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O pré-aviso de Putin foi feito com muita antecedência. A data? 23 de fevereiro de 2008, quando vários países reconheciam a independência do Kosovo. “Eles não pensaram nos resultados do que estão a fazer. No final do dia, é uma vara de duas pontas e a segunda ponta voltará e atingirá o Ocidente na cara”, dizia o Presidente da Rússia, há 14 anos, na televisão estatal.
Os Estados Unidos foram o primeiro país do mundo a reconhecer o Kosovo como um país autónomo depois de, em 2008, se ter declarado independente da Sérvia. Vladimir Putin não gostou da posição do Ocidente — França, Alemanha, Reino Unido e Itália foram rápidos a alinhar-se com Washington — e disse-o claramente. “O precedente de Kosovo é um precedente terrível, que destruirá todo o sistema de relações internacionais, desenvolvido ao longo de séculos, não de décadas.” As palavras do então Presidente (que passados três meses, numa dança de cadeiras com Dmitri Medvedev, passaria a primeiro-ministro da Rússia) ecoam até hoje, depois de na terça-feira ter atirado o argumento do Kosovo à cara do secretário-geral da ONU.
Separados por seis metros de mesa, António Guterres e Vladimir Putin falaram sobre a guerra na Ucrânia e, se o líder das Nações Unidas não deixou passar em branco a expressão “operação militar especial” saída da boca de Putin — “consideramos que aquilo que aconteceu foi uma invasão em território ucraniano“ —, o Presidente russo não se calou.
Como Guterres encostou a Rússia à parede (e como Putin e Lavrov se defenderam) em sete pontos
“Conheço muito bem os documentos do Tribunal Internacional da ONU, que dizem que a autodeterminação de um Estado não o obriga a pedir autorização do poder central para proclamar a sua independência”, respondeu Putin. Assim, se as organizações jurídicas dos EUA e da Europa apoiaram a independência do Kosovo, o mesmo direito de se insurgir contra o poder central, neste caso representado pela Ucrânia, deve aplicar-se às auto proclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk porque “houve um precedente”, justificou o Presidente russo.
António Guterres recusou a comparação: as Nações Unidas nunca reconheceram a independência do Kosovo. Apesar disso, entre os 193 estados-membros da ONU, 97 consideram legítima a proclamação de independência daquele país dos Balcãs. Em 2010 — dois anos depois de lhe ser pedido um parecer — o principal órgão judicial da ONU, o Tribunal Internacional de Justiça considerou que a declaração de independência do Kosovo “não violou o direito internacional geral”.
Até hoje, a Rússia continua do lado dos países (como a Espanha e a Grécia) que não reconhecem o Kosovo como Estado independente, mas isso não impede que aqueles 11 mil km2, com menos de 2 milhões de habitantes, se tenham tornado a pedra basilar dos argumentos de Putin. A forma como o Ocidente lidou com a situação nos Balcãs há 14 anos serve de justificação para a operação militar especial na Ucrânia, como lhe chama o Kremlin, e para validar o direito à independência das regiões separatistas de Donetsk e Lugansk.
“O precedente foi estabelecido”, disse Putin a Guterres. “Se esse precedente foi estabelecido, as repúblicas de Donbass podem fazer o mesmo”, argumentou, lembrando ao secretário-geral da ONU que muitos estados do Ocidente reconheceram o Kosovo como um estado independente. “Fizemos o mesmo em relação às repúblicas de Donbass.”
Portugal foi dos últimos países europeus a reconhecer o Kosovo: só o fez a 7 de outubro de 2008, oito meses depois dos primeiros membros da União Europeia o terem reconhecido como um Estado de direito, quando o tema já tinha gerado muita polémica. “É do interesse do Estado português proceder hoje ao reconhecimento formal do Kosovo.” Luís Amado, então chefe da diplomacia, esclarecia a decisão portuguesa. “Estamos convencidos de que a independência de Kosovo se tornou irreversível.”
A data não foi inocente: no dia seguinte, 8 de outubro, a Assembleia Geral da ONU votava o pedido da Sérvia de consultar o Tribunal Internacional de Justiça sobre a declaração de independência. Havia pressão internacional para que os países tomassem posição antes dessa votação e Portugal tardava em marcar a sua. Apesar da resistência inicial em tomar uma decisão apressada, que unia o Presidente da República e o primeiro-ministro — Aníbal Cavaco Silva e José Sócrates — Portugal acabou por ceder e ser o 22.º país da UE a reconhecer o Kosovo, antes ainda de haver um parecer do Tribunal Internacional.
Sobre o assunto, Cavaco Silva chegou a afirmar numa entrevista à Antena 1, em março de 2008: “A declaração unilateral de independência é algo muito anormal, não está previsto no direito internacional.” Tendo Portugal 300 soldados no Kosovo, o então Presidente aconselhava prudência: “Quando não existem soluções ótimas, é preciso pensar muito bem e ter cuidado para descobrir a menos má.”
Rapidamente foi criticado pela então eurodeputada socialista Ana Gomes, que defendia que a independência do Kosovo “era inevitável” e que o “caminho para o Kosovo, tal como para a Sérvia”, seria o da integração europeia.
Calma sempre foi a palavra de ordem do Governo português. José Sócrates — que discutiu o tema Kosovo em reuniões bilaterais com George W. Bush, então Presidente norte-americano, Tony Blair e François Fillon, os primeiros-ministros britânico e francês — disse várias vezes que Portugal “tinha tempo” para tomar uma decisão, preferindo fazer consultas internas primeiro.
Quando se tornava óbvio que Portugal ia seguir o caminho do reconhecimento, o social-democrata José Pacheco Pereira era contra a decisão. “Tudo indica que o Governo português vai abandonar uma das suas raríssimas manifestações de individualidade em relação à União Europeia”, escrevia num texto de opinião no Público. Os grandes partidos europeus, o PSE e o PPE, alinham nesta decisão, escrevia o antigo deputado, e, em Portugal, o PS e o PSD vão certamente apoiá-la. “É, no entanto, uma decisão errada”, escrevia, dizendo que conduziria a “becos sem saída e ao agravar das condições de instabilidade na Europa Central e do Leste.”
Pacheco Pereira temia o precedente, receio que tanto Cavaco como Amado chegaram a verbalizar: “A guerra georgiana e o reconhecimento unilateral da Abecásia e da Ossétia pela Rússia mostram os enormes riscos desta política, que pode ainda alastrar-se à Moldávia e mesmo à Ucrânia.”
Com a posição portuguesa definida, um outro socialista vociferava contra o governo, mostrando que a decisão estava longe de gerar consenso. António Costa, então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, não estava satisfeito. “Para ser sincero não gosto desse reconhecimento, porque, em bom rigor, não deveria ter havido reconhecimento” sem estar “totalmente esclarecido” a questão do direito internacional. “Um país pequeno como Portugal”, dizia em declarações à SIC Notícias, deve ter “uma posição firme e intransigente numa barreira da defesa do direito internacional”.
Ao longo dos oito meses, a única convergência que houve entre os partidos políticos é que o Governo não devia ter pressa em tomar uma decisão. PCP, Bloco de Esquerda e CDS eram contra o reconhecimento, e PS e PSD tinham reservas, sem dizer claramente se eram a favor ou contra.
É um precedente ou não é um precedente? Essa é a questão
A discussão começou logo em 2008, quando um grande número de países apoiou a independência do Kosovo. A primeira proclamação foi feita em 1990, mas, nessa altura, só a Albânia reconheceu a separação daquele país da Sérvia.
O conflito no terreno começou antes disso. No final do século XX, entre 1998 e 99, o confronto armado envolvia as forças de segurança sérvias, a Jugoslávia e o Exército de Libertação do Kosovo, uma guerrilha formada por albaneses. Nesse mesmo ano, durante 78 dias, a NATO travou uma guerra com a Jugoslávia, estado federado composto pela Sérvia e Montenegro, bombardeando fortemente o país.
A 24 de março deste ano, no 23.º aniversário do início da intervenção militar da Aliança Atlântica, a embaixada da Rússia em Portugal assinalou a data com uma publicação no Facebook — uma ação militar “empreendida sem qualquer justificação e sem autorização do Conselho de Segurança da ONU”.
“Durante 78 dias os aviões dos 13 países da Aliança Atlântica (Alemanha, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, EUA, França, Itália, Noruega, Países Baixos, Portugal, Reino Unido e Turquia) realizaram cerca de 2.300 ataques de mísseis e bombas contra 990 alvos no território da Sérvia e Montenegro. Na consequência dos bombardeamentos pelo ‘bloco meramente defensivo’ morreram cerca de 3 mil sérvios, entre eles mulheres, crianças e idosos. Mais de 12 mil pessoas foram feridas”, lê-se na publicação.
Para a NATO, a situação era única e irrepetível: a Sérvia estava a fazer uma limpeza da maioria étnica albanesa e havia uma crise humanitária no país. Era preciso parar com o banho de sangue que estava a ser levado a cabo pelas forças leais ao presidente Slobodan Milošević.
Por isso, os Estados Unidos nunca consideraram que o Kosovo abriria um precedente. Já a Rússia defendeu sempre exatamente o contrário.
Um peso, uma medida. O que for válido para o Kosovo, será para todos
Os países que lidavam com disputas territoriais ou movimentos separatistas na altura, como a Espanha (então com a ETA no País Basco) ou a Argentina (por causa da disputa das ilhas Malvinas/Falkland com o Reino Unido) não quiseram abrir o precedente. Temiam que o caso do Kosovo fosse usado como exemplo para todos os movimentos separatistas terem justificação para reivindicar independência.
No caso russo, e depois da desintegração da União Soviética, era claro que o Ocidente tinha aberto uma porta que já não poderia fechar. “A nossa posição é extremamente clara”, disse Putin, em 2008. “Qualquer resolução sobre o Kosovo deve ser aprovada por ambos os lados. Também está claro que qualquer resolução sobre o Kosovo definitivamente estabelecerá um precedente na prática internacional” — nas entrelinhas, falava já das regiões separatistas localizadas em território da antiga URSS.
Já Sergei Lavrov, chefe da diplomacia russa, lembrava que o precedente era “objetivamente criado, não apenas para a Ossétia do Sul e a Abecásia”, mas para cerca de 200 territórios espalhados pelo mundo.
No ano anterior, o presidente da câmara alta do parlamento da Rússia dissera-o sem pruridos. “No caso do reconhecimento unilateral da independência do Kosovo, a Rússia terá o direito de mudar a sua abordagem sobre as chamadas repúblicas não reconhecidas nas regiões pós-soviéticas — Ossétia do Sul, Abecásia e Transnístria”. Sergei Mironov incluiu ainda na lista a República de Nagorno-Karabakh.
Não demorou. Em agosto de 2008, a Rússia invadiu a Geórgia e reconheceu a independência da Ossétia do Sul e da Abecásia. Quando visitou Portugal em setembro desse ano, Condoleezza Rice rejeitou comparações. “A situação do Kosovo era sui generis, era única. O reconhecimento da independência ocorreu depois de negociações muito, muito longas, para decidir o estatuto do Kosovo. A situação era completamente diferente”, disse a secretária de Estado de George W. Bush. “Não há um precedente aberto pelo Kosovo e não devemos permitir que essa comparação seja feita.”
Em 2014, a carta Kosovo voltou a servir como trunfo durante a anexação russa da Crimeia, região autónoma ucraniana. Ao declarar independência, o parlamento da Crimeia recorreu ao exemplo do Kosovo. “Nós, os membros do parlamento da República Autónoma da Crimeia e do Conselho Municipal de Sebastopol, no que diz respeito à Carta das Nações Unidas e a toda uma série de outros documentos internacionais e levando em consideração a confirmação do status de Kosovo pelo Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas em 22 de julho de 2010, que diz que a declaração unilateral de independência de uma parte do país não viola nenhuma norma internacional, tomamos esta decisão”, lê-se no texto da declaração de independência.
Para o tribunal da ONU, a independência do Kosovo não violou a lei
Voltemos atrás, a 2008. O pedido da Sérvia é discutido na Assembleia das Nações Unidas a 8 de outubro e para o Tribunal Internacional de Justiça segue a seguinte pergunta: “A declaração unilateral de independência feita pela Instituição Provisória de Autogoverno do Kosovo está de acordo com a lei internacional?”
Pela primeira vez na história, uma declaração unilateral de independência ia ser analisada por um tribunal.
A resposta, que seria sempre um parecer não vinculativo, demorou 652 dias a chegar e estava longe de corresponder à pretensão da Sérvia. A independência do Kosovo nada tinha de ilegal. Os argumentos? “A adoção da declaração de independência de 17 de fevereiro de 2008 não violou o direito internacional geral porque o direito internacional não contém ‘proibição de declarações de independência’.”
Além disso, o tribunal considerou que a Resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU não era posta em causa porque “não descreve o estatuto final do Kosovo, nem o Conselho de Segurança reservou para si a decisão” final. A resolução em causa colocava o Kosovo sob administração interina da ONU — e assim foi durante quase 10 anos — e autorizava presença civil e militar na área, já depois da intervenção militar da NATO.
Por outro lado, considerava que a declaração de independência tinha sido feita por “representantes do povo de Kosovo” e não pela Instituição Provisória de Autogoverno. Com essa decisão, a supervisão da ONU cessava e o Kosovo tomava conta do seu destino.
Kosovo é também uma questão de influência política
Se juridicamente se discute se o Kosovo é, ou não, um precedente, politicamente a sua importância para o Presidente russo é outra.
“Há uma perceção efetiva por parte de Putin e de alguma elite russa de que os interesses da Rússia, que parte da sua esfera de influência, não foi respeitada. Primeiro pelos europeus, e a ordem não é indiferente, depois pelos Estados Unidos.” O comentário é de Miguel Monjardino, analista de política internacional, ao Observador.
“Putin sente que estes países se aproveitaram de um momento de enorme fraqueza da Rússia para afirmarem a sua influência e diminuir a influência russa junto de um aliado tradicional, neste caso a Sérvia”, diz o professor convidado do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, falando da independência do Kosovo.
Miguel Monjardino refere ainda que a forma como Vladimir Putin apresenta a sua operação especial tem vindo a evoluir. “Há dois meses, era sobretudo sobre a Ucrânia. Nas últimas duas semanas, tem a ver com a NATO, os Estados Unidos, com a ambição de Putin de redesenhar a ordem internacional que foi criada após o colapso da União Soviética.”
Assim, este momento na Ucrânia e a sua ligação ao Kosovo está muito relacionada com a ideia de Putin de que a Rússia “é uma grande potência e que merece ter um grande império”.
“Chegou a altura da Rússia recuperar uma parte do que perdeu em 1991”, refere o analista de política internacional, que acredita que para Putin e para a elite russa mais chegada ao setor de segurança, “há a ideia de que a Rússia foi roubada”.
No entanto, lembra que há uma parte da História que acaba sempre por ser mal contada, especialmente por Putin. “O fim da União Soviética foi decidido pela Rússia, por Boris Yeltsin, que passou o poder a Putin, com a Ucrânia e a Bielorrússia. Era preciso afastar Mikhail Gorbatchov”, o homem que seria o último Presidente da União Soviética.
Miguel Monjardino refere-se ao Pacto de Belaveja, assinado na Bielorrússia. Nesse encontro secreto, os presidentes da Federação Russa, Bielorrússia e Ucrânia, Boris Yeltsin, Leonid Kravchuk e Stanislav Shushkevich, três líderes das quatro repúblicas que assinaram o Acordo de 1922 que criou a União Soviética, assinam um documento em que declaram que a URSS deixou de existir. “Criaram uma Comunidade de Estados Independentes que nunca imaginaram que não sobrevivesse.” Gorbatchov só confirmou o fim da União Soviética dias depois, a 25 de dezembro de 1991, e renunciou ao cargo. Boris Yeltsin tornou-se o primeiro presidente da Rússia para, em 2000, passar o poder a Putin que se torna o segundo presidente da história do país.
“A Guerra Fria nunca acabou do ponto de vista de Putin. Essa luta contra o Ocidente continua na sua mente”, diz o professor, sendo essa a motivação que encontra no líder russo para invadir a Ucrânia. No entanto, recusa a ideia de que o Kosovo tenha aberto algum tipo de precedente. “Não faz sentido Putin usar esse argumento, o Donbass faz parte de um país independente que foi invadido e a Ucrânia não quer fazer parte da Rússia”, conclui.
Entrada na Crimeia e no Donbass: legal ou ilegal?
Os pontos de vista não são todos iguais e há quem, em Portugal, defenda que a operação militar de Putin é legal, tanto agora como em 2014.
“A intervenção na Crimeia é muito mais legal do que no Kosovo. A do Kosovo não foi legal.” A afirmação é de Alexandre Guerreiro, antigo analista de informações no Serviço de Informações Estratégicas de Defesa e que defendeu, em 2021, uma tese de doutoramento na Faculdade de Direito de Lisboa onde argumenta que a anexação da Crimeia foi legal à luz do Direito Internacional. As suas posições têm sido polémicas, tendo sido acusado de manter uma posição pró-russa (que o próprio nega).
Pouco dias antes da invasão da Ucrânia, o português estava na capital russa, a convite da universidade MGIGO — Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscovo — para falar de um assunto que quase parece futurologia, tendo em conta a guerra que estalou a 24 de fevereiro: “Os princípios da autodeterminação dos povos, não interferência nos assuntos internos e respeito pela integridade territorial dos estados no mundo moderno.”
Dali, acredita Alexandre Guerreiro, saiu um contributo seu para que a Rússia pudesse intervir na região separatista do Donbass, dentro da legalidade. Reconhecer as auto proclamadas repúblicas como Estados independentes e responder a um pedido de ajuda, se tal acontecesse. “Foram retiradas as minhas impressões e enviado um relatório ao Presidente Putin e a Lavrov”, disse em declarações ao Expresso. “Podia haver alguma legalidade com o reconhecimento das duas comunidades como Estados soberanos” e se fosse formulado um convite à Rússia por ter havido uma ingerência de outro Estado, o Kremlin “podia intervir sem estar a violar” as leis internacionais.
A sua opinião não é, no entanto, suportada por outros juristas e especialistas portugueses em Direito Internacional. Numa conferência, a 5 de abril, na Faculdade de Direito de Lisboa, intitulada “A Ordem Internacional em Mutação: A Guerra na Ucrânia”, onde Alexandre Guerreiro foi um dos oradores, os demais participantes defenderam o oposto.
O primeiro orador, Nuno Rogeiro apontou “a ilegalidade desta invasão brutal”, considerando a guerra na Ucrânia um “crime de agressão que viola a carta das Nações Unidas”. E ressalvou que as ilegalidades russas começaram antes. “As violações da legalidade internacional começaram muitos antes desta invasão, começaram com a anexação da Crimeia, depois transformada num travesti de referendo sob forças militares, contrariando o direito internacional de liberdade.”
Rogeiro lembrou que, no caso atual do Donbass (e das regiões separatistas de Lugansk e Donetsk), a Rússia afirmou “agir em benefício de um povo que se quer autodeterminar”, não havendo quaisquer “movimentos que tivessem lutado pela secessão” antes de Vladimir Putin ordenar a invasão do país. Por último, recusa qualquer paralelismo com a situação do Kosovo — “é uma declaração de independência discutível, não tem reconhecimento universal, mas não é comparável com o que se passa aqui”.
Já Alexandre Guerreiro disse ter dúvidas sobre se o atual “conflito armado” poderia ser considerado uma “guerra”, ilustrando a sua posição com várias definições dos dois termos no direito internacional.
“Guerra ou não, para mim é uma agressão”, defendeu o orador seguinte, Fernando Loureiro Bastos, professor daquela faculdade. “A essência absolutamente essencial do sistema é a proibição do uso da força ou a proibição de agressão.” E, numa crítica à posição de Alexandre Guerreiro, afirmou que “qualquer pessoa que queira chamar-se internacionalista, com a mínima compreensão do Direito internacional, não pode ignorar isto”.
Ao Observador, Bruno Cardoso Reis, questionado sobre se há um precedente aberto com o Kosovo como Putin defende, responde que a questão é bastante interessante e muito complexa. “No fundo, Putin vai usar o mesmo tipo de argumento que é este princípio de autodeterminação — introduzido em termos da ordem internacional a partir do final da Primeira Guerra Mundial, ainda com a antecessora das Nações Unidas, a Sociedade das Nações”, diz o historiador e especialista em segurança internacional.
Um dos problemas levantado desde logo, argumenta, é que se os povos têm direito a definir o seu governo, têm direito à autodeterminação, a ter o seu próprio Estado, “quem é que define o que é que é um povo e onde se desenham as fronteiras?”
Para os portugueses, por sermos um “país excecionalmente homogéneo”, é difícil perceber esta questão, sublinha o investigador. “Temos populações com línguas, com religiões, com costumes diferenciados e que vivem misturados. Aí o problema é sempre este: por que é que eu hei-de ser uma minoria no teu estado quando posso ser uma maioria no meu estado?”, sublinha, lembrando que essa questão colocou-se logo nos anos 1930 e foi usada por Adolf Hitler para justificar as exigências territoriais que fez à República Checa e à Polónia. “O argumento é de que havia alemães a serem oprimidos nesses territórios.”
Embora haja mecanismos à partida pacíficos para resolver estas situações, como diz Guterres, Bruno Cardoso Reis lembra que “muitos dos conflitos a que temos assistido desde o final da Guerra Fria são conflitos identitários em torno desta questão”.
Apesar de tudo, o historiador considera que a situação do Kosovo é distinta de outras. “Houve, de facto, uma violência prolongada do estado sérvio durante um período muito longo e isso resultou num genocídio, que resultou numa vaga migratória”, com Portugal a ser um dos países que recebeu refugiados kosovares.
“O facto de a independência nunca ter sido reconhecido, por exemplo, por um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, como a Rússia, nunca ter sido reconhecido pela Espanha, que tem os seus próprios problemas de separatismo, torna este argumento bastante interessante do ponto de vista de Putin. Há esta ideia de que se há uns separatismos que podem ser reconhecidos, por que motivo os outros não podem?”, esclarece Bruno Cardoso Reis.
No final, tudo se resume ao contexto. “Tem tudo a ver com a credibilidade das acusações de genocídio. A Rússia nunca apresentou nenhuma prova credível de que isso estava a acontecer no Donbass e muito menos agora”, diz, considerando que seria incrível que a Ucrânia escolhesse uma altura em que tinha quase 200 mil tropas russas na fronteira para fazer isso. “Esta credibilidade faz toda a diferença e é isso que explica que mesmo aliados próximos da Rússia não reconheçam estas repúblicas separatistas. A China não reconhece a Ossétia. Basicamente são reconhecidos por dois ou três estados ligados à Rússia, mas são párias a nível internacional”, conclui.