O cenário era uma piscina no rooftop de um hotel da Figueira da Foz, obra “megalómana” dos tempos de Santana Lopes. Era dia 16 de janeiro, o frio era considerável, mas junto à piscina coberta, o calor não condizia com os casacos. Ana Gomes tinha combinado ali mesmo uma reunião com a associação SOS Cabedelo, para falar sobre os problemas ambientais da erosão costeira, tão visíveis do alto do 16º andar do hotel Oásis. A conversa ia longa, e já os interlocutores a tinham levado para o terraço ao ar livre quando Carlos Monteiro surge apressado ao encontro da candidata.
“Peço desculpa pelo atraso, senhora embaixadora. Só quem não sabe o que custa organizar um processo eleitoral é que se abstém”, começa por dizer, justificando-se com o muito trabalho que estava a ter por aqueles dias na preparação do voto antecipado, no qual se tinham inscrito 996 pessoas no concelho da Figueira da Foz. Carlos Monteiro é o presidente da câmara, eleito pelo PS, e é também o líder dos socialistas no concelho. O esforço que fez para não perder o momento de receber a candidata presidencial ali, num hotel emblemático da sua terra, parecia evidenciar que estava ali para a apoiar. Mas, vendo bem, não era bem assim.
[Ouça aqui a reportagem da Rádio Observador]
“Não vou dizer em quem vou votar, mas a senhora embaixadora está dentro do leque de pessoas em quem eu teria, ou terei, gosto em votar”, disse, explicando aos jornalistas que não seria “elegante” para com os munícipes dar uma indicação do sentido de voto. Mas a verdade é que também “há outros candidatos” dentro desse leque que Carlos Monteiro poderia, ou poderá, apoiar. O autarca também teria corrido até aos 16º andar do hotel se Marcelo estivesse no topo? Provavelmente sim.
— Senhor presidente, obrigada mas eu não vim aqui para o ouvir declarar o seu apoio. [risos]
— Oh senhora embaixadora, eu também não o declarei.
O episódio ilustra bem aquela que é a posição do PS nestas eleições presidenciais: António Costa decidiu — e a Comissão Nacional do PS aprovou — não apoiar oficialmente ninguém na corrida a Belém, mas deixou elogios à “cooperação” com o Governo no primeiro mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, e também referências às restantes candidaturas do campo democrático — entre elas a candidatura da “ilustre” militante do PS, Ana Gomes. João Ferreira e Marisa Matias também ficaram, implicitamente, dentro do leque.
Presidenciais. PS divide-se entre apoios a Marcelo, Ana Gomes e até João Ferreira. Quem apoia quem?
Na reunião acesa da Comissão Nacional do PS que, em novembro, ditou o que já se sabia que ia acontecer — que Ana Gomes não ia ter o apoio oficial do partido — Pedro Nuno Santos atravessou-se contra a direção e saiu da reunião a liderar a frente de esquerda que apoiaria a candidata. Duarte Cordeiro juntou-se. Tiago Barbosa Ribeiro também, assim como o deputado João Paulo Correia, que apoia Ana Gomes na lógica do “mal menor”, por um lado, e na lógica do voto anti-Ventura, por outro. Os ex-líderes da JS Ivan Gonçalves e Maria Begonha também saíram em defesa da candidata socialista, sendo que o mesmo já não se pode dizer do atual líder da JS, Miguel Costa Matos, que se tem limitado a dizer, por motivos “institucionais”, que irá “votar à esquerda”, tendo sido dos primeiros a manifestar o seu apoio a Marisa Matias no movimento do “batom vermelho” que esta semana marcou a frente anti-Ventura nas redes sociais.
A esquerda socialista até pode estar com Ana Gomes, mas pouco se tem visto. A candidata, alegadamente por motivos relacionados com a pandemia e as medidas de segurança sanitárias, tem andado “sozinha” em campanha — apenas acompanhada de dois assessores e um fotógrafo. Quando chega aos locais — quase sempre concelhos socialistas (Sintra, Cinfães, Matosinhos, Figueira, Coimbra, Odivelas) — tem, por norma, o líder da concelhia socialista no terreno a orientar a visita. Mas é só. Longe vão os tempos em que o PS dos jovens turcos punha a máquina do candidato-presidencial-não-apoiado-pelo-PS a andar sem pó na engrenagem. Pedro Delgado Alves era o diretor de campanha de Sampaio da Nóvoa e, há cinco anos, o deputado e ex-líder da JS punha a estrutura socialista, e os jovens de norte a sul do país, a fazer a campanha funcionar sem grandes percalços. Na altura como agora, a campanha era “apartidária” — Sampaio da Nóvoa ‘só’ tinha o apoio formal do Livre e do MRPP, como Ana Gomes só tem o apoio formal do Livre e do PAN. Mas era um mundo de diferença.
Primeiro, não havia qualquer pandemia, e, não havendo restrições de contactos, grande parte do serviço das estruturas socialistas e dos jotas que diziam estar ali a título individual, e não em nome do partido (que não apoiava ninguém porque também tinha Maria de Belém na corrida), era encher salas para comícios, pôr bandeiras nos lugares, bater palmas quando era preciso e ditar a animação da caravana para a dinâmica positiva estar no alto. Agora não há bandeiras, e só aqui ou ali aparece um ou outro jovem da Juventude Socialista a preencher o cenário. Mas é raro. Foi o que aconteceu em Matosinhos, quando a socialista Luísa Salgueiro (presidente da câmara e líder da concelhia do PS) serviu de anfitriã com um grupo de quatro ou cinco jovens socialistas atrás. Sem bandeiras nem nada: à civil. A campanha é “apartidária”, vão repetindo os membros da candidatura. Também Sampaio da Nóvoa o dizia.
Luísa Salgueiro conduziu Ana Gomes pelas ruas da cidade, da câmara municipal ao mercado, e foi ditando o ritmo da passada. No final, escudou-se na câmara municipal quando confrontada com a questão: estava ali a apoiar a candidata socialista? Não propriamente. O apoio era apenas “institucional”, já que, como democrata, tem “todo o gosto” em receber os candidatos presidenciais que queiram passar por Matosinhos. Mas só recebeu Ana Gomes — não houve “mais pedidos”. Em todo o caso, Luísa Salgueiro vai dizendo que tem “muito orgulho” na “mulher lutadora” e “militante socialista” que é Ana Gomes. Faltou só a palavra final, para a candidata sair de Matosinhos com um voto público em carteira. Não saiu. Mas também não se fez de rogada: “O facto de alguns dirigentes do PS não estarem comigo ou de até darem indicações para votar noutro candidato [caso de Isabel Moreira que nesse dia tinha estado ao lado de João Ferreira], não me leva a desvalorizar que tenho muitos homens e mulheres socialistas a acompanhar-me”, disse, à porta do mercado em Matosinhos.
Governo aparece a medo. Reforços esperados na quinta-feira com 2 mil a assistir
Tem mesmo? Numa campanha da era Covid não há jotas, não há bandeiras, nem sequer há comícios. Só online. Mas mesmo nesses é preciso procurar bem para encontrar a tal ala esquerda que se atravessou pela candidata na Comissão Nacional do PS. Nem sequer Francisco Assis, o socialista que é a exceção à regra por ser da ala mais à direita do partido, apareceu ao fim de oito dias de campanha. E foi ele o grande impulsionador público da candidatura de Ana Gomes. Nem Pedro Nuno Santos, nem Duarte Cordeiro. Pelo menos para já.
É no ciclo de conferências “Portugal é consigo, Portugal é connosco”, que promove todos os dias via Zoom, na sua página de Facebook, que Ana Gomes tem contado com a presença de algumas figuras políticas e partidárias. Esta segunda-feira foi a vez do histórico socialista Vera Jardim, um conhecido apoiante da candidata que foi falar sobre casos de justiça; antes já tinha ido Manuel Alegre, também ele com experiência de eleições presidenciais, que enalteceu a “coragem” de Ana Gomes por dar continuidade à história da luta democrática e à “resistência anti-fascista” numa altura em que o PS “desertou” do combate.
Noutro plano, e em representação da tal ala esquerda do partido, o deputado socialista Tiago Barbosa Ribeiro marcou presença no Zoom para elogiar a candidatura “onde se reveem muito socialistas” e para desmontar os argumentos de Ventura contra a “subsidiodependência”. Além dele, também a mandatária da candidatura Isabel Soares (filha de Mário Soares e Maria Barroso) marcou presença, assim como dirigentes do Livre e do PAN, de Rui Tavares a André Silva, passando por Inês Sousa Real, na qualidade de membros dos únicos dois partidos que apoiam oficialmente a candidatura.
Do lado do Governo, a primeira vez que a campanha de Ana Gomes teve um cheirinho do executivo de António Costa foi esta sexta-feira, quando um ministro apareceu na habitual conferência de Zoom. Era Ricardo Serrão Santos, ministro de Mar, que apareceu mais na qualidade de “amigo” do que outra coisa qualquer. Serrão Santos partilhou o palco do Parlamento Europeu com Ana Gomes entre 2014 e 2019, e são amigos desde então. Elogiou-lhe a “coragem”, o “sentido de justiça”, disse que era uma pessoa “particularmente lutadora” e “iluminada”. Não apelou ao voto com todas as letras mas criticou aquele com quem Ana Gomes disputa o segundo lugar: “Os cidadãos de países democráticos devem penalizar aqueles que negam a ciência, constroem os populismos e promovem as falsas notícias”, disse. Já esta terça-feira será a vez de João Costa, secretário de Estado adjunto e da Educação, que também participará numa conferência online sobre “aprendizagem, arte e cultura”. E é tudo.
Quase tudo, aliás. Na segunda-feira, primeiro dia de campanha oficial, Ana Gomes tinha ido a Sintra visitar o futuro centro de Saúde de Algueirão Mem-Martins e, além de um vereador da câmara, socialista, quem estava a acompanhar a visita era André Santos Pereira, adjunto do gabinete do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, que voltou, este domingo, a estar presente no dia em que a candidata visitou um bairro social do município de Oeiras. É ele o diretor de campanha de Ana Gomes no distrito de Lisboa, sendo que a candidatura tem um coordenador em cada distrito e nas regiões autónomas.
A verdade é que, comparando com o PS que apareceu na sombra na campanha de Nóvoa, a campanha de Ana Gomes deixa a desejar. Ao que o Observador apurou, é o diretor de campanha Paulo Pedroso quem faz, a partir de Lisboa, o contacto com as estruturas locais (socialistas) para agendar as visitas e fechar a agenda. Quanto aos momentos mais políticos do dia, a ideia era realizar as conferências ao vivo, em fóruns ou bibliotecas, mas a pandemia ditou que fosse tudo transportado para o registo online, deixando apenas para o registo presencial as visitas a entidades e instituições no terreno — sem partido que se veja.
Na próxima quinta-feira, contudo, são esperados reforços. É que foi agendado, com pompa e circunstância, “um grande acontecimento de pré-encerramento de campanha”, previsto para as 21h30. Aos jornalistas, o assessor da candidata deu conta de que a ideia é haver uma “grande mobilização dos núcleos de apoio a nível nacional”. Mas tudo online. O objetivo declarado é juntar pelo menos 2 mil pessoas, via Twitter e Facebook, naquilo que a candidatura de Ana Gomes chama “uma mobilização à antiga”. É aqui que vai entrar a estrutura do PS? Ao que o Observador apurou, até um grupo espontâneo de apoio à candidata criado no Facebook a partir de Beja, com 28 mil seguidores, mais do que os 12 mil que a própria página de Ana Gomes tem, foi chamado para o toca a reunir.
Duarte Cordeiro e Pedro Nuno Santos deverão ser as estrelas da companhia nesta última semana de campanha, podendo marcar presença nesse evento que contará com “meia dúzia” de oradores. Há quem diga que haverá “surpresas”. Algum PS escondido no armário?
“Atenção, ele vai declarar o apoio”. Ufa, foi preciso chegar a Coimbra
Ana Gomes vai pisando solo socialista na sua volta pelo país. Não desce abaixo do Tejo. O mais a sul a que vai é a Almada, e de todos os concelhos que pisou na última semana só Oeiras é que é de Isaltino, o Porto de Rui Moreira e Santarém do PSD. Tudo o resto, de Sintra a Cinfães, passando por Matosinhos, Odivelas, Coimbra, e Figueira, é o PS que manda. Mas à semelhança do que fizeram Luísa Salgueiro e Carlos Monteiro, os autarcas são tímidos a mostrar-lhe o apoio. Foi preciso chegar a Coimbra para isso acontecer.
Nos jardins da Associação Académica de Coimbra, a candidata responde a perguntas do recém-eleito presidente da direção dos estudantes João Ascensão. Promete lutar por propina a custo zero, diz que quer cumprir a Constituição que apela à escolaridade gratuita e até arrisca dizer que o dinheiro do Estado que foge para offshores podia ser alocado a isso mesmo. No final, de batom vermelho nos lábios, é tempo de tirar as fotografias da praxe. Ao seu lado, junto a um painel com o rosto da candidata em tons alaranjados, posicionam-se os apoiantes das estruturas do PS e do PAN de Coimbra. Os jornalistas estão a dispersar mas ouve-se uma voz ao fundo: “Atenção, ele vai declarar o apoio”.
Carlos Cidade, número dois de Manuel Machado na câmara de Coimbra, aproveitava o momento da fotografia para aclarar a voz e dizer umas palavras: “Há momentos na vida política em que não podemos deixar de ter um intervenção ativa na luta pela liberdade e pela democracia (…) Qualquer socialista não pode deixar de intervir e votar em Ana Gomes, que representa o espaço de referência do PS nesta campanha eleitoral”. Check. Carlos Cidade é número dois, ninguém explicou porque é que Manuel Machado, presidente da Associação Nacional de Municípios, ficou em casa. Elísio Estanque e Manuel Leitão Cruz, da estrutura do PS local, compuseram a moldura.
Em Cinfães, Viseu, onde esteve na quinta-feira, o presidente da câmara, Armando Mourisco, também socialista, recebeu a candidata de braços abertos. O mote era uma visita a uma escola profissional, financiada por fundos comunitários, e o autarca serviu de cicerone. Ele e Luís Soares, um jovem socialista da concelhia de Cinfães que é também o coordenador de campanha da candidata no distrito de Viseu. Mas o apoio público — se existe — ficou no plano privado. A conversa foi centrada nos problemas do interior, no acesso à tecnologia, na educação e na economia verde. Se Armando Mourisco recebeu a candidata como apoiante, não o disse.
Em Odivelas, este domingo, já foi – ligeiramente – diferente. O presidente da câmara, Hugo Martins, mandou dizer que não pôde estar presente por estar “com gripe” (“não é Covid”), mas o vereador com o pelouro da Proteção Civil, João António, fez-lhe as vezes na visita ao quartel dos bombeiros voluntários, onde mostrou à candidata como é feito o transporte de doentes no veículo dos bombeiros, envolvidos num plástico para prevenir contactos com potenciais casos positivos de Covid. A compor a moldura, desta vez, estavam os quatro presidentes de junta do concelho: Odivelas, Pontinha e Famões, Ramada e Caneças, e Póvoa de Santo Adrião e Olival Basto. “Estamos aqui para a apoiar”, disseram os quatro quase em uníssono a meio de uma conversa com o comandante do quartel. Check.
Mas dias antes, em Santarém, Ana Gomes teria de recorrer ao ex-presidente da câmara de Santarém e ex-secretário de Estado das florestas do segundo governo de José Sócrates, Rui Barreiro, para comandar as tropas da candidata no dia em que visitou as instalações da Comunidade Intermunicipal da Lezíria do Tejo, o comando distrital da PSP e o hospital distrital de Santarém. Era ele, o ex-autarca, quem seguia a comitiva para todo o lado. É que não só Santarém é social-democrata como, de manhã, o presidente da Comunidade Intermunicipal e presidente da câmara de Almeirim (Pedro Ribeiro, do PS) não se tinha mostrado particularmente entusiasta da candidata socialista. Sobretudo quando falou dos touros. Há um PS dividido, sim, e, ao contrário do que aconteceu há cinco anos com Sampaio da Nóvoa não há máquina à vista a limpar o pó da engrenagem de uma candidatura que, até ver, é só do Livre e do PAN. Faltam quatro dias de campanha e o relógio continua a contar.