todo este aparelho comercial já tinha sido retirado. Que era o que eles queriam.
Ficou ministro para os Assuntos Económicos junto da Presidência, uma espécie de conselheiro para assuntos económicos.
Foi interessante, mas estava sozinho. Dava para fazer a mesma coisa, tinha a força do presidente para ir falar com o ministério tal para saber o que se passava com este ou aquele projeto, mas muito limitado.
Depois iniciou uma carreira empresarial.
Só muito mais tarde, quando me reformei, há mais de 20 anos, criei uma pequena empresa de consultoria, com várias representações: em França tinha boas relações.
Em que setores investiu?
Consultoria geral.
Mas investiu nos casinos do Polana?
O casino aparece mais tarde, fui convidado a ser acionista muito minoritário do Casino e aceitei. Aliás, está em falência total devido à pandemia. As reservas que havia foram usadas para pagar minimamente, mas estão no fim. Também estou num projeto de um porto de águas profundas, a sul de Maputo, mas tem muita oposição dos ambientalistas. Acham que vai estragar um ambiente ecológico quase único no mundo, mas já desmontei tudo isso, não é verdade. O que está por trás são os interesses sul-africanos, que têm participação maioritária no Porto de Maputo e incutem nos ambientalistas que o projeto é prejudicial. Estou a trabalhar nesse projeto com o meu colega Rocha Antunes há 23 anos. Talvez agora estejamos a encontrar uma saída. Esperamos conseguir avançar. Já temos acordo do presidente e do presidente sul-africano, acho que vão fazer alguma força para que o projeto avance.
“A declaração da Frelimo como marxista-leninista parecia uma boa solução, mas foi um erro”
Um episódio mais recente mostra como Jacinto Veloso continuou envolvido em missões secretas, muito depois de ter deixado de dirigir os serviços de informações de Moçambique. Jacob Zuma, que foi presidente da África do Sul entre 2009 e 2018, viveu exilado em Maputo nos anos 70 e 80, altura em que conheceu Jacinto Veloso, responsável por garantir a sua segurança no país. Em 2011, o então presidente sul-africano ligou a Jacinto Veloso por saber que ele tinha contactos com a oposição líbia em Madrid, para lhe pedir que tentasse convencê-los a deixar Muhammar Kadhafi sair do país.
Jacob Zuma dispôs-se a receber o ditador líbio na África do Sul para salvar a sua vida e a da sua família, mas estava a esbarrar na intransigência do Conselho Nacional de Transição líbio, que não queria Kadhafi fora da Líbia, para evitar criar uma fonte de desestabilização para o futuro governo a partir do exterior. Jacinto Veloso esteve em reuniões em Madrid e em Roma com a oposição líbia, que aceitou uma saída do ditador para o estrangeiro. Mas acabou por ser o próprio Kadhafi a recusar a proposta de Zuma, vindo a ser assassinado na sua terra cinco meses depois.
Em março de 2016, surgiu nova missão, desta vez com maior visibilidade: Jacinto Veloso foi incumbido pelo presidente Filipe Nyusi de chefiar a delegação do governo moçambicano nas negociações de paz com a Renamo, para abrir caminho às conversações entre o chefe de Estado e Afonso Dhlakama. Foi um processo intenso, que levou o mediador a perder 8 kg em poucas semanas.
Parte significativa do seu livro é a contar o esforço de mediação entre a Frelimo e a Renamo, em que esteve envolvido por nomeação do presidente em 2016. Como é que olha para o que foi feito e para aquilo que não correu tão bem?
Acho que a Renamo está no bom caminho, a organizar-se como um partido para disputar eleições e conquistar o poder.
Mas continua a instabilidade…
A instabilidade no Centro está num processo de ser terminada. Aquele grupo de Mariano Nhongo está resistente por razões próprias dele e por conflitos com a própria Renamo. Mas do ponto de vista nacional a Renamo está no caminho em que deve estar, como opositor político.
Deve custar-lhe pessoalmente que a instabilidade se mantenha no centro do país.
Sim, naturalmente, mas é um resto que está aí e que é preciso acabar. Está no processo. Pode levar mais tempo. Mas todo o processo de integração está a correr bem agora. Mariano Nhongo acaba entregando-se ou acaba vencido de alguma maneira. Este assunto comparado com Cabo Delgado é um pequeno problema.
Se pudesse voltar ao ponto zero da construção de um país, em que ajudou a construir Moçambique do zero, faria alguma coisa diferente?
Há duas questões diferentes. Uma é ter aderido à luta de libertação pela independência: isto foi bem feito. Os problemas apareceram depois da independência. Até lá fizemos muito bem, andou tudo muito bem, influenciámos o 25 de Abril em Portugal. Depois da independência, podemos discutir erros que foram feitos.
Qual é o principal lamento ou mágoa?
Há erros que na altura não eram erros. Ninguém praticou erros propositadamente. Só passado uns anos, talvez uma constatação histórica. Por exemplo, a declaração do partido Frelimo como marxista-leninista. Isto é um erro hoje. Mas naquela altura parecia uma boa solução para vencer os problemas do país, a fome, a nudez — pessoal mal vestido e calçado, a ignorância, a necessidade de alfabetizar, estes eram os objetivos. E ali houve uma falta de conhecimento das relações internacionais, que atraiu toda uma ação hostil que poderia ter sido evitada.