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FP-25 de Abril. O processo judicial que foi desaparecendo aos poucos

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O caso começou com força e estrondo: a 19 de junho de 1984, a Justiça deteve mais de 50 elementos do grupo terrorista FP-25 de Abril.

No primeiro processo em tribunal, 48 foram condenados por associação terrorista.

Num segundo julgamento, por crimes de sangue, foi impossível atribuir crimes concretos a cada um dos operacionais, o que fez com que houvesse apenas quatro condenações — três eram arrependidos e um confessara o seu crime.

A 2 de março de 1996, o parlamento aprovou uma amnistia para os crimes de associação terrorista. O Presidente da República Mário Soares disse que era um passo “no sentido da reconciliação nacional”.

Polícias e magistrados contam como se sentiram "sozinhos" durante uma investigação incómoda.

Este artigo é a terceira parte da série multimédia “Os Anos de Chumbo das FP-25 de Abril”, constituída por quatro artigos e três episódios de um podcast especial. Amanhã, leia “Mais de 40 anos depois, o que fazem os ex-FP-25”. Para ter uma experiência multimédia mais completa, veja este artigo num computador.

O dia tinha sido longo com a operação lançada de norte a sul do país para deter dezenas de suspeitos de integrarem as FP-25 de Abril. O telefone tocou na casa do diretor da Polícia Judiciária, Carlos Picoito, e do outro lado da linha estava o então coordenador da Direção Central de Combate ao Banditismo (DCCB) a dar-lhe conta de um volte face na investigação que decorria há meses: o juiz de instrução que estava a ouvir os detidos decidira emitir mandados de detenção para a cúpula da organização. Um deles seria destinado a Otelo Saraiva de Carvalho, o estratega do 25 de Abril que a PJ tinha evitado deter naquele momento para não provocar qualquer reação violenta.

Já era tarde para avisar fosse quem fosse. O primeiro-ministro, Mário Soares, que nas últimas semanas já tinha manifestado várias vezes publicamente a necessidade de uma resposta às ações terroristas no país — que se tinham intensificado nos meses anteriores — estava em visita oficial ao Japão. Mas era com o ministro da Justiça, Rui Machete, que Picoito falava habitualmente. O diretor nacional da PJ decidiu então avisar o ministro no dia seguinte. Pelas 9h da manhã, já estava a tocar à campainha, na Avenida do Brasil, em Lisboa, para lhe revelar o que ia acontecer em breve.

Os mandados de detenção tinham sido emitidos no maior secretismo possível e entregues em envelopes fechados aos inspetores da PJ que iam executá-los. Isto depois de ouvidos alguns elementos das FP-25 que garantiam que Otelo estava nas reuniões em que participavam. Para reforçar estas suspeitas, os cadernos apreendidos em casa do militar no dia da operação também mostravam alguns elementos comuns aos da organização terrorista. Para o juiz de instrução Martinho Almeida Cruz, era urgente deter a cúpula.

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Naquela manhã de 20 de junho de 1984, quando o tribunal estava a dar conta disso por telefone à Direção da Arma de Artilharia, onde Otelo prestava serviço, Rui Machete estava a caminho ou mesmo já no Palácio de Belém para informar o então Presidente da República, Ramalho Eanes — o mesmo Presidente que retirou a Otelo a liderança do COPCON, no 25 de Novembro, e que derrotou Otelo em eleições presidenciais por duas vezes. “Não passava pela cabeça de ninguém que o Presidente da República não fosse posto ao corrente de um facto desses, que ia ter repercussão política e interna”, diz Carlos Picoito ao Observador, 37 anos depois — ele que, antes de chegar à PJ, foi chefe de gabinete do ministro da Justiça que antecedeu Rui Machete.

O Presidente da República, General Ramalho Eanes (C), acompanhado por Rui Machete (E), ministro da Defesa, e pelo chefe de estado maior das Forças Arrmadas, general Lemos Ferreira, na cerimónia da condecoração do estandarte do Regimento de Comandos Portugueses, na Amadora, a 29 de junho de 1985. Luís Vasconcelos / Lusa

O Presidente da República, Ramalho Eanes, ao centro, ladeado por Rui Machete, ministro da Defesa, à esquerda, e pelo chefe de Estado Maior das Forças Armadas, general Lemos Ferreira, em 1985

LUÍS VASCONCELOS/LUSA

Sentado numa esplanada em Foros de Amora, onde todos o conhecem, o coordenador da investigação, António Coutinho, não acredita que esta informação tenha sido uma verdadeira novidade para o Governo. Na biografia que escreveu sobre Mário Soares, o jornalista Joaquim Vieira diz mesmo que houve pressão do Governo para que se detivessem os suspeitos dos crimes violentos que se registavam há já quase quatro anos. Este era um assunto discutido em Conselho de Ministros e que dividia opiniões: alguns ministros consideravam que se devia avançar, Machete era mais receoso. E terá sido Mário Soares quem deu a ordem para a polícia seguir em frente com a operação policial, que ganhou o nome de Orion, desconhecendo por completo, porém, a cúpula da organização.

Ouça aqui o primeiro episódio do podcast especial.

“Porquê? Porquê?” As vítimas das FP-25 de Abril

Ao Observador, o coordenador da PJ já aposentado lembra que nessa altura a investigação tinha trazido à tona o nome de Otelo Saraiva de Carvalho — e isso mesmo tinha sido referido nas reuniões restritas que se faziam com o então diretor da Direção Central de Combate ao Banditismo, Dias Borges, adjunto de Picoito. Nos próprios cadernos de Otelo Saraiva de Carvalho percebia-se que ele e a organização tinham sido avisados da investigação.

“O Carlos Picoito nunca fez parte dessas reuniões, mas com certeza que o seu colega de direção lhe transmitia o que se passava. Ele estava perfeitamente dentro de toda a informação e do planeamento que estava a ser feito. Ele sempre soube dessa situação. Quando são feitas as reuniões para dar origem à operação aparece logo o Otelo, nós sabíamos. E está no processo desde o início. O Governo, através do Ministério da Justiça, também deveria saber”, arrisca António Coutinho.

A informação sobre a detenção de Otelo chegou ao Governo antes de chegar ao Exército. Otelo só seria apresentado ao juiz de instrução às 15h, acompanhado por um oficial de patente superior e sob uma apertada escolta policial.

Seis interrogatórios e um encontro secreto. O frente a frente que durou meses entre Otelo e um juiz

Otelo soube que ia haver uma operação ainda antes de o processo ser oficialmente aberto

Para alguns elementos do Governo, a concretização da detenção podia até ser uma novidade, mas para a organização em si não era. Os documentos apreendidos a Otelo Saraiva de Carvalho, que foram essenciais no processo por serem quase um diário seu na organização, mostram que a 4 de fevereiro de 1984, quatro meses antes da Operação Orion, a comissão política da Força de Unidade Popular (FUP), o partido que seria a componente legal da organização, reunia em Montemor-o-Novo — numa quinta em nome de César Escumalha, que viria a ser também detido. Nesse encontro estavam presentes o militar e 15 outros membros da organização, entre eles Pedro Goulart, José Mouta Liz, César Escumalha e José Linhas.

Pedro Goulart dava, então, conta de que estava prevista a prisão de alguns elementos da organização e que era preciso definir o que dizer em caso de detenção. A informação, dizia, tinha sido veiculada por alguém ligado ao PS. “Info vinda PS sobre possibilidade ser lançada ofensiva determinada pelo SIE [Serviço de Informações do Estado]”, lê-se nos cadernos apreendidos na casa de Otelo, em Oeiras.

FP-25: Pedro Goulart, à esquerda e Santos Poeira depois de sair da cadeia a 18 de maio de 1989. LUIS VASCONCELOS/LUSA
Pedro Goulart, à esquerda, e o também arguido Santos Poeiras depois de saírem da cadeia a 18 de maio de 1989
LUIS VASCONCELOS/LUSA
FP-25: Pedro Goulart, à esquerda depois de sair da cadeia a 18 de maio de 1989. LUIS VASCONCELOS/LUSA
Pedro Goulart, à esquerda, depois de sair da cadeia a 18 de maio de 1989, onde estava em prisão preventiva
LUIS VASCONCELOS/LUSA

Essa reunião serviria assim para discutir as consequências de uma operação policial para a organização e como deviam os seus elementos agir para que continuasse a funcionar. Para isso, diziam, seriam fundamentais todos os elementos que permanecessem em liberdade. João Gomes, um dos presentes, sugeriu que quem fosse preso reforçasse sempre que os detidos eram militantes das FUP e aos restantes que tivessem cuidado pois podiam ainda vir a ser detidos — pelo que não deviam dormir em casa. Os advogados deviam tomar a iniciativa de ir ter com os clientes à prisão oferecendo os seus serviços.

Só da parte da comissão política da organização, estimavam que pudesse haver “30 presos e 10% a falar”. “Possibilidade de espancamentos”, lê-se nos cadernos. César Escumalha, que estava ligado à ECA (a Estrutura Civil Armada que o Ministério Público diz mais não ser do que as FP-25), sugeriu também que fosse feita uma reunião imediata em caso de haver prisões — como, aliás, Otelo acabou por fazer depois de ser desencadeada a primeira fase da Operação Orion, que o deixou em liberdade.

A certa altura, Otelo escreveu mesmo esta frase: “Queimar papéis. ComPol [Comissão Política] restante assume direcção. Escapada à PR [prisão]. (EU NÃO)”. Para o coordenador António Coutinho, isto significava que Otelo sabia que ia haver detenções — e achava que iria escapar.

Os cadernos de Otelo contam que, ainda nessa reunião, Mouta Liz, também considerado um dos cérebros da organização, defendeu “severidade total relativamente a responsáveis da organização quanto ao seu comportamento”, depois de Goulart falar em “traições” e em “morte”, antevendo que alguns elementos pudessem vir a dar informações à Justiça, como de facto aconteceu.

António Coutinho desvaloriza agora esta fuga de informação. “Não estaria de todo correta a informação, tanto mais que as coisas depois levam caminhos que não podem ser previstos na justiça. Dizer que ‘isto vai acontecer assim porque o poder político controla’ não é verdade. Eles não me controlavam a mim, nem controlavam o juiz Martinho Almeida Cruz, portanto falhou tudo. Otelo foi preso e foram mais indivíduos presos.”

JULGAMENTO DO CASO FP-25 NO TRIBUNAL DE MONSANTO. OTELO SARAIVA DE CARVALHO E OUVIDO. NO CENTRO O ADVOGADO ROMEU FRANCES. LUSA
Otelo Saraiva de Carvalho enquanto estava a ser ouvido no Tribunal de Monsanto. Ao centro, o advogado Romeu Francês
LUIS VASCONCELOS/LUSA
19851007 - LISBOA: JORNALISTAS ASSISTEM POR TELEVISAO AO JULGAMENTO DAS FP 25 A DECORRER NO TRIBUNAL DE MONSANTO. LUSA MANUEL MOURA
Os jornalistas assistiam ao julgamento numa sala anexa à sala principal das sessões
MANUEL MOURA/LUSA
JULGAMENTO DO CASO FP-25 NO TRIBUNAL DE MONSANTO. O ADVOGADO ROMEU FRANCES COM OUTROS ADVOGADOS. LUSA LUIS VASCONCELOS
Os advogados sentavam-se na parte da frente da sala do tribunal e os arguidos na parte traseira. Estavam separados por um vidro à prova de bala
LUIS VASCONCELOS/LUSA

O assalto dos 108 mil contos e a ideia da polícia de que iriam parar por uns tempos. Mas não

Dias depois desta reunião, ainda em fevereiro de 1984, as FP-25 reivindicaram o assalto a uma carrinha de transporte de valores à saída das garagens do Banco Fonsecas & Burnay, junto ao Marquês de Pombal, em Lisboa. Um grupo de operacionais fortemente armados, que se deslocavam em dois carros com matrículas falsas, tinham conseguido roubar 108 mil contos, o que aos dias de hoje significaria cerca de 2,5 milhões de euros. A PJ pensou que, depois disto, a organização iria estar um tempo desaparecida porque tinha dinheiro para se financiar — assim, a polícia teria mais tempo para aprofundar a investigação.

“Já havia noção de que era uma organização mais vasta e que, nomeadamente, tinha um braço político legal e um braço armado, à semelhança de outros movimentos terroristas, como por exemplo a ETA”
Carlos Picoito, ex-diretor da Polícia Judiciária

“Já havia noção de que era uma organização mais vasta e que, nomeadamente, tinha um braço político legal e um braço armado, à semelhança de outros movimentos terroristas, como por exemplo a ETA”, explica Carlos Picoito ao Observador, numa entrevista concedida no seu escritório nas Amoreiras, com vista para Campo de Ourique. Aliás, a pretensão de ter uma organização semelhante à da ETA está mesmo escrita pela mão de Otelo num dos seus manuscritos apreendidos pela polícia e que constam do processo crime. “Tivemos a sensação nítida de que a organização tinha recolhido fundos suficientes para se bastar durante um ano”, lembra o então diretor da Polícia Judiciária.

Depois de Otelo ser detido, viria a ser encontrado, na Direção da Arma de Artilharia, onde trabalhava, um manuscrito, nas costas de um ofício datado de 6/2/84, com um orçamento que se supôs ser para a Organização Política de Massas (OPM). Nesse orçamento, escrito à mão, eram distribuídos 46 milhões de escudos (mais de um milhão de euros nos dias de hoje): em aquisição de máquinas, sedes, carros novos e tipografias; em investimentos em restaurantes e em estruturas de apoio, como casas de recuo; e na colocação de divisas na Suíça.

Mas aconteceu exatamente o contrário daquilo que a PJ esperava: depois do assalto dos 108 mil contos, as ações das FP-25 multiplicaram-se e tornaram-se cada vez mais violentas. A morte de um bebé num ataque à bomba em São Manços; o homicídio do administrador da Gelmar, Rogério Canha e Sá, abatido a tiro à porta de casa; e a tentativa de homicídio de Arnaldo Manuel Freitas, industrial da vidreira da MP Roldão e Filhos. Para juntar a este escalar de violência, chegava à Polícia Judiciária a informação de um plano de assaltos para os meses de junho e julho. Pior: a organização iria começar a fazer aquilo a que chamava “engarrafamentos” — ou seja, raptos.

A informação fora esquecida na fotocopiadora do Banco Fonsecas & Burnay, na Rua Castilho, em Lisboa, por um dos elementos das FP-25, Vítor Castro Ribeiro — um outro funcionário do mesmo banco acabaria por entregar o papel à polícia. Parte desse documento, com data de 13 de janeiro de 1983, foi elaborado numa reunião na Praia das Maçãs e falava em “raptos” e “engarrafamentos” (que mais não eram do que raptos em que as vítimas eram colocadas em pequenas celas). Para isso, tinham sido já construídos cárceres privados. Dois deles seriam descobertos pelas autoridades meses depois: um junto ao apeadeiro de Valdera, no Pinhal Novo, encontrado sob um piso de cimento que a polícia teve de destruir; e outro na Quinta Casal de Moledo, em Refugidos, Alenquer, uma propriedade que tinha vários colchões e albergava elementos da organização.

Nesta altura já o poder político se mostrava preocupado com o que estava a acontecer. O governo tentava fazer aprovar uma nova lei de segurança interna que incluía alterações no crime de terrorismo e, a 19 de abril, o então primeiro-ministro, Mário Soares, chegou mesmo a assumir a sua inquietação numa entrevista à revista francesa L’Express. Dizia o primeiro-ministro socialista, assumidamente preocupado com as “actividades das FP-25”, que as ações do PCP estavam a deslocar-se “para terrenos além da legalidade” — segundo noticiava o Expresso de 30 de junho de 1984, quando percebeu que a Operação Orion não tinha levado a uma única detenção na área do PCP, Soares não conseguiu evitar a surpresa.

Recorte do jornal Expresso a dar conta da reação de Mário Soares à operação

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“O alarme social criado pelo assalto e, depois, pelos crimes praticados contra as pessoas na sua sequência aumentaram, naturalmente, a preocupação do poder político, enfim, do Governo. Portanto, nós chegámos à conclusão de que havia que ir para o terreno”, afirma Carlos Picoito, que acabou por comunicar aos seus homens que era necessário agir. “Quando alguém me dizia que o processo ainda precisava de algumas diligências de investigação, eu dizia que tínhamos de avançar”, lembra.

A Operação Orion acabaria por ser posta em prática a 19 de junho de 1984, com 80 suspeitos e meia centena de mandados executados — muitos conseguiram escapar. E foi quando se estava a preparar a operação que António Coutinho diz ter sentido uma pressão interna sobre a investigação que conduzia há meses.

A hierarquia da PJ — que tinha reunido com o Governo num gabinete de crise realizado dias antes e onde tinham discutido o assunto — entendia que era preciso deixar a cúpula das FP-25 de fora desta operação inicial; já António Coutinho achava que havia um enorme risco de fuga porque a PJ não tinha meios para monitorizar permanentemente os suspeitos que ficassem em liberdade.

“Isso tem uma justificação. Por um lado, nós tínhamos a ideia de que se fossemos à cúpula e deixássemos os operacionais de fora num primeiro momento as reações podiam ser muito violentas. E, por outro lado, entendemos que a detenção das cúpulas exigia alguma preparação da opinião pública, na medida em que já sabíamos que uma das pessoas que iria ser detida era o então tenente-coronel Otelo Saraiva de Carvalho. E isso iria demorar a ser aceite pela sociedade em geral”, justifica, por seu turno, Carlos Picoito.

Cândida Almeida, a procuradora do Ministério Público a quem viria a calhar o processo, uma semana antes da operação, acrescenta outra razão: “Eu achava que, relativamente à cúpula, poderia haver naquela altura um incitamento à violência através da FUP e da OUT, mas não propriamente ainda indícios que os ligassem exatamente às FP, portanto à violência armada. Por isso, não passei [os mandados]. Decidi que deveriam continuar a fazer-se os seguimentos policiais e todas as diligências necessárias, porque depois daquela operação haveria necessariamente encontros clandestinos”.

“Eu achava que, relativamente à cúpula, poderia haver naquela altura um incitamento à violência através da FUP e da OUT, mas não propriamente ainda indícios que os ligassem exatamente às FP, portanto à violência armada"
Cândida Almeida, procuradora

A incógnita do juiz a quem ia calhar o processo

A 19 de junho, no dia da operação, era preciso sortear o juiz de instrução que iria inquirir os detidos e decidir se havia indícios suficientes para mantê-los na prisão. Esse foi outro momento de incerteza para António Coutinho. Tanto ele como Cândida Almeida temiam que o caso calhasse nas mãos de Martinho Almeida Cruz, visto como um homem de esquerda radical que até teria votado em Otelo nas eleições presidenciais de 1976.

António Coutinho lembra que o sorteio era feito tirando de um saco uma bola que correspondia a determinado juiz. “Quando meti a mão e saiu aquele juiz, a Dra. Cândida, que estava presente, diz-me: ‘Era aquele que eu dizia!’”. É que já antes tinham falado na possibilidade de calhar o juiz de instrução Martinho Almeida Cruz, um magistrado associado aos movimentos de extrema-esquerda com um “perfil” diferente dos restantes magistrados, como explicou Cândida Almeida ao Observador. A funcionária da secretaria corroborou:  “Ihhh, foi calhar esse indivíduo!”. O coordenador insistiu: “Mas qual é o problema?”. “Ele é do PCP!”, responderam-lhe. Coutinho sentiu-se logo aliviado. “Então, mas se for do PCP não tem problema nenhum!”

“Ao PCP, politicamente, não lhe interessavam aqueles indivíduos, porque eram de esquerda, eles só traziam má publicidade. O problema não era o juiz ser do PCP — que nunca foi —, era de facto ter sido apoiante do Otelo na campanha das presidenciais. E ele assumia-se como tal”, lembra Coutinho, que reconhece que a ideologia acabou por não condicionar o magistrado. Para Cândida Almeida esta escolha só significava que, se calhar, teria de aprofundar mais a investigação e encontrar mais provas.

Otelo Saraiva de Carvalho, líder da Frente Unitária popular FUP

Otelo Saraiva de Carvalho, que se candidatou pela Força de Unidade Popular (FUP) à Presidência da República, perdeu para Ramalho Eanes

AMÉRICO DIÉGUES/ARQUIVO JN

Enquanto decorria o sorteio, Martinho Almeida Cruz estava na embaixada francesa em Lisboa a fazer um exame escrito da língua para poder concorrer a um curso de Direito Europeu, naquele país. “Quando saio da embaixada sou abordado por uma série de carros de gente da polícia, gente que eu conhecia, e que me dizem: ‘Oh senhor doutor, sabe que lhe calhou um processo muito complicado, tem quase cem presos’. ‘Cem presos? Isso é tudo para ouvir hoje, claro.’ ‘Pois, sô dr’. ‘Mas o que é?’ ‘As FP-25’.”

O magistrado, que pensava que em setembro estaria a fazer as malas e a suspender a sua carreira em Portugal, sabia que as FP-25 eram um “grupo de extrema-esquerda radical e violento, cujo programa seria usar a via armada para a conquista do poder”. Mas desconhecia qualquer ligação à FUP — muito menos a Otelo Saraiva de Carvalho.

Quando chegou ao seu gabinete, deu de caras com António Coutinho, que tinha trancado a porta para garantir que o processo não desaparecia. “O que será isto?”, interrogou-se Martinho Almeida Cruz. “Abro a porta, entramos… Eu abro a primeira página e vejo uma fotografia enorme do Otelo. Olha que música! Está bem, vamos ver isto. Sentei-me e estudei a coisa”, recorda ao Observador.

Cândida Almeida tem outra memória deste momento, que Almeida Cruz confessa não recordar: “Quando começou a ver o processo, chegou a hora do almoço, e o juiz disse: ‘Eu não posso ficar com o processo! De certeza que tenho aqui amigos meus!’. Mas depois de o folhear percebeu que não e disse: ‘Não, não tenho ninguém’”.

A magistrada também só tinha sabido dos nomes envolvidos dias antes, depois de uma reunião com o então procurador-geral da República interino, José Marques Vidal, onde estava também Dias Borges, da DCCB, para lhe comunicarem que lhe ia calhar “um processo muito importante”. No início não lhe disseram o que era. Depois, sim: “Há gente muito importante, é o chamado processo das FP-25’”.

“Eu tinha pensado: ‘Bem, agora é que a extrema-direita vai ser apanhada’. Porque eu nunca imaginei que fossem estes nomes. Pensei sempre que quando havia uma operação, uma reivindicação de trabalhadores dos sindicatos e depois havia tiros no patrão, ou o lançamento de bombas de explosivos ou não sei o quê, isto prejudicava a vida e a luta dos trabalhadores”, recorda em entrevista ao Observador, na Praia Grande, em Sintra, um dos locais onde agora, já jubilada, passa muito tempo.

Só depois de estudar o processo é que a magistrada propôs ao juiz de turno quais deveriam ser os mandados de busca e detenção a fazer — e ele aceitou. No processo existiam declarações de José Barradas e de José Figueira — dois ex-operacionais das FP-25 que tinham sido detidos no Porto — sobre a presença de Otelo nas reuniões da organização, mas ainda não estavam os cadernos que viriam a ser apreendidos na sua casa e a documentação levada das instalações da FUP e aos outros arguidos. Por isso, Cândida Almeida achava prematuro deter Otelo, porque a prova ainda não era muito concreta.

Ainda no dia 19 de junho, no entanto, apesar de a maior parte dos detidos recusar prestar declarações, foram sendo analisados os documentos apreendidos durante a operação. E foi nessa altura que se percebeu que os papéis apreendidos a Otelo eram de conteúdo comprometedor, com ligações evidentes às FP-25, nalguns casos até repetindo conteúdo de documentos de outros arguidos, reforçando a tese de que as organizações legal e clandestina eram afinal só uma.

O juiz recebe um telefonema do superior hierárquico antes de começar interrogatórios

Nessa tarde, segundo as memórias que Martinho Almeida Cruz gravou e mandou transcrever após o processo – e que agora cedeu ao Observador –, ainda antes de começar os interrogatórios, o juiz recebeu um telefonema do vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura, o conselheiro Victor Coelho. A relação de ambos definhava desde que Almeida Cruz pedira tempo para um curso de Direito Comunitário que estava a fazer em Coimbra, o que o conselheiro tinha recusado. “Nunca teve qualquer simpatia com a minha pessoa, como eu nunca terei pela dele”, escreveu.

Desenho de telefone antigo
Conselheiro Victor Coelho

Já sei que você tem entre mãos um processo terrível.

Desenho de telefone antigo
Juiz Martinho Almeida Cruz

Sim, senhor, de facto é terrível, e quem sabe desse processo sou eu.

Desenho de telefone antigo
Conselheiro Victor Coelho

O ministro [da Justiça] está preocupadíssimo...

Desenho de telefone antigo
Juiz Martinho Almeida Cruz

Lamento muito, mas não tenho nada a ver nem consigo, nem com o ministro.

Martinho Almeida Cruz conta que a conversa terminou com um pedido de desculpas. Depois, o juiz arrancou para os interrogatórios, que acabaram por revelar-se, de início, praticamente infrutíferos. Quase nenhum arguido queria prestar declarações. Naquela fase, os suspeitos não trouxeram novidades — mas o mesmo não se podia dizer dos documentos apreendidos.

Ao final do dia, Martinho Almeida Cruz avisava Cândida Almeida que iria determinar a detenção dos cinco suspeitos de serem a cúpula da organização, entre eles Otelo Saraiva de Carvalho. A magistrada, conta, acabou a estudar melhor o processo para perceber se de facto havia prova para isso. Não queria ser responsável pela detenção de uma figura do 25 de Abril se não houvesse evidências fortes. Facto é que havia. “Senão eu teria de recorrer em defesa dos arguidos.”

A ordem para deter a cúpula da organização, onde estava Otelo

António Coutinho ainda se lembra bem desse momento. Era já noite quando o juiz lhe perguntou:

Juiz Martinho Almeida Cruz

Mas, então, porque é que eles não são detidos?

Coordenador António Coutinho

Dizem-me que por razões estratégicas… Há muitos indivíduos que vão fugir, que não vão ser capturados na operação e por isso eles ficarão a fazer contactos com os que estão de fora e nós podemos controlá-los melhor. Embora eu não acredite nisso, porque nós não tínhamos os meios para fazer esse controlo.

Juiz Martinho Almeida Cruz

Mas para prender assim, tem que prender os outros.

Coordenador António Coutinho

Eu se fosse juiz também fazia isso, mas não sou.

Juiz Martinho Almeida Cruz

Então ligue lá para o seu chefe a dizer que eu quero estes cinco detidos amanhã.

Coutinho avisou de imediato o responsável pela DCCB, Dias Borges, que comunicou a Carlos Picoito, que por seu turno disse ao ministro da Justiça, que falou com o Presidente da República: Otelo Saraiva de Carvalho iria ser detido na sequência da Operação Orion. Mário Soares, em visita ao Japão, só soube mais tarde.

Otelo ainda não tinha sido detido, mas a operação que levou a polícia a conduzir à prisão vários militantes da FUP e a apreender documentação do partido já estava a provocar reações no poder político. Ainda na tarde de dia 19, o Conselho de Ministros enviou um comunicado às redações sobre a sua “apreciação” dos “resultados alcançados”, manifestando a “esperança de poder identificar-se a real extensão da referida organização e as suas ligações a outra força antidemocrática”.

“A operação desencadeada permite neutralizar os grupos que, através de ações ilegais de rua e actos criminosos e terroristas, pretendem a destruição do Estado democrático e o estabelecimento de um regime totalitário”, referia o comunicado noticiado pelo Diário de Lisboa — que anunciava que tinha sido também convocado um gabinete de crise de urgência a realizar mal chegasse o primeiro-ministro, Mário Soares.

O vespertino Diário de Lisboa a dar conta da Operação Orion, noticiando as buscas na FUP e a sua relação com as FP-25

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Soares acabaria por ser informado por telex e prestaria informações aos jornalistas. “A exigência da segurança é tão grande como a liberdade”, disse. “Quem levanta o fantasma da PIDE tem a intenção de paralisar a dotação dos meios para a segurança dos cidadãos.”

A detenção de Otelo e o aceso gabinete de crise com Soares

Otelo chegaria à Rua Gomes Freire, em Lisboa, já sob detenção por um oficial de patente superior, por volta das 15h do dia 20 de junho. Martinho Almeida Cruz estava ainda a ouvir os detidos do dia anterior. “Eram às dezenas”, recorda o magistrado. Nessa manhã, quando já circulava no governo a informação da detenção, o magistrado recebeu um novo telefonema do juiz conselheiro Victor Coelho. O número dois do Conselho Superior da Magistratura queria apenas perguntar-lhe se tinha descansado bem. Martinho Almeida Cruz achou estranho.

Por não ter ainda advogado, Otelo foi apenas identificado. Mas o juiz tomou de seguida uma decisão que iria causar polémica: decretou um regime de incomunicabilidade para os arguidos. Não podiam contactar uns com os outros nem receber visitas durante 20 dias, só tendo autorização para falar com os seus advogados — e, mesmo nestes casos, apenas por um período total de 30 minutos e sempre acompanhados por um elemento da PJ.

A 26 de junho, quando os jornais davam conta da controversa decisão do juiz, contestada por vários advogados, reuniu-se de emergência o gabinete de crise governamental, composto por Mário Soares, já regressado a Portugal, pelo vice-primeiro-ministro, pelos ministros da Defesa, Administração Interna, Justiça e Equipamento Social, por representantes do Conselho Superior da Magistratura, pelos comandantes da PSP e da GNR e pelo diretor da PJ. Quem assistiu a essa reunião descreve um ambiente de tensão, com Mário Soares a insistir com a Polícia Judiciária que devia mostrar provas de que Otelo Saraiva de Carvalho estava de facto envolvido nas FP-25.  O primeiro-ministro não escondeu a sua ira por não ter sido avisado de mais pormenores da investigação, que julgava visar elementos ligados ao PCP, relatou o Expresso de 30 de junho.

Mas, na memória de um magistrado que esteve presente e que não quer ser identificado, já antes da partida de Soares e da Operação Orion tinha havido um outro gabinete de crise, com a presença do ministro da Justiça Rui Machete, em que se tinha antecipado a operação e que até tinha sido mostrada uma lista de nomes a deter. Segundo ele, o primeiro ministro estaria “completamente fora de si”, interpretando essa reação como uma antecipação dos problemas políticos que poderia enfrentar pela detenção de um homem que era visto como um dos “heróis de Abril”.

Foi mesmo isso que aconteceu. Na imprensa estrangeira, a detenção de Otelo era relacionada com a lei da segurança interna que o PS queria fazer aprovar. Os jornais espanhóis manifestavam um sentimento de mal-estar por ter sido preso o “símbolo vivo do 25 de Abril”. No britânico The Times, a operação policial era considerada um ato político “com o objetivo de fazer ver ao país a necessidade da lei, que restringe os direitos dos cidadãos em casos especiais”, resumiu a mesma edição do Expresso.

Notícia do jornal Expresso que revela a reação dos jornais internacionais à detenção de Otelo Saraiva de Carvalho

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Carlos Picoito, outro dos presentes na reunião do gabinete de crise após a Operação, recorda ao Observador que teve alguma dificuldade em satisfazer o líder do governo. “O processo estava sujeito a segredo de justiça e eu segui o entendimento — que acho que era o correto e que tinha como base um parecer da PGR, se não estou em erro — de que a informação de processos em segredo de justiça podia ser por mim veiculada ao ministro da Justiça, mas aí parar”, recorda. “Eu transmitia pormenores ao ministro da Justiça que, no seio do gabinete de crise, não pude revelar. Limitei-me a dizer que achava a prisão de Otelo Saraiva de Carvalho fundamentada, que havia prova. E cheguei ao ponto de dizer que havia prova escrita — os tais cadernos.”

A detenção de Otelo Saraiva de Carvalho foi, segundo Carlos Picoito, um acontecimento “tremendo”. “O governo português sofreu pressões de governos estrangeiros — por um lado, pedindo explicações; por outro lado, chegando ao ponto de pedir a sua libertação”. E de França chegou mesmo a vir uma delegação do governo que fez questão de se reunir com o diretor da PJ para pedir explicações sobre a prisão. Mais tarde seria mesmo François Mitterrand a pedir a Mário Soares uma amnistia que perdoasse Otelo, como recorda Nuno Gonçalo Poças no livro “Presos por um fio”.

O Primeiro Ministro, Mário Soares (D), e o Presidente francês, François Mitterrand, dão conferência de imprensa no Palácio de São Bento. Lisboa, 27 de junho de 1984. ALFREDO CUNHA / LUSA

Mário Soares e o Presidente francês François Mitterrand dão uma conferência de imprensa no Palácio de São Bento a 27 de junho de 1984. Mitterrand pediria a Soares uma amnistia que perdoasse Otelo

ALFREDO CUNHA/LUSA

Na altura, diz Carlos Picoito, este não foi o único processo judicial discutido neste órgão político. Também, por exemplo, o caso de Dona Branca — a conhecida “banqueira do povo”, alvo de um processo judicial depois de ter enriquecido ao emprestar dinheiro sob juros elevados, numa atividade clandestina e paralela à banca — foi levado ao gabinete de crise, que contou nessa reunião com o ministro das Finanças e o governador do Banco de Portugal.

PJ paralisou durante uma semana

Ainda no dia desta reunião, o ministro da Justiça, Rui Machete recebeu o bastonário da Ordem dos Advogados, António Osório Castro, que lhe deu conta do desconforto causado pelo regime de incomunicabilidade aplicado pelo juiz.

Pelas 14h do dia seguinte, o conselheiro Victor Coelho aparecia, agora pessoalmente, no Tribunal de Instrução Criminal, para falar com Martinho Almeida Cruz. Segundo conta o magistrado, Victor Coelho pediu-lhe para alterar o despacho que aplicava o regime de incomunicabilidade. O juiz não cedeu à pressão e chegou mesmo a ameaçar demitir-se caso sentisse mais interferências no seu trabalho.

Por estes dias, António Coutinho começava a perceber o que o Governo temia. As pressões aumentavam. Havia informações de que as instalações da Direção Central de Combate ao Banditismo podiam ser atacadas. A Associação dos Capitães de Abril estava indignada com a detenção de Otelo e a PJ teve mesmo que explicar que “o que estava em causa não era o 25 de Abril”. À agência noticiosa ANOP chegavam chamadas telefónicas anónimas, em nome das FP-25, a avisar que, caso ele não fosse libertado, iam tirar Otelo da prisão à força. Entretanto, aos gabinetes chegavam ameaças contra o Presidente da República, Ramalho Eanes, contra o primeiro-ministro, Mário Soares e contra o vice-primeiro-ministro, Mota Pinto.

Estes telefonemas levaram as próprias FP-25 a fazer uma conferência de imprensa para, entre outras coisas, negar a autoria das ameaças. No areal de uma praia na Costa da Caparica, cinco dias após a Operação Orion, dois operacionais sentaram-se com três repórteres — da ANOP, de O Jornal e do Expresso — e garantiram que os telefonemas anónimos não tinham partido da organização. “São atos de provocação”, começaram por dizer, para depois assegurarem que a organização não pretendia “enveredar pelo atentado contra dirigentes políticos”. “Se querem empurrar-nos para uma luta contra o aparelho de Estado, esse objetivo foi frustrado”, citou o jornalista Manuel Beça Múrias a partir das declarações que ouviu à beira-mar.

Notícia do Expresso sobre a decisão do juiz Martinho Almeida Cruz em relação à incomunicabilidade dos detidos

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No parlamento também havia pressões sobre o governo. Na manhã de 3 de julho, António Taborda, do MDP/CDE, condenou a prisão de Otelo, que considerava demasiado oportunista, tendo em conta a discussão em curso sobre a lei de segurança interna e os poderes a dar às polícias. O passado da PIDE tinha sido demasiado recente e a experiência do COPCON também tinha terminado num relatório avassalador para os direitos, liberdades e garantias de cada detido.

“Só seria concebível se imediata e publicamente fossem apresentadas provas indesmentíveis das razões da sua prisão. A verdade é que, passados quinze dias, ainda nada de concreto foi tornado público”, atacou o deputado. Também Jorge Lemos, do PCP, se mostrou preocupado: “O Governo ora parece responsabilizar-se, ora desresponsabilizar-se”.

Uma semana depois das detenções, com tantas reações contrárias à prisão de Otelo e com as ameaças a várias instituições, a investigação da Polícia Judiciária tinha, porém, parado. O juiz Martinho Almeida Cruz decidiu mesmo ir falar com o diretor da PJ, Carlos Picoito, para perceber o que se estava a passar. Nessa altura, recebeu um outro telefonema de Victor Coelho a convidá-lo para uma conversa no Conselho Superior da Magistratura.

O então bastonário da Ordem dos Advogados, António Osório Castro, foi falar com o ministro da Justiça por causa do regime de incomunicabilidade aplicado pelo juiz

Ordem dos Advogados

Lá chegado, Victor Coelho disse-lhe que tinha acordado com o ministro que “a Polícia Judiciária iria voltar a funcionar”. Almeida Cruz acabou por aceder ao pedido que o magistrado lhe tinha feito antes e alterou o regime de incomunicabilidade que aplicara aos réus, invocando uma resolução da ONU que clarificava a lei em vigor: um polícia estaria na sala onde arguidos e advogados falavam, mas não podia ouvir o que eles diziam.

Os contactos entre magistrados e poder político não terminaram aqui. Com o prazo para a acusação a correr, as preocupações do Governo não cessavam. Almeida Cruz recorda que, já em finais de agosto, António Coutinho lhe pediu mesmo ajuda para preparar um relatório sobre o ponto de situação da investigação, que o diretor nacional devia mostrar em mais um gabinete de crise.

Juiz tem um encontro secreto com o ministro da Justiça

Em setembro de 1984, o juiz Martinho Almeida Cruz foi chamado para um encontro com o ministro da Justiça, Rui Machete, que pretendia garantir que a PJ tinha de facto provas contra as dezenas de arguidos detidos, sobretudo Otelo. Faltava cerca de um mês para o Ministério Público ter de acusar ou libertar estes arguidos e o magistrado garantiu-lhe que o processo era sólido. Segundo as memórias do juiz, o encontro aconteceu num restaurante e o ministro pediu-lhe que se certificasse de que nunca ninguém saberia dele. “Era um ministro que tinha medo. Encontrámo-nos no restaurante Cabana, perto do Estoril. Eu expliquei-lhe. E ele só me perguntava: ‘Tem a certeza que isso está bem seguro? Da polícia dizem-me que de facto há muita coisa’”, constatou o governante, por fim, ao juiz. O Observador tentou falar com Rui Machete, mas sem sucesso.

Ainda nesse mês, o juiz tentou ser recebido por Ramalho Eanes — mas o Presidente da República enviou-lhe o recado de que teria de ir para uma lista de espera, tal como todos os cidadãos que pretendiam uma audiência em Belém. Já mais tarde, Martinho Almeida Cruz foi sozinho à cadeia onde se encontrava Otelo na tentativa de lhe prometer uma nova vida no estrangeiro, caso falasse e colaborasse com as autoridades. Mas Otelo recusou.

Nas memórias que o juiz partilhou com o Observador há também referência a uma prova que viria a ligar Otelo Saraiva de Carvalho a Moçambique, onde alguns operacionais que conseguiram escapar à operação Orion acabaram recuados: aquilo a que chamou de “documento Samora Machel”, cujo conteúdo lhe foi revelado de forma oficiosa e que segundo ele estaria na posse do poder político sem nunca lhe ter chegado às mãos, podendo ser útil ao processo das FP.

O juiz foi o último a conhecer o “documento Samora Machel”

O “documento Samora Machel” era um protocolo celebrado entre Otelo, o Presidente de Moçambique Samora Machel e o então ministro moçambicano Jacinto Veloso — o ex-piloto da Força Aérea portuguesa que em 1963 desertou com um avião para se juntar à luta da Frelimo tinha sido colega de Otelo no liceu em Lourenço Marques. Esse acordo previa que Moçambique aceitasse os operacionais das FP-25 que entrassem na clandestinidade, em fuga à polícia. E terá chegado às mãos do Governo muito antes de chegar às do juiz — que acabou por perguntar ao diretor da DCCB, Dias Borges, se sabia da sua existência.

Dias Borges ficou surpreendido por Martinho Almeida Cruz ter conhecimento daquele acordo, que comprometia Machel. “O documento já tinha passado pelas mãos do ministro, pelas mãos do procurador-geral da República e na altura encontrava-se nas mãos de Dias Borges”, escreve o juiz nas memórias que disponibilizou ao Observador. Irritado, o magistrado exigiu que o documento lhe fosse entregue para perceber se devia estar no processo ou não. “Sou eu que decido. Porque o processo é meu e não do ministro ou de um procurador-geral”, escreveu.

Grande plano do ministro moçambicano, Jacinto Veloso, em Lisboa a 26 de Março de 1986. LUSA

O ministro moçambicano Jacinto Veloso, fotografado em Lisboa a 26 de Março de 1986

LUSA

Em cerca de 24 horas, o documento original estava nas suas mãos. O juiz concluiu que o protocolo previa apoio em Moçambique (casa e rendimentos) para os operacionais procurados pela Polícia Judiciária. “Pensei ir a Moçambique tentar saber mais algumas coisas”, escreve, mas por questões de segurança acabou por não o fazer. A verdade é que pouco depois um dos operacionais da organização, que acabaria por se tornar um arrependido do processo e colaborar com a polícia, acabaria a descrever como tudo se passava. Ele próprio tinha passado por Moçambique quando escapou à Operação Orion. Na altura, com a cobertura das FP-25 de Abril, viajou por via terrestre até Madrid e de lá apanhou o avião para Maputo. Tinha uma casa à sua espera, onde estavam outros operacionais fugidos de Portugal.

Numa entrevista recente ao Observador, Jacinto Veloso relatou como avisou o amigo Otelo quando percebeu que ele estava envolvido nas FP-25.  “Acho que foi errado, disse-lhe: ‘Isso não tem futuro nenhum’. E ele: ‘Epá, não sabemos…’ Acho que se arrependeu mais tarde”. Apesar de negar qualquer apoio a Otelo e à sua causa, Veloso reconheceu ainda assim que “algumas pessoas que tiveram problemas vieram para Moçambique e tiveram aqui algum apoio”. Logo a seguir, corrigiu: “Acolhimento, não apoio”. “Não houve nenhum apoio. Alguns ainda estão aí, reorganizaram a sua vida e casaram-se.”

O piloto da Força Aérea Portuguesa que desertou com um avião e se tornou chefe dos espiões e ministro em Moçambique

Polícia infiltrado faz-se passar por padre

As FP-25 apresentaram-se ao país em abril de 1980, com o rebentamento de petardos e a divulgação de um manifesto, quatro meses depois da apresentação da FUP em conferência de imprensa. Nos meses que se seguiram, a organização reivindicou dezenas de assaltos à mão armada, assim como ataques a tiro e à bomba a empresários, sob pretexto da defesa dos trabalhadores. A PJ começou logo a investigar, mas no início não fazia ideia de tudo o que estava por trás da organização.

José Manuel Barradas, Ângelo Benevides e José Figueira eram três dos  operacionais das FP-25. No último assalto que prepararam, a 23 de julho de 1983, no Porto, foram apanhados pela polícia quando seguiam dentro de um carro em contramão numa rua de sentido único. Quando a polícia revistou o carro encontrou várias armas. Já detidos, contaram depois, a PSP tê-los-á agredido para que falassem. Para alegadamente pôr termo às agressões, José Manuel Barradas e José Figueira disseram que faziam parte das FP-25. Acharam que assim a polícia sentiria medo. A PSP entregou-os de imediato à Polícia Judiciária.

José Martins Barra da Costa, que mais tarde abandonou a polícia e se dedicou ao ensino, explicou num livro que, a seguir a essa detenção, combinou com a direção da polícia e dos Serviços Prisionais infiltrar-se na cadeia de Custóias para conseguir extrair informações dos detidos. Identificou-se como padre e terá conseguido, ao longo de meses, que Barradas lhe descrevesse como entrou na organização e como ela funcionava — informações que ia juntando para o processo. Depois, terá sido Figueira a falar. Benevides só muito mais tarde fez o mesmo.

O coordenador António Coutinho diz desconhecer os pormenores de como Barra da Costa se infiltrou na cadeia. Mas de facto tem na memória que dois colegas seus foram falar com aqueles operacionais não na qualidade de polícias, mas como prestando “apoio espiritual”. “E eles começaram a falar mais abertamente”, conta Coutinho.

À época, nenhuma destas diligências era colocada no processo, como ressalvou ao Observador uma fonte da PJ. Os homens que trabalhavam como infiltrados comportavam-se de forma muito reservada e, por razões de segurança, praticamente não apareciam nas instalações da PJ e poucos dentro da Judiciária sabiam o que andavam a fazer. O processo das FP-25,  que está arquivado no Campus da Justiça, em Lisboa, começa só em março de 1984, com a informação de que José Manuel Barradas, detido no Porto, estaria disponível para falar — depois de se sentir abandonado pela organização, que teria deixado de apoiar financeiramente a sua família.

Foi a partir desse momento que o processo judicial começou a ser escrito, com o seguimento das pistas que estes homens então forneceram. “O que eles diziam era que conheciam o Anarquinho e o Faia. Mas quem era o Anarquinho? E o Faia? Eles deram os nomes de guerra, que não identificavam ninguém”, recorda Coutinho.

Coordenador da investigação encontra um velho conhecido entre os principais suspeitos

À medida que o processo foi sendo organizado, António Coutinho começou a fazer descobertas surpreendentes. Entre elas, a verdadeira identidade do referido “Anarquinho”, o operacional responsável pela região de Lisboa. Tratava-se de Luís Filipe Gobern Lopes — com quem Coutinho tinha trabalhado anos antes numa empresa do grupo Salvador Caetano. “Ele é mais novo do que eu para aí dez anos, ele tinha 16 ou 17 anos na altura em que nos cruzámos, era um miúdo. Dois anos depois saí para a Judiciária e ele foi para a tropa”, recordou António Coutinho ao Observador.

Voltaria a reencontrá-lo anos mais tarde numa escola em Moscavide que tinha sido assaltada. Ele era um dos responsáveis daquele estabelecimento de ensino, pelo que se lembra. O encontro seguinte seria já em 1980, quando Gobern Lopes foi baleado por populares no Algarve, numa fuga à GNR – que queria interrogá-lo a propósito do homicídio de um militar que o tinha perseguido na sequência de um assalto. “Eu vou vê-lo ao hospital porque há uns colegas que foram para baixo, tomaram conta da situação e disseram-me: Está lá um homem que diz que te conhece, o Gobern Lopes’. Para mim, era o Luís. Depois, pego no bilhete de identidade… Mas como é que este indivíduo está nisto?”, lembra.

Luís Gobern Lopes, um dos fundadores das FP 25 e o primeiro a assumir-se em julgamento como membro da organização, afirmou, em entrevista à Lusa, que "no contexto em que surgiram, as FP-25 tinham um propósito forte", acrescentando que, embora não se sinta arrependido, reconhece que houve momentos em que a organização perdeu o pé, 19 abril 2010. (ACOMPANHA TEXTO) JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Luís Gobern Lopes, um dos fundadores das FP-25 e o primeiro a assumir-se em julgamento como membro da organização, fotografado a 19 de abril de 2010

JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

O primeiro depoimento de José Manuel Barradas no processo revelava logo as reuniões a que tinha sido convidado a assistir enquanto operacional das FP-25 e que teriam tido lugar em Lisboa e em Setúbal. Segundo o seu testemunho, Otelo Saraiva de Carvalho era um dos que conduzia os encontros. José Figueira também viria a corroborar esta informação. António Coutinho afirma que ambos foram importantes porque serviram para desencadear o processo, mas que tinham pouco conhecimento sobre a cúpula da organização e sobre a forma como funcionava.

Nesta altura, os dois estavam já presos no estabelecimento prisional de Lisboa. Em abril, José Figueira foi abordado por Baptista Dias. Esse recluso, que acabaria também por ser constituído arguido na Operação Orion, chegou a dar dinheiro à mulher de José Manuel Barradas, quando ele foi preso, e contou a Figueira que todos sabiam que eles estavam a falar com a polícia. Nesse momento, entregou-lhe também uma carta dirigida a Barradas que consta no processo e que o alerta para não prestar declarações a 13 de junho, quando começaria a ser julgado no processo que levou à sua detenção no Porto — a ordem era para não denunciar nem os colegas que conseguiram fugir ao assalto que iam cometer no dia seguinte, em Espinho, nem a própria organização. Este julgamento vem referido nos cadernos de Otelo, a par de outros julgamentos de militantes da organização cuja defesa era combinada nas reuniões do grupo.

Companheiro:

O objetivo da minha carta, é o de conversar um pouco contigo e chamar-te à razão.

Foi bastante doloroso e chato quando soube que tu estavas a colaborar com os nossos inimigos. Inicialmente não acreditei que tu fosses capaz de tal. Só acreditei quando li algumas das tuas declarações, e então foi uma grande desilusão para mim saber que o companheiro em quem confiava, não só eu, todos os companheiros confiavam em ti. Foi terrível quando se soube de facto a notícia. Ninguém queria acreditar e só se acreditou quando se leram as tuas declarações.

... sinceramente não percebi porque é que acreditaste nos teus inimigos. Sabes, eles prometem sempre mundos e fundos, eles prometem a liberdade e tantas outras coisas mais só que… nunca cumprem o que prometem...

Ao falares estás a incriminar-te a ti próprio… Estarás sozinho porque ninguém te ajudará e quando saíres todos te olharão como um traidor, um vendido que trocou os companheiros por uma onda de vento...

Por isso, companheiro, deixa de colaborar com o inimigo, não queiras mais conversas com eles, pela lei não és obrigado a falar com eles, exige sempre a presença do teu advogado...

Ainda está na tua mão remediar o mal que fizeste, toma a atitude que a tua consciência te exige, porque eu sei que lá no fundo tu sabes que eu é que tenho razão...

Se tomares tal atitude terás a compreensão de todos os companheiros e o apoio material para ti e a tua família.

Caso contrário, receberás o prémio da tua colaboração com o inimigo.

... Pelo que sei ninguém te obrigou a nada, tudo o que fizeste foi porque tu pediste para fazer...

Nós tudo sabemos...

Porta-te como o preso político que és, trair jamais.

Simulação gráfica da carta enviada ao arrependido José Manuel Barradas

O puzzle que a polícia montou

A PJ começou a cruzar nomes e pediu escutas, mas seria a Operação Orion a dar aos investigadores os documentos para irem “preenchendo o puzzle”, como lhe chama a procuradora Cândida Almeida. E os cadernos apreendidos na casa de Otelo foram essenciais.

“Com os cadernos e com os documentos que encontrámos na FUP, que foram muitos, começámos a fazer a estrutura da organização”, explica Cândida Almeida, que só entra no processo já em junho. O Ministério Público concluiu que o Projeto Global — nascido depois das prisões de Isabel do Carmo e Carlos Antunes, fundadores do Partido Revolucionário do Proletariado (PRP); e pensado por Otelo com o apoio de muitos dissidentes do PRP — tinha várias componentes: Óscar, OPM, ECA e Quartéis.

Um dos documentos apreendidos explica bem essa divisão, que o Ministério Público viria a incluir nas suas alegações finais. Na componente Óscar estaria apenas Otelo, como aglutinador das massas; à OPM (Organização Política de Massas) pertencia a OUT (Organização Unitária de Trabalhadores), que em 1980 daria origem ao partido político FUP (Força de Unidade Popular); a componente Quartéis seria composta pelos militares que teriam de ser recrutados de norte a sul do país para estarem prontos quando chegasse o momento de tomar o poder; e a ECA seria o embrião civil do Exército Popular Revolucionário — que o Ministério Público diz que é a estrutura ilegal das FP-25.

Todas as componentes ficariam sujeitas à DPM, a Direção Política Militar, o que suscitou algumas discussões no seio da organização por haver militantes a considerar que, se o objetivo era o poder popular, todos deviam ter igual direito de participação. A par destas componentes foi também criada uma empresa, a IE (Import Export), que recebia dinheiro da organização e de outras subcomponentes como a Juventude Autónoma Revolucionária (JAR).

O que mais chamou a atenção de Cândida Almeida, que a dada altura começou a tirar apontamentos em várias folhas e a cruzar nomes e ligações que encontrava nos documentos, é que em todas as componentes havia nomes comuns. Mais: as reuniões das componentes legal e ilegal da organização tinham também temas comuns, reforçando a tese de que se tratava de uma única organização, ao contrário do que os arguidos argumentavam.

Entrevista a Cândida Almeida. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Cândida Almeida escreveu o despacho de acusação nesta casa em Sintra, com um polícia à porta
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Entrevista a Cândida Almeida. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Cândida Almeida ainda se lembra das partes principais do processo
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“O meu problema é que na época não havia computadores ainda — durante o dia andava com o Dr. Martinho e à noite tinha de ir resumir aquilo tudo à mão, para não me perder. Quem fazia parte da DPM, quem fazia parte da ECA, quem é que coincidia nos vários cadernos. Fazia isso à noite para, quando fosse a acusação, não me perder”, conta.

Os documentos que mais chocaram Cândida Almeida resultaram da reunião secreta do Conclave, ocorrida na Serra da Estrela, dois meses antes da operação, onde todos os participantes, incluindo Otelo, estavam encapuzados. Ali, definiu-se como seriam feitos os atentados e quem devia decidi-los. “A responsabilidade direta dos crimes estava repartida, mas todos queriam aquilo. Estava estruturado. ‘Tu fazes isto, tu fazes aquilo’, portanto todos faziam tudo em nome da tal organização”, explica Cândida Almeida.

“Explicaram-me a mim e à Cândida o que ia ser a nossa vida. Enfim... Num primeiro momento, não é muito agradável uma pessoa saber que vai ser vigiada permanentemente. Custa um bocadinho a digerir. Mas pronto, depois foram apenas mais quase 20 anos assim. Uma pessoa habitua-se”
Martinho Almeida Cruz, juiz de instrução

Um processo, as ameaças, o medo. E várias vidas viradas ao contrário

Com o processo, tanto a vida de Cândida Almeida como a de Martinho Almeida Cruz tinham sido viradas ao contrário. Logo no dia em que foram nomeados, as hierarquias superiores decidiram que ambos tinham de ter segurança pessoal. Na altura ainda havia arguidos em fuga, os crimes não tinham cessado por completo. E multiplicaram-se as ameaças a várias instituições.

“Explicaram-me a mim e à Cândida o que ia ser a nossa vida. Enfim… Num primeiro momento, não é muito agradável uma pessoa saber que vai ser vigiada permanentemente. Custa um bocadinho a digerir. Mas pronto, depois foram apenas mais quase 20 anos assim. Uma pessoa habitua-se”, ironiza o juiz.

Para Martinho Almeida Cruz, a vida em Lisboa, com a companheira no Porto, era agora feita sempre com polícias ao seu redor — chegavam mesmo a entrar no quarto antes de o juiz se ir deitar para se certificarem de que estava em segurança. Como dormia poucas horas, confessa nas suas memórias que não devia ser fácil para os polícias que o acompanhavam. Recorda-se de poucos sustos que apanhou, mas há um que pormenoriza. Aconteceu num fim de semana que passou na zona centro do país com a namorada. Estavam ambos a jantar no restaurante do hotel quando os seguranças entraram de arma em punho e ordenaram que subissem ao quarto. “A Manela estava em pânico”, recorda. No fim, percebeu-se que o grupo de jovens que tinha sido detetado no jardim e levado para a GNR não representava qualquer ameaça para o juiz.

Para Cândida Almeida, foi mais difícil. Era habitual dar passeios em família com o marido — o procurador Rodrigues Maximiano, que acabaria por ser chamado ao processo das FP-25 por altura do julgamento — e com a filha, ainda pequena. Mas a pouco e pouco isso mudou, por causa do aparato policial que as saídas implicavam. “Naquela altura, era uma segurança muito visível, ofensiva. Nós ficávamos sem saber o que fazer. Era constrangedor”, recorda Cândida Almeida.

Além disso, a magistrada também passou a ter pouco tempo disponível. “Tinha quatro meses para cruzar todos os documentos e proferir a acusação contra dezenas de arguidos. Na altura da acusação estive 46 horas sem dormir, o meu marido fazia-me torradas e mais não sei o quê… Eu já estava cansada…”, recorda.

“Não sei se estão a ver, nunca tinha sido feita uma acusação destas. E o que é que era importante colocar lá? Só dizer que eles faziam parte de uma organização terrorista? Ninguém ia perceber isto. Tive de pegar na prova toda cruzada e dizer: no dia x tiveram uma reunião, no dia seguinte tiveram aquela reunião, no dia não sei quantos houve uma reunião da DPM em que estavam a discutir uma entrevista que iriam dar no dia seguinte a um jornal…”, pormenoriza.

Ainda hoje, tanto Cândida Almeida como Martinho Almeida Cruz continuam a falar com alguns dos seus seguranças. “Há alguns que me ligam no Natal, na Páscoa, para saber se está tudo bem”, diz a magistrada, que teve segurança pessoal ao longo de dez anos. “Se fôssemos para um hotel eles também tinham de ir; se íamos para casa de amigos, tentávamos arranjar também condições para eles poderem ficar. A minha filha aprendeu a nadar com um deles. Havia um aparato enorme quando nos levantávamos na piscina, os seguranças tinham uma pistola e uma toalha por cima do braço. Por isso, eu e o meu marido ficávamos ali quietos, a miúda ia para a piscina e um ou dois seguranças iam com ela…”

Vista geral da Cadeia de Lisboa após a evasão dos militantes FP-25, em Lisboa a 21 de setembro de 1985. Militantes FP-25 foram detidos por atos terroristas. ALFREDO CUNHA / LUSA

Vista geral da cadeia de Lisboa após a fuga de uma dezena de militantes das FP-25 a 21 de setembro de 1985

ALFREDO CUNHA/LUSA

Juiz queria causar desconfiança no meio da organização para que começassem a falar

Os arrependidos José Manuel Barradas e José Figueira já estavam a falar. Mas o juiz queria ter a colaboração de mais arguidos que pudessem integrar a direção política da organização e soubessem contar os detalhes sobre o funcionamento das FP-25. E foi conseguindo. A certa altura, tomou mesmo uma decisão provocatória para conseguir que, ao sentirem-se traídos, mais militantes começassem a falar: ordenou que fosse deixada uma cópia dos depoimentos destes arrependidos – que entretanto já estavam em liberdade à espera do desenrolar do processo – nas casas de banho da prisão. “Mandei reunir os depoimentos de todos os arrependidos e mandei pôr na casa de banho da prisão, para eles ficarem a saber. E avisei o Castelo-Branco”, recorda, referindo-se a Gaspar Castelo-Branco, diretor-geral dos Serviços Prisionais.

Os arrependidos que foram surgindo deram informações às autoridades para este processo principal e para outros dois que se seguiram. Uma vez, Cândida Almeida perguntou a um deles qual era a razão que o tinha levado a entrar para as FP-25. “Se o Otelo estava lá, é porque era bom. Então, aderi”, contou-lhe. “Recebia uma mensalidade, tinha um subsídio para os filhos…”  A dada altura, havia tantos arrependidos no processo — no total, foram 11 — que o juiz já não precisava de mais.

Nos dias que antecederam o 13 de outubro e a data limite para Cândida Almeida proferir a acusação, a magistrada fechou-se em casa com o processo, a trabalhar. Tinha folhas espalhadas por toda a sala para conseguir fazer as ligações entre os vários suspeitos. Quando no tribunal se aperceberam de que tinha o processo em casa, destacaram uma equipa policial para a porta da magistrada. Tinham medo de que houvesse um ataque que levasse ao desaparecimento ou à destruição dos documentos.

“A minha ansiedade era acabar ainda durante a noite, mas já era madrugada quando terminei”, recorda a magistrada. “Depois, foram-me buscar o processo com a acusação e fui dormir 16 horas seguidas porque já não aguentava.”

Nas cerca de 200 páginas escritas à mão – com recurso a várias canetas que se iam gastando –, Cândida Almeida acusa 78 arguidos por se terem agrupado “consciente e voluntariamente entre si” desde finais dos anos 70 e início dos anos 80 para porem em prática um plano que intitularam de Projeto Global e que “visava tomar o poder político em Portugal pela via violenta das armas, derrubando as instituições do Estado”. Só dois arguidos não foram acusados.

No despacho, a procuradora descreveu as reuniões da organização e os crimes que cometeram. No final, porém, remeteu os crimes individuais de cada um para julgamento nos tribunais de comarca, renunciando ao exercício da ação penal pelas atuações individuais destes arguidos. E acusava todos de participação em organização terrorista — tanto quem pensou o projeto, como quem a ele aderiu. Na cúpula estariam Otelo Saraiva de Carvalho, Pedro Goulart, José Mouta Liz, Vítor Guinote e Humberto Dinis Machado.

Já a confirmação da acusação pelo juiz Martinho Almeida Cruz teria menos quatro arguidos do que os indiciados pelo Ministério Público, um deles que chegou a ser considerado da cúpula: Vítor Guinote. Apesar de ter participado em algumas reuniões no início dos anos 1980, não havia agora prova de que integrasse o Projeto Global, como o magistrado justificou na pronúncia. “Os indícios recolhidos são muito reduzidos”, pode ler-se no despacho.

Assim, seriam pronunciados para ir a julgamento, já em finais de janeiro de 1985, 73 arguidos.

O maior julgamento alguma vez feito em Portugal

Quatro dias depois da pronúncia, o coletivo de juízes presidido por Adelino Salvado marcava para março o início do maior julgamento em Portugal — mas na verdade ele só começaria seis meses depois. É que, na primeira data prevista, uma das arguidas fugiu da Cadeia das Mónicas — o que levou ao adiamento por dois meses. Depois, os advogados de defesa decidiram pedir um tribunal de júri.

Já em julho de 1985, o arrependido José Manuel Barradas foi perseguido e ferido por elementos das FP, depois de uma saída da casa fornecida pela polícia onde vivia sob o olhar atento de Barra da Costa, da PJ. Por razões de segurança, era a família que o visitava em casa, mas naquele fim de semana de verão ele decidira ir com a mulher e a filha à terra de onde era natural, Martim Longo, Alcoutim. Os elementos da organização souberam que estava sem proteção policial e ainda o seguiram até lá, mas ele já tinha regressado para a Costa da Caparica. Foi aí, horas mais tarde, que o apanharam e balearam. Operado de urgência, Barradas sobreviveu e ainda foi internado mas acabou por morrer no hospital cerca de um mês depois.

A seguir, uma outra fuga, desta vez de onze reclusos, dez deles arguidos no processo, do Estabelecimento Prisional de Lisboa, a 21 de setembro, voltou a adiar a primeira sessão. Só em outubro é que o julgamento arrancou efetivamente.

[Veja o vídeo animado sobre a captura e morte do arrependido José Manuel Barradas]

Segundo uma entrevista que deu ao jornalista António José Vilela, para o livro “Viver e Morrer em nome das FP25”, o juiz Adelino Salvado “sentiu um desejo enorme de fugir dali”. Sabia que os meses seguintes iriam ser difíceis — ainda para mais, tinha acabado de ser pai e o facto de ter passado a precisar de segurança pessoal mudou radicalmente a sua vida. Em alguns momentos chegou a ter nove polícias armados à volta. Na altura, havia ainda muitos suspeitos que não tinham sequer sido detidos e que mantinham a atividade criminosa. “Parecia um animal de circo”, queixou-se na altura o magistrado.

Quando o processo acabou, Adelino Salvado foi colocado no estrangeiro e quando, anos mais tarde, regressou a Portugal, chegou a assumir o cargo de diretor-geral da Polícia Judiciária. Agora, jubilado, recusou voltar a falar no tema FP-25.

FP-25 de Abril. As bombas, as balas e os “inimigos a abater”

Na altura, José Marques Vidal era secretário-geral do Ministério da Justiça e já se debatia com o facto de não haver em Portugal um tribunal onde fosse possível julgar em segurança um número tão grande de arguidos. “Corria-se o risco de ser adiado por falta de condições de segurança”, escreveu Marques Vidal no seu livro “Estórias Bem Caçadas”, que dá também conta de uma certa “inércia, seguramente estranha” em todo o sistema político-administrativo relativamente a tudo o que dissesse respeito às FP-25.

“As únicas entidades preocupadas com a situação”, escreveu, eram a “Polícia Judiciária e a Procuradoria-Geral da República”. Segundo Marques Vidal, isso “só se explicava pelo medo que a organização criminosa ainda incutia” e “pela conivência de alguns políticos situados nos aparelhos partidários”.

Cândida Almeida e o marido, Maximiano Rodrigues, até tinham viajado para Itália, para ver como era o tribunal onde tinham sido julgados os elementos das Brigadas Vermelhas. Até Almeida Cruz lá tinha ido, para falar com colegas de profissão que o pudessem ajudar na investigação. Aliás, chegaram mesmo a dizer-lhe que não envolvesse advogados e jornalistas no caso, sob pena de isso lhe poder causar problemas maiores. Por isso, as suspeitas então levantadas sobre um jornalista e vários advogados da defesa de trabalharem para a organização acabaram por ser desvalorizadas.

“Os italianos, que estavam mais avançados nessa matéria, perceberam uma coisa muito importante: não se podem julgar todos juntos, senão lá vem um mega processo. Eles depois tiveram um exemplo disso com a máfia, em que os arguidos foram condenados a penas perpétuas quase por uma decisão administrativa. Mas de facto os italianos ensinaram-me: jornalistas e advogados à parte, não te metas nisso. E eu, de facto, foi por isso que cortei. Não quis aproximar dos autos os advogados — e haveria por onde. Mas não tive interesse sequer em explorar as pistas que existiam”, confessa agora, à distância de quase quatro décadas, Martinho Almeida Cruz.

O advogado Artur Marques, que representou seis dos arguidos em julgamento (e outros que acabou por deixar de defender quando se tornaram arrependidos), foi um dos advogados que ainda chegaram a ser interrogados. “O Dr. Martinho resolveu inquirir alguns dos advogados sobre a proveniência do dinheiro dos honorários que tínhamos recebido e, para vergonha nossa, houve advogados que chegaram lá e explicaram quem lhes tinha pago. Eu, quando soube disso, fiquei furioso, porque isso faz parte do sigilo profissional. Ponto. Eu não tenho que dizer a ninguém quem me paga e fui convocado para ir a uma dessas reuniões, a um desses interrogatórios… E o juiz fez uma pergunta e eu disse que não dizia. Quando muito vou perguntar à Ordem dos Advogados”, recorda ao Observador, explicando depois que foi isso mesmo que fez. No dia em que voltou a ser interrogado, limitou-se a mostrar o papel da Ordem, assinado pelo bastonário, a dizer que não teria de falar.

Tribunal de Monsanto foi construído em três meses para julgar as FP-25

Hoje, Francisco Amaro tem 80 anos. Quando veio para Lisboa, ganhar 55 escudos na construção civil, mais 20 do que ganhava em Torres Vedras, onde nasceu, tinha 18. Primeiro começou a trabalhar com outros, depois sozinho, até que foi recomendado por um juiz seu vizinho para fazer algumas obras para o Ministério da Justiça.

Marques Vidal não encontrou pessoa melhor para fazer a obra de um tribunal que tinha de ser construído em tempo recorde, para começar a julgar mais de 70 arguidos. “Esclareci-o da necessidade de ter a obra pronta e operacional em quatro meses, das circunstâncias em que seria levada a cabo e da exigência do trabalho contínuo”, escreveu o magistrado. Não lhe escondeu também os perigos que corria.

“Cheguei a estar quatro noites sem me deitar”, recorda Francisco Amaro ao Observador. Os operários trabalhavam dia e noite, cozinhavam na obra e dormiam na obra. E havia uma equipa de polícias para os guardar. Ainda assim, no feriado do Primeiro de Maio, receberam uma ameaça de bomba por telefone. Francisco Amaro diz que não teve medo, mas, pelo sim, pelo não, Marques Vidal aconselhou-o a andar sempre armado com uma caçadeira pronta a disparar.

Entrevista a Francisco Amaro, no tribunal de Monsanto. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Francisco Amaro tem hoje 80 anos: construiu o Tribunal de Monsanto em três meses
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Entrevista a Francisco Amaro, no tribunal de Monsanto. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Visão geral da sala de audiências
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Entrevista a Francisco Amaro, no tribunal de Monsanto. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
A zona onde se sentavam os arguidos
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Entrevista a Francisco Amaro, no tribunal de Monsanto. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
As grades iniciais foram substituídas por vidros à prova de bala, depois de um advogado reclamar
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Entrevista a Francisco Amaro, no tribunal de Monsanto. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
O julgamento arrancou com os advogados a dizerem que havia um erro de carpintaria no tribunal, porque se encontravam num plano inferior ao do Ministério Público
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Num domingo, o advogado Magalhães e Silva, que tinha um arguido no processo, decidiu passar pela obra e ficou chocado com o que viu. O local no centro da sala, onde se sentariam os réus, era gradeado. No dia seguinte, queixou-se ao presidente do tribunal. “Isto é intolerável. Percebo perfeitamente que haja a suspeita grande de que estejam em Monsanto as FP-25, e isso tem riscos óbvios e evidentes; percebo que queiram proteger mutuamente arguidos, tribunal e assistência e advogados, de qualquer risco existente, mas aquilo não serve para prevenir risco nenhum. Aquilo só serve para humilhar, mais nada”, disse.

A mensagem chegou rapidamente ao construtor, que teve que encomendar vidro à prova de bala do estrangeiro, porque não era fabricado em Portugal, para substituir as grades. Havia ainda celas e gabinetes de apoio aos magistrados e aos advogados. E um cofre para guardar o processo que viria a fazer história. Quando arrancou o julgamento, Francisco Amaro e a sua equipa começaram a fazer uma segunda sala de audiências, ao lado, que acabou destinada ao segundo processo das FP-25, aquele que foi chamado o “processo dos operacionais”, muitos detidos mais tarde.

O processo das FP-25 iria estrear as instalações de Monsanto, assim como já tinha estreado as da Avenida José Malhoa, onde foram colocados os inspetores da Polícia Judiciária que estavam com o caso, mais concretamente a Direção Central de Combate ao Banditismo (DCCB). É que a DCCB foi ali instalada, longe da Rua Gomes Freire, onde era a sede da PJ, precisamente por causa do processo das FP, uma vez que na sede trabalhavam muitos polícias com suspeitas de ligação à esquerda radical e era preciso trabalhar com profissionais escolhidos a dedo e que não divulgassem o que estavam a investigar.

O início do julgamento e um erro de carpintaria

Depois de três adiamentos, o julgamento não começou logo a 7 de outubro. E não necessariamente porque dias antes tivessem fugido da cadeia de Lisboa dez arguidos do processo, alguns dos quais seriam mesmo julgados à revelia. O problema, recorda Artur Marques, que defendeu alguns arguidos, ficou a dever-se à “formatação da sala”.

“Havia uma bancada onde estava o tribunal e o Ministério Público e os advogados estavam todos cá em baixo e tinham que falar lá para cima”, descreve o advogado ao Observador, no seu escritório no centro de Braga. “O Francisco Salgado Zenha levantou-se e disse: ‘Nós ou estamos no mesmo plano do Ministério Público ou não advogamos. Consertem isto, que é um erro de carpintaria’”. O incidente levou ao adiamento do julgamento por duas semanas para colocar os advogados ao mesmo nível do Ministério Público.

Na entrevista a António José Vilela, o juiz Adelino Salvado diz que os advogados de defesa levantaram os incidentes e apresentaram os requerimentos mais diversos. Uma “avalanche” deles, como descreve também o Ministério Público nas suas alegações finais. Era uma tática que já tinha sido ensaiada pelas Brigadas Vermelhas em Itália, de forma a impedir que o julgamento corresse rapidamente. Dois exemplos: houve réus a invocar doenças para não estarem presentes e que, depois de serem sujeitos a exames médicos, não mostraram qualquer problema de saúde; e houve quem alegasse a inconstitucionalidade de fazer entrar uma ré em último lugar por ser uma violação do princípio constitucional da igualdade de sexos. Otelo Saraiva de Carvalho chegou a ser chamado à atenção por estar a perturbar a audiência e o juiz teve de ameaçar que o expulsava. Outros réus usaram estratégias semelhantes: Cândida Almeida lembra-se de que, sempre que um arrependido ia depor, os restantes arguidos falavam em surdina dos seus lugares, para os intimidar.

Além disto, alguns advogados tinham medo de defender os arrependidos, enquanto outros, escolhidos pelo Estado, desistiram porque não sabiam o tempo que o processo ia durar nem se, no final, seriam pagos pelo seu trabalho. Os arrependidos chegaram a não ter advogados que os representassem.

Entrevista a Francisco Amaro, no tribunal de Monsanto. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
As celas do tribunal de Monsanto
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Entrevista a Francisco Amaro, no tribunal de Monsanto. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
As celas ficam ao lado da sala de audiências
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Entrevista a Francisco Amaro, no tribunal de Monsanto. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Perto desta zona foi construído um cofre para guardar o processo
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Artur Marques recorda que Otelo depôs durante meses e que o seu “diário de ouro” foi “escalpelizado linha a linha”. Mas, a certa altura, parou os seus depoimentos. “Otelo Saraiva de Carvalho estava a prestar importantes esclarecimentos ao tribunal, a fazer história e a chegar à especificação das coisas”, lembrou Adelino Salvado. O interrogatório foi interrompido numa sexta-feira e, na semana seguinte, Otelo já não falou. O juiz do julgamento acredita que terá sofrido pressões por parte de outros arguidos. Mas, na verdade, a prova documental já dizia tudo.

“Nunca consegui perceber como é que uma organização daquelas tinha três ou quatro indivíduos a produzir o seu documento sobre cada uma das reuniões. O que um omitia o outro dizia e isto, numa organização clandestina, é espetacular”, afirmou o juiz.  “Eu acho que Otelo é um homem voluntarioso, com um raciocínio rápido, carismático e com empatia. Predispõe à boa disposição, mas tem algumas lacunas no que diz respeito ao bom senso e ao egocentrismo, pois não gosta muito de ser contrariado, mesmo quando não tem razão nenhuma naquilo que está a dizer”, avaliou o magistrado.

A António José Vilela, Adelino Salvado também admitiu ter sofrido pressões indiretas — só não concretizou de que forma nem por parte de quem. “É impossível evitá-las: é o conselho, é a ideia de que o melhor é caminhar num sentido em vez de outro, de que algo seria bom para o próprio e para toda a gente, da necessidade de evitar incómodos.”

O início do julgamento teve uma grande cobertura mediática, mas, a dada altura, “assiste-se ao abandono, pode dizer-se que total, quer do público, quer de jornalistas, que viriam a ficar praticamente reduzidos a um elemento da agência de notícias ANOP”, constatam os procuradores do Ministério Público. Algumas pessoas voltariam mais tarde, para assistir ao depoimento de Ramalho Eanes, que disse em tribunal que, “entre a Justiça e a amizade, preferia a Justiça”. Também Vasco Lourenço foi chamado a depor por Otelo e lembrou que um ano antes o tinha avisado sobre o seu envolvimento com operacionais das FP-25.

O Ministério Público demorou doze sessões a apresentar as suas alegações finais e não hesitou em disparar contra os media e a opinião pública, alegando que o mediatismo do processo tinha acabado a converter “o assassino em vítima”. “Subitamente, deixou de ser um problema dos terroristas das FP-25 (…) e, num aparente ‘passe de mágica’, passou a ser o Estado o terrorista, por perseguir criminalmente o réu Otelo e os restantes elementos que integram o Projeto Global. É típico do terrorismo”, lê-se nas alegações, que foram publicadas num livro com mil exemplares de tiragem. O volume acabou por ser retirado de circulação pelo então ministro da Justiça, Mário Raposo — atualmente, existem alguns exemplares em bibliotecas e na posse dos magistrados envolvidos no processo. Desconhece-se o que foi feito a grande parte dos exemplares. “Estávamos à espera que ele fosse publicado. Mas o senhor procurador-geral recebe a chamada no Ministério da Justiça a dizer que não, que era proibido, que não ia ser divulgado. Porquê? Porque não, não quis!“, recorda Cândida Almeida. Entretanto, no final de 2021, por iniciativa de Manuel Castelo-Branco, filho de Gaspar Castelo-Branco, diretor-geral dos Serviços Prisionais que viria a tornar-se a 12ª vítima mortal da organização, o livro de 1.053 páginas foi digitalizado e disponibilizado online.

O julgamento estendeu-se ao longo de dois anos e a decisão foi lida na 261.ª sessão, a 20 de maio de 1987, com o juiz Nunes Ricardo a emitir um voto de vencido, referindo que não podia avaliar as condutas dos réus porque eles tinham agido movidos por profundas convicções políticas e acrescentando que tinham falta de consciência da ilicitude dos atos que eram acusados de ter praticado. Para Adelino Salvado, não foi fácil presidir a um coletivo de juízes com opiniões diferentes.“Por circunstâncias do destino, não era o que se chama um coletivo homogéneo, pois era composto por três pessoas com conceções diferentes, não só da vida, mas também do direito”, disse o magistrado.

“Salvo o devido respeito, em termos jurídicos é um absurdo completo. Eu posso dizer que o indivíduo que mata o rei é um regicida e se move por nobres propósitos; agora, se ele matou o rei, o facto de estar convencido da sua legítima intervenção não justifica essa morte”, disse Salvado sobre o voto de vencido do colega.

Pedro Goulart e Otelo Saraiva de Carvalho a 24/1/2000 JULGAMENTO DAS FPS 25 DE ABRIL ( FORCAS POPULARES 25 DE ABRIL NO TRIBUNAL ) FOTO: ACACIO FRANCO

Pedro Goulart e Otelo Saraiva de Carvalho na entrada para o julgamento a 24 de janeiro de 2000, no tribunal da Boa Hora, onde acabaram absolvidos pelos crimes de sangue

ACACIO FRANCO/ARQUIVO DN

Otelo e Pedro Goulart foram considerados os fundadores e dirigentes da organização terrorista e foram condenados a 15 anos de prisão cada um. José Mouta Liz, César Escumalha, José Soares Neves, Júlio Castro, Fernando Fonseca, José Linhas, Alberto Querido, Humberto Machado e Helena Pereira foram todos considerados dirigentes e condenados a penas entre os sete e os 14 anos. Também quem aderiu à organização foi condenado, alguns com punições bem pesadas, como Luís Gobern Lopes, o Anarquinho, com uma pena de 17 anos de prisão para cumprir. Já os arrependidos seriam igualmente condenados, ao contrário do acordado, embora a penas mais leves, o que levou a uma grande contestação no interior do tribunal. Dezasseis dos arguidos foram absolvidos. Os condenados foram ainda obrigados a pagar uma indemnização de um milhão de contos (cerca de 5 milhões de euros) às vítimas. Ministério Público e arguidos recorreram.

Após o julgamento, o juiz Adelino Salvado ainda foi colocado no tribunal da Boa Hora, onde lhe calhou por sorteio um julgamento de corrupção na Inspeção Geral de Atividades Económicas, e condenou os acusados com duras penas. Pouco depois, o Governo decidiu colocá-lo na missão de Portugal junto das Nações Unidas — as autoridades norte-americanas foram avisadas das suas necessidades de segurança.

Juiz Adelino Salvado, presidente do colectivo de juizes, durante o julgamento das FP25 no Tribunal de Monsanto. LUIS VASCONCELOS / LUSA

Ao centro, Adelino Salvado, presidente do colectivo de juizes, durante o julgamento das FP-25 no Tribunal de Monsanto

LUIS VASCONCELOS/LUSA

“Pensei que tinha sido mobilizado para a guerra. Era o pior lugar do país onde podia ser colocado”

Enquanto no tribunal de Monsanto o julgamento corria com mais ou menos peripécias, julgando apenas o crime de organização terrorista, o juiz Martinho Almeida Cruz e a procuradora Cândida Almeida continuavam ligados ao caso depois de terem conseguido obter ainda mais informações de outros arrependidos. Reuniam num segundo processo todos os crimes violentos da organização, entre assaltos, agressões, tentativas de homicídio e homicídios consumados. Este processo, conhecido como o dos “operacionais”, acabaria julgado entre outubro de 1986 e 1 de fevereiro de 1988, por um tribunal de júri — cujos jurados foram de escolha difícil, uma vez que muitos não compareciam com medo ao saberem o processo que lhes tinha calhado. Neste segundo processo, que teve a intervenção dos jurados, o coletivo de juízes era presidido por Luís Vaz das Neves que anos depois seria o presidente do Tribunal da Relação de Lisboa até se jubilar e é hoje investigado na Operação Lex. O processo tinha 30 réus, mas nove estavam fugidos e foram julgados à revelia.

Em setembro de 1985, alguns dos arguidos que se encontravam em prisão preventiva foram candidatos às eleições autárquicas. O então ministro da Justiça, Mário Raposo, deu-lhes autorização para fazerem campanha política dentro da cadeia — por isso, podiam conviver em regime de cela aberta durante o dia. Um desses candidatos acabaria, porém, por evadir-se com dez outros reclusos na célebre fuga do Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL).

Teodosio Alcobia, Aldino Pinto, Couto Ferreira, Daniel Horácio Tavares, Manuel Baptista Dias, Álvaro Monteiro, Joaquim Dias Lourenço, Francisco dos Santos, José Moreira, Manuel Costa e Luis Caamano (um espanhol capturado em Portugal por assaltos à mão armada e com 40 anos de cadeia para cumprir em Espanha), que ocupavam as celas 22, 23, 36, 42, 49, 54 e 57, neutralizaram os guardas, roubaram-lhes as fardas, três metralhadoras G3 e uma pistola. E saíram pela porta principal. Lá fora, esperava-os uma carrinha Ford Transit, que mais tarde seria recuperada perto do Casal do Marco, à saída da autoestrada do sul.

Depois da fuga, o juiz Martinho Almeida Cruz ordenou a realização de buscas na cadeia. Na cela de Dias Lourenço foi encontrada uma carta remetida por elementos da organização para um grupo de reclusos em que se discutia a estratégia de defesa a adotar, nomeadamente o pedido para serem julgados por um tribunal de júri. A Macedo Correia, que acabaria a colaborar também com a polícia, foi apreendido um documento que falava na importância que Otelo tinha no futuro do processo. Foi também nesta busca que encontraram o documento que os ameaçava de morte.

“Apanhámos os projetos de defesa e já sabíamos como é que eles iriam apresentar-se em tribunal. O Pedro Goulart não falava, falava o Otelo. Depois falavam dois das FP-25 a dizer que não tinham nada a ver com o Otelo. Depois, falavam duas meninas católicas por causa do juiz, que era católico, e alegavam que nada tinham a ver uns com os outros…”, recorda Cândida Almeida.

Meses mais tarde, o recluso espanhol acabou detido nas Amoreiras. Aldino Pinto, Teodosio Alcobia e Couto Ferreira só foram detidos em 1987, enquanto abasteciam um carro na estrada que liga Coina a Casal do Marco, no Seixal. Os outros foram sendo detidos em situações isoladas.

Dias Lourenço — cuja semelhança com o nome de um militante do PCP fez Mário Soares pensar que o PCP estaria envolvido nas FP-25 (como, à data, o semanário O Jornal deu conta) — já tinha sido apanhado em Sintra, em maio de 1986, com documentos falsos e com a arma que terá sido usada para assassinar o diretor-geral dos Serviços Prisionais, Gaspar Castelo-Branco.

Em 1986, José Marques Vidal era o diretor nacional da Polícia Judiciária e continuava a ter que lidar com o caso das FP-25. Em abril, e com o  fim da comissão de serviço de Dias Borges na DCCB, acabaria a chamar Orlando Romano — hoje procurador-geral regional de Lisboa — para esse lugar.

Entrevista a Orlando Romano. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
O agora procurador-geral regional de Lisboa, Orlando Romano
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Entrevista a Orlando Romano. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Orlando Romano tinha 30 anos quando foi liderar a DCCB, a unidade da PJ que investigava as FP-25
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Orlando Romano tinha 30 anos, era solteiro e até estava no Tribunal de Instrução Criminal quando viu o desfile de detidos da Operação Orion e o aparato envolvido em torno da detenção de Otelo. Mais tarde, na altura em que foi nomeado, como recordou ao Observador, “estava tudo a arder”: um julgamento em curso, um processo a rebentar, ameaças de morte aos magistrados — e um arrependido e o diretor-geral dos Serviços Prisionais assassinados a sangue frio.

O procurador não aceitou logo. “Era um jovem de 30 anos e pensei que tinha sido mobilizado para a guerra. Andei a ponderar. Entendi que não podia dizer que não — não podia dizer que não ia por medo. Mas era o pior lugar do país onde podia ser colocado”, assume agora, numa conversa no seu gabinete no Tribunal da Relação em Lisboa. Orlando Romano assumiria funções em julho e, segundo conta quem lidou com ele de perto, apesar de não ter qualquer experiência operacional tornou-se um deles. Romano não era apenas um diretor de gabinete: mal sabia que havia uma operação policial, estava na linha da frente.

Polícias e arguidos a viverem no mesmo espaço: a DCCB

Depois da morte do arrependido José Manuel Barradas, colocou-se um problema de segurança para os cerca de dez arguidos que estavam a colaborar com a polícia. Por precaução, acabaram a viver num dos pisos das instalações da DCCB, na Avenida José Malhoa, lidando diariamente com os polícias que os tinham prendido. Como o edifício da DCCB tinha sete pisos mas só dois estavam a ser ocupados, a solução foi arranjar um piso só para os arrependidos ficarem a viver com as suas famílias — estavam, simultaneamente, protegidos de tentativas de homicídio e sob controlo policial.

Para Cândida Almeida, este era um sinal de que “naquele tempo havia vários Estados dentro do Estado”. “Ficámos com os arrependidos nas mãos. Não podiam estar numa cadeia porquê? Porque nenhuma instituição pública acedeu recolhê-los. Nenhuma instituição foi obrigada a recolher aquelas pessoas. Ninguém as quis e não houve uma autoridade que dissesse: ‘Isto é um processo que interessa à democracia, que nos interessa a todos’.” Por isso, diz, “chegou-se à triste situação de eles irem viver para um andar por baixo da DCCB”. Foi um dos motivos para, na altura, Cândida Almeida se sentir “sozinha”, apenas com o apoio da Procuradoria-Geral da República.

Com polícias e arrependidos a partilharem o mesmo espaço, aconteceu o inevitável: os inspetores da PJ faziam muitas vezes o papel de familiares, de amigos (e algumas relações de amizade duram até hoje) — e até de motoristas. “Quantas vezes levei os filhos deles à escola?”, interroga-se um elemento da PJ que lidou de perto com os membros das FP-25 no seu local de trabalho. Mais: por vezes, os arrependidos participaram nas investigações quase como polícias.

António Coutinho ainda hoje se recorda do dia em que estava num restaurante e apareceu um dos dissidentes da organização que estava na DCCB, com a mulher, para jantar. “Cumprimentei a senhora, apresentei-os à minha mulher e disse-lhe que ele era um colega. No fim da refeição, estávamos a conversar e ele disse, referindo-se à sede da DCCB: ‘Tenho que ir para o hotel’. E a minha mulher: ‘Mas vão para num hotel? Fiquem na nossa casa’”. E, nessa noite, o arguido do caso FP-25 ficou mesmo a dormir em casa do coordenador da PJ.

O vai e vem do processo

Em julgamento, naquele que ficou conhecido como o processo principal das FP-25, estiveram apenas 64 dos 73 arguidos pronunciados: José Manuel Barradas foi morto e dez outros arguidos acabaram por ser julgados à revelia. Assim, no final, eram 48 os condenados por organização terrorista a penas entre os 7 meses e os 17 anos e meio de cadeia, 16 os absolvidos e oito acabaram por ser julgados em processos à parte.

Mas esta decisão acabaria por arrastar-se ao longo de mais uma década pelos tribunais superiores.

Num primeiro recurso para a Relação, a defesa dos arguidos pedia que a prova fosse reapreciada e tomada uma nova decisão. Isto porque, argumentavam, o crime de associação criminosa não podia dissociar-se de outros crimes. Mas aquele tribunal superior alegou não poder reapreciar uma prova que não tinha por completo, até porque nada do que foi dito em tribunal tinha sido gravado — não existiu gravação por oposição estratégica da defesa dos arguidos, à semelhança do que fizeram as Brigadas Vermelhas em Itália. Por outro lado, aquele tribunal superior olhou para as acusações em causa e considerou existirem alguns crimes subjacentes ao de associação terrorista pelos quais os arguidos deviam ser condenados — o que levou ao agravamento de algumas penas. O Tribunal da Relação manteve a decisão de extinguir a FUP.

O recurso seguiu depois para o Supremo, com a decisão a ser conhecida em junho de 1988: a Relação só podia ter apreciado os crimes de associação terrorista e não outros. O Supremo acabou a repor a decisão da primeira instância relativamente aos crimes em causa. Daria também razão ao Ministério Público ao livrar de uma pena de cadeia os arguidos considerados arrependidos e que levaram a polícia a desvendar o caso das FP-25.

JULGAMENTO DO CASO FP-25 NO TRIBUNAL DE MONSANTO. DA ESQUERDA PARA DIREITA: CESAR ESCUMALHA, OTELO SARAIVA DE CARVALHO E PEDRO GOULART. LUSA MANUEL MOURA

César Escumalha, Otelo Saraiva de Carvalho e Pedro Goulart numa das sessões de julgamento das FP-25, no Tribunal de Monsanto

MANUEL MOURA/LUSA

Otelo, Mouta Liz e Goulart recorreriam ainda para o Tribunal Constitucional e, entre os pontos levantados, voltavam àquele que fez com que este processo andasse para a frente e para trás: a questão do duplo grau de jurisdição penal em matéria de facto. Ou seja: a possibilidade de um tribunal superior reapreciar a prova produzida em primeira instância relativamente aos crimes e de proferir uma decisão (eventualmente diferente). Para o Tribunal Constitucional, os réus tinham razão e o Tribunal da Relação devia corrigir a sua decisão.

Os recursos da decisão ainda voltaram à Relação, ao Supremo e até ao Constitucional com a mesma questão: por um lado, os arguidos tinham direito a recorrer da decisão da primeira instância; por outro lado, um tribunal superior não podia reapreciar questões de facto, mas apenas questões jurídicas.

Por esta altura, os arguidos começavam a ser libertados por excesso de prisão preventiva — e o caso continuava às voltas sem transitar em julgado, ou seja, sem que houvesse uma decisão final, sem mais possibilidade de recurso. Otelo Saraiva de Carvalho foi um dos primeiros a serem libertados do presídio de Tomar, depois de uma decisão que lembrava que o limite da prisão preventiva era de três anos. Na rua, tinha uma multidão à espera; assim como em Oeiras, para onde seguiu. Houve até quem lançasse foguetes.

Entretanto, a médica Isabel do Carmo e Carlos Antunes tinham criado a Comissão Pró-Amnistia Otelo e Companheiros. “As ações passaram-se naquele intervalo entre 1980 e 1984, ainda era tudo muito fresco em relação ao 25 de Abril. E, pelo facto de se ter envolvido nisto, Otelo não perdia a sua condição de grande operador e chefe do 25 de Abril, juntamente com Vasco Lourenço. Portanto, as circunstâncias não eram de prisões comuns. Foi por isso que fundámos a comissão e fizemos movimentações pró-amnistia. Nunca foi de perdão, e nunca foi de dizer ‘estas pessoas não têm culpa nenhuma e são falsamente acusadas — não eram’”, explica Isabel do Carmo ao Observador.

Diogo Noivo, no livro “Uma história da ETA”, também dá conta dos apoios a Otelo através de comités de solidariedade, como percebeu através de um relatório da organização terrorista basca em que é referido um Encontro Internacional Amnistia Otelo e Companheiros ocorrido em Lisboa, no Hotel Penta. As despesas deste encontro foram suportadas pelos Verdes alemães através de fundos do Parlamento Europeu.

As voltas do processo pelos tribunais superiores, o tempo de prisão preventiva dos arguidos e os vários processos ainda pendentes pelo país inteiro acabariam por ser usados como argumento do poder político para o primeiro projeto de lei de amnistia. “A opção é global: entre assistirmos, com todas as consequências, ao lento desenrolar das complexidades processuais em que a máquina judicial se deixou enredar, de par com as correspondentes sequelas psicológicas, e limparmos de vez, com o detergente do esquecimento, a última nódoa que caiu no pano de Abril”, lia-se no documento, onde se assinalava o trabalho “notável” das entidades judiciárias.

Os jornais da época davam conta de que, ainda antes de ser libertado, Otelo era assiduamente visitado na cadeia pelo dirigente socialista António Almeida Santos. A Polícia Judiciária chegou a aperceber-se desses encontros em algumas vigilâncias. António Coutinho presume que nesses contactos terá havido alguma negociação da amnistia que estava a ser preparada. “Essas coisas são sempre feitas de uma forma que não há uma prova, e mesmo que houvesse… Eles vão lá negociar a amnistia, não é crime isso. Não havia nisso uma atividade criminosa”, avalia Coutinho.

A 2 de junho de 1990, ao Expresso, Almeida Santos, que presidia à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias do Parlamento, considerou um “refinadíssimo disparate” dizerem que ele estava a negociar com Otelo.

Almeida Santos , Presidente do Grupo Parlamentar do PS , Partido Socialista , questiona os deputados do PSD , Partido Social Democrata , no hemiciclo

Almeida Santos, líder parlamentar do PS, num debate na Assembleia da República a 21 de setembro de 1994

LUSA

De qualquer forma, os encontros entre Almeida Santos e Otelo terão continuado, embora o governo tenha recusado sempre que estivesse em causa qualquer tipo de negociação. Em entrevista à RTP, em janeiro de 1991, o então dirigente do PS Alberto Martins concordava com o apelo do então Presidente da República Mário Soares para uma amnistia. “Estaremos disponíveis para dar o nosso consenso”, afirmou. Alberto Martins dizia que primeiro era necessário resolver a questão política, e só depois as questões jurídicas: “Amnistia, sim ou não, com alargamento aos crimes de sangue, ou não?”. O dirigente socialista negava “qualquer negociação secreta” por parte dos deputados do Partido Socialista.

Em junho, ao Expresso, Otelo Saraiva de Carvalho garantia que o próprio Mário Soares lhe prometera que não voltaria a ser preso. Aliás, do processo administrativo que, já bem mais tarde, em 2009, levou em frente para ser promovido no exército consta um ofício enviado ao então ministro da Defesa onde Otelo mostrava ter contactos privilegiados sobre o seu destino judicial ao afirmar que sabia de “fonte fidedigna” que poderia “estar para breve a marcação de audiência do julgamento dos ‘crimes de sangue’ cometidos e reivindicados pelas chamadas FP-25 e prevendo o requerente vir a ser totalmente ilibado da acusação de ‘autoria moral’ daqueles crimes”.

A lei da amnistia, que perdoava infrações com motivações políticas cometidas entre junho de 1976 e 21 de julho de 1991, acabaria por ser aprovada num aceso debate ocorrido a 2 de março de 1996 no parlamento. Antes de aí chegar o diploma, o PSD ainda contestou a sua admissão, mas a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias acabaria por fazer um parecer a considerar que este projeto não violava a Constituição. No debate, que dividiu partidos de esquerda e de direita, houve aplausos e murros na mesa, sobretudo do CDS e do PSD, que consideravam a lei uma “vergonha” para o parlamento e para o país. A votação foi feita nominalmente, a pedido do CDS. Entre os 220 deputados presentes, 123 votaram a favor, 94 contra e três abstiveram-se.

Mário Soares reagiria publicamente, reconhecendo que as vítimas dos crimes não deviam estar satisfeitas, mas que tinham passado 20 anos e o país não podia continuar preso ao passado. “Temos que dar passos no sentido da reconciliação nacional”, disse.

"Havia efetivamente recursos e mais recursos, dos processos todos que andavam a ser julgados pelo país fora. Procurou pacificar-se juridicamente e politicamente a situação através da amnistia a todos os que não estivessem incriminados por crimes de sangue.
Magalhães e Silva, advogado

O advogado Magalhães e Silva, que defendeu um dos arguidos do processo, lembrou ao Observador que “havia efetivamente recursos e mais recursos, dos processos todos que andavam a ser julgados pelo país fora”. “Procurou pacificar-se juridicamente e politicamente a situação através da amnistia a todos os que não estivessem incriminados por crimes de sangue”, defende o advogado.

Como a lei da amnistia não perdoava os crimes de sangue, Otelo e os arguidos condenados em primeira instância voltariam ao Tribunal da Boa Hora, já em 2001 (17 anos após as detenções), para serem julgados por dez homicídios e sete tentativas de homicídio. Com a amnistia da autoria moral dos crimes de associação terrorista, a juíza Elisa Sales considerou que os elementos das FP-25 cometeram de facto os crimes, mas que não podia determinar quem tinha feito o quê. Assim, acabou por condenar apenas quatro arguidos: os arrependidos Mário Lamas e Macedo Correia, pelo caso do bancário da Marinha Grande que ficou paraplégico durante um assalto; José António Sousa Moreira, que assumiu ser cúmplice no plano que matou o administrador da Louças de Sacavém, Bernardo Monteiro Pereira; e Baptista Dias, por tentativa de homicídio.

“Passaram cerca de 15 anos sobre os últimos crimes cometidos pelos membros da organização; os réus depuseram as armas, não cometeram mais crimes, verificou-se uma pacificação social, o que tudo aponta desde logo que se encontram reinseridos socialmente, aqui se incluindo também em termos laborais, pois muitos foram os réus que no decurso da audiência requereram a sua dispensa a julgamento, ou a algumas sessões, por motivos profissionais”, explicou o coletivo de juízes. “Os crimes foram praticados por alguns dos senhores que estão aqui à minha frente, mas o tribunal não consegue identificar os autores”, afirmou a juíza Elisa Sales. A decisão seria confirmada dois anos depois pelo Tribunal da Relação.

O Ministério Público ainda mostrou intenção de recorrer para o Supremo, mas o procurador que o ia fazer teve tuberculose e ficou de baixa médica. O processo foi então parar às mãos de um outro procurador, que acabou por deixar passar o prazo legal  para interpor o recurso. O magistrado ainda foi alvo de um processo de averiguações. Que não teve quaisquer consequências.

Nesta altura, tinham passado 20 anos desde a detenção de mais de 50 membros das FP-25 de Abril, entre eles os seus fundadores Otelo Saraiva de Carvalho e Pedro Goulart. O processo tinha-se arrastado durante duas décadas por causa de múltiplos incidentes levantados pelas defesas em julgamento e também por causa dos inúmeros recursos apresentados em sucessivos tribunais.

Nada disso foi um acaso. Como mostram as anotações nos cadernos de Otelo Saraiva de Carvalho, ainda antes das detenções no âmbito da Operação Orion, os dirigentes das FP-25 de Abril já tinham traçado um plano para o caso de serem apanhados. Numa reunião ocorrida meses antes das detenções, e em conversas posteriores cujas conclusões foram encontradas em documentos apreendidos pela polícia, foram tomadas decisões sobre o que seria feito nos anos e décadas seguintes.

Primeiro passo: quem fosse preso devia declarar-se militante da FUP. Por um lado, a pertença a um partido permitir-lhes-ia reclamar o papel de preso político. Por outro lado, dizendo-se militantes e não dirigentes evitariam perguntas sobre o funcionamento interno da organização, podendo sempre declarar ignorância.

Segundo passo: definir o comportamento durante os interrogatórios. Nessa reunião, Pedro Goulart insistiu que era preciso definir o que dizer à polícia. Mouta Liz sublinhou que nunca se devia sequer caracterizar a organização. Já Fernando Beleza da Fonseca, que acabou absolvido, referia que muitas vezes era no primeiro interrogatório que a polícia colhia as melhores informações. Tinha razão. O juiz Martinho Almeida Cruz lembra que quase todos os arguidos recusaram falar, com exceção daqueles que viriam a tornar-se “arrependidos”.

Terceiro passo: em tribunal só aceitariam falar as pessoas escolhidas pela organização e diriam apenas o que estava definido.

Quarto passo, muito importante, que tinha sido aprendido com o que se passara no julgamento do grupo terrorista italiano Brigadas Vermelhas: durante o julgamento, seriam aplicados o maior número possível de manobras dilatórias, com o objetivo de adiar cada vez mais a decisão final e, assim, obrigar a que fossem ultrapassados os prazos da prisão preventiva, o que levaria à libertação dos detidos.

Terminado o julgamento, seguir-se-iam todos os recursos que a lei permitia, envolvendo o Tribunal da Relação, o Supremo Tribunal de Justiça e até o Tribunal Constitucional.

Não bastava, porém, fazer com que o processo se prolongasse — era necessária uma resolução final que se antecipasse ao trânsito em julgado do caso. Na opinião do então diretor da Polícia Judiciária, Carlos Picoito, era aí que entrava Otelo Saraiva de Carvalho. O fundador das FP-25 de Abril tinha sido “um chamariz para levar pessoas para a organização”, mas agora assumiria um outro “papel fundamental”. Segundo Carlos Picoito: “Caso as investigações chegassem a bom termo, o processo fosse introduzido em tribunal e houvesse condenações, Otelo Saraiva de Carvalho tinha obrigação de conseguir a amnistia das pessoas que tivessem sido condenadas”. O que, de certa forma, até conseguiu.

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