Passaram-se quase sete meses desde que foram registados os primeiros casos de Covid-19 em Portugal. O mundo e o país enfrentam agora uma nova realidade: depois de um período de acalmia, assiste-se a um novo aumento no número de casos diários de infeção pelo novo coronavírus: setembro já tem o pior quarto dia de sempre da pandemia (esta última sexta-feira, com 899 novos casos) e quatro dias no top 10 de mais contágios. A segunda vaga parece agora mais real do que nunca, mas muito mudou desde março até agora.
Como é que o vírus mudou?
No início da epidemia, o Instituto Ricardo Jorge (INSA) já tinha identificado uma mutação que se estava a tornar predominante entre os casos registados em Portugal: a D614G. Ou seja, na posição 614 do gene referente à proteína S — a molécula que dá o aspeto de ter uma coroa ao SARS-CoV-2 e que serve de chave para entrar nas células —, o aminoácido aspartato, designado pela letra D, foi substituído pelo aminoácido glicina, representado pelo G.
Até hoje, ninguém percebe porque é que esta mutação se tornou dominante: todas estas alterações à informação genética ocorrem de forma aleatória, mas se alguma delas persiste é porque confere alguma vantagem ao vírus. Há duas hipóteses principais: ou provoca uma doença diferente ao hospedeiro ou aumenta a capacidade de infetar as células e de se transmitir.
De acordo com o último relatório do INSA, publicado no final de agosto, a mutação D614G foi identificada em 91,2% das 1.785 sequências do genoma do SARS-CoV-2 identificados nas amostras. Mas esse mesmo relatório dá conta da identificação de uma nova mutação que também já se tornou dominante em Portugal: chama-se D839Y — ou seja, na posição 839 do gene da proteína S, o aspartato (D) foi substituído por uma tirosina (Y) — e fica numa região crítica da proteína S responsável pela entrada do vírus nas células humanas.
Numa entrevista ao Observador, Miguel Castanho, investigador principal do Instituto de Medicina Molecular, no pico da primeira epidemia, desvendou o significado desta mutação. “Fica numa região chamada péptido de fusão. É uma zona da proteína S que faz a ligação à membrana da célula, aquela que inicia o processo de fusão do vírus com a célula. Isto é, a proteína liga-se ao recetor, portanto, fica um vírus encostado à célula. Mas depois a proteína sofre alterações de forma; e a zona onde ocorreu a mutação é a que começa a abrir o caminho para o vírus penetrar na célula“, relatou o bioquímico.
Segundo o INSA, esta variante do SARS-CoV-2 foi responsável pelo grande surto de Ovar. Aliás, sabe-se agora que, entre 14 de março e 9 de abril, pelo menos 3.800 casos de Covid-19 tenham sido causados por vírus com a mutação D839Y, o que corresponde a cerca de um em cada quatro casos em Portugal.
Tal como aconteceu com a mutação D614G, também agora não se sabe o que justifica o sucesso da mutação D839Y. Mas o INSA coloca duas opções em cima da mesa: esta variante “poderá ter tido maior oportunidade de propagação” ou “poderá dever-se a um maior fitness, em particular em termos da sua capacidade de transmissão”. Mas para descobrir “será necessária a realização de estudos funcionais que testem o impacto da mutação D839Y na infetividade e propagação do SARS-CoV-2”.
A Covid-19 está diferente?
Há duas boas notícias sobre estas mutações. A primeira é que estão a ocorrer numa quantidade expectável: “O número médio de mutações por genoma, comparando com o primeiro genoma sequenciado na China, é de oito, o que se enquadra dentro da taxa de mutação prevista para este vírus: cerca de duas mutações por genoma por mês”, indica o relatório do INSA.
INSA deteta 103 mutações na proteína S do vírus
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Nos 1.785 genomas analisados pelo INSA, foram detetadas, em média, 1.274 mutações no novo coronavírus. Cento e três delas ocorreram na proteína S. Miguel Castanho (Instituto de Medicina Molecular) nota, no entanto, que não é a quantidade de mutações que determina a perigosidade do vírus, mas sim o local onde elas ocorrem. “Se acontecerem num sítio que provoca um agravamento da doença ou no alvo das vacinas ou terapêuticas, isso sim é importante”, nota.
A segunda boa notícia é que “nunca se notou que tenha aparecido um perfil de doença radicalmente diferente“, por isso, “admite-se que, como os vírus com estas mutações não são muito diferente dos outros em termos da doença que provocam”, a variante de SARS-CoV-2 presente em Portugal tornou-se dominante graças “a uma maior infecciosidade, a capacidade de passar de pessoa para pessoa”, explica Miguel Castanho.
“Tal como se suspeitou com a D614G, a mutação D839Y também deve ter tornado o vírus mais infeccioso sem provocar uma doença mais grave“, prosseguiu o investigador: “Ainda ninguém estudou ao detalhe. Até pode ser que exista alguma diferença digna de nota, mas não é tão radical assim que nos permita perceber uma estirpe diferente a causar uma doença diferente”.
Aliás, Miguel Castanho já tinha explicado que “isto é aquilo que se espera para a evolução natural de um vírus“: “Um vírus muito infeccioso que não seja perigoso e compita com as estirpes perigosas do coronavírus torna-se dominante. O facto de se transmitir mais facilmente não é, por si só, um mal. Serem mais infecciosos só seria um grande problema em vírus que são muito mortais”.
Assim, com mutações que o tornam mais infeccioso mas não mais perigoso, “o vírus não perde vantagem porque não mata mais pessoas”: “Se se multiplicasse mais mas matasse mais pessoas, perdia a vantagem porque se multiplicava durante menos tempo”, concretiza Miguel Castanho.
O que evoluiu desde a primeira vaga até agora é o conhecimento que se tem sobre os sintomas e as sequelas da Covid-19. O relatório de situação da Direção-Geral da Saúde publicado a 25 de março dizia que, entre os infetados que exibiam sintomas (52% dos casos sinalizados até esse dia), 62% tinha tosse seca, 51% tinha febre, 36% tinha dores musculares, 28% queixava-se de cefaleias, 23% tinha uma sensação de fraqueza generalizada e 19% dificuldades respiratórias.
Este foi o quadro mais comum durante toda a primeira vaga da Covid-19 em Portugal e continua a ser. Mas já foram identificados outros sintomas da Covid-19, mais raros, desde então; e o conhecimento sobre eles foi alargado. Por exemplo, ainda em março, uma parte significativa dos doentes sintomáticos queixava-se de anosmia (perda de olfato) e disgeusia (perda de paladar).
A notícia não causou estranheza, principalmente porque este fenómeno já tinha sido identificado noutras infeções do trato respiratório. Mas só em agosto, no início da segunda vaga da Covid-19, é que se percebeu como estes sintomas podiam ser diferentes dos reportados em casos de gripe. Um estudo da Universidade de East Anglia (Reino Unido) testou 10 pessoas com uma infeção pelo novo coronavírus, 10 pessoas com constipações fortes e outras 10 saudáveis; e notou que quem tinha Covid-19 “é menos capaz de identificar os cheiros e não consegue identificar os gostos amargos ou doces”.
20% dos infetados tem manifestações cutâneas da doença
Outro sintoma entretanto relacionado com a Covid-19 é o aparecimento de irritações na pele. Miguel Peres Correia, presidente da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia, disse ao Observador que “até 20% dos infetados sofre de manifestações cutâneas” como frieiras, urticária, erupções similares às do sarampo e livedo — linhas irregulares de cor avermelhada e azulada que formam uma rede na pele.
“Pensa-se que as alterações observadas na pele decorrem do processo inflamatório a que todo o corpo está sujeito no decurso desta doença, sendo a mais expressiva o quadro similar à doença de Kawasaki”, acrescentou o especialista. Esta doença tem estado na mira dos pediatras na linha da frente do combate à Covid-19 desde que algumas crianças infetadas pelo SARS-CoV-2, tanto em Portugal como no estrangeiro, reportaram sintomas semelhantes aos desta complicação: febre, manchas avermelhadas na pele, conjuntivite e infeção do músculo cardíaco ou dos vasos sanguíneos.
Estes casos ainda estão a ser estudados pelos médicos, mas tudo indica que se esteja perante outra complicação que não a doença de Kawasaki, mas com sintomas semelhantes: o síndrome autoinflamatório. “De facto, não se pode dizer que haja um quadro dermatológico específico da Covid-19, mas devemos suspeitar da presença da doença numa situação inflamatória cutânea com características algo bizarras, distintas do habitual”, aconselhou Miguel Peres Correia.
Quem desenvolve um quadro clínico severo de Covid-19 e recupera pode ficar com sequelas a nível dermatológico, confirma o médico: “As pessoas que passaram por internamento com situações clínicas mais severas denotam alterações. A queda de cabelo é especialmente perturbadora pelo impacto que tem na aparência“.
Mas mesmo quem nunca esteve infetado pelo novo coronavírus pode sofrer consequências dermatológicas à conta da pandemia de Covid-19. E a culpa é das máscaras, do álcool-gel e da elevada frequência com que as pessoas lavam as mãos no cumprimento das regras sanitárias, recorda Miguel Peres Correia: “Se as manifestações cutâneas dos infetados são pouco específicas, já o uso regular de máscara e a lavagem muito frequente das mãos têm causado problemas a inúmeras pessoas“.
Segundo o médico, as gotículas de saliva e o ambiente quente e húmido que surge no interior das máscaras durante a utilização pode desencadear uma doença inflamatória. Além disso, o número de pessoas com dermite das mãos (uma inflamação na pele) “aumentou de forma significativa devido à lavagem regular, por vezes mais agressiva, das mãos”, prossegue.
Rins dos infetados podem ser atacados em quatro frentes
Outras consequências da Covid-19 que só agora começam a ser identificadas envolvem o impacto das formas graves da doença nos rins. E isso pode acontecer em quatro frentes, explica José António Lopes, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Nefrologia. Por um lado, como as células renais têm os recetores ACE2, a que a proteína S do SARS-CoV-2 se liga para se introduzir nas células, o vírus pode atacar diretamente estes órgãos.
Por outro lado, como o vírus pode desencadear no organismo uma reação inflamatória generalizada — a tempestade de citocinas, moléculas envolvidas na comunicação entre as células quando o corpo desencadeia uma resposta imune —, o rim, tal como outros órgãos, também pode ser atingido indiretamente pela resposta exagerada no sistema imunitário à infeção.
Em terceiro lugar, os rins também podem sofrer danos à conta do ataque do SARS-CoV-2 nos pulmões. “O vírus causa muitas vezes pneumonia e a própria hipóxia, o baixo fornecimento de oxigénio, pode comprometer os rins. Todas as células precisam de oxigénio para funcionar. Como a pneumonia dificulta as trocas gasosas, o rim também vai ser afetado porque as células precisam do oxigénio”, descreve o médico. Nesses casos, as células podem mesmo morrer por falta de oxigenação.
Por último, há um mecanismo tipicamente associado a uma infeção pelo SARS-CoV-2: o surgimento de microtrombos, coágulos nos vasos sanguíneos que irrigam os rins. Estima-se que 30% dos infetados hospitalizados por Covid-19 que não tinham doença renal prévia desenvolvam uma lesão renal aguda e venham a precisar de diálise.
Mas o maior perigo está para quem já tem uma doença renal e fica infetado pelo novo coronavírus. “Os doentes em programa de diálise, doentes transplantados renais, têm uma maior vulnerabilidade por serem imunossuprimidos“, avisa José António Lopes. Isto também pode contribuir para que a infeção não seja detetada tão precocemente porque, à conta da fragilidade do sistema imunitário, “pode haver menos incidência de febre, não têm tanta tosse e muitas vezes são assintomáticos”.
O problema é que, mesmo sendo assintomáticos, o vírus pode causar danos em órgãos que já estão fragilizados: “Estes doentes têm uma maior probabilidade de ficar internados em cuidados intensivos, de necessitarem de ventilação mecânica, de virem a desenvolver falência multi-orgânica e, obviamente, terão uma maior taxa de letalidade do que as pessoas sem estas patologias”.
Mesmo quem recupera pode sofrer complicações posteriormente: os doentes que já tinham doenças renais ou aqueles que as desenvolveram durante o internamento têm uma maior probabilidade de necessitar de diálise após a recuperação da Covid-19. No segundo caso, muitas deles não necessitam de mais acompanhamento, mas há casos de quem, vendo-se livre da infeção pelo novo coronavírus, precisa de ser consultado em nefrologia por causa das sequelas deixadas pelo vírus.
10% dos sintomáticos têm principalmente sintomas digestivos
Outras sequelas que não era conhecidas na primeira vaga da epidemia e que agora estão mais documentadas são as complicações intestinais. Em alguns casos, a Covid-19 manifesta-se a partir do aparecimento de diarreia, náuseas ou falta de apetite. “Cerca de 50% dos doentes sintomáticos sofre deste tipo de sinais da doença e, em 10% dos casos, estes até são os principais sintomas que reportam”, contou ao Observador o presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, Rui Tato Marinho.
À semelhança do que acontece com os rins, é assim por causa da tempestade de citocinas, que acaba por afetar também os órgãos do aparelho digestivo, mas também porque estes tecidos também contêm os recetores ACE2, podendo por isso ser diretamente atacados pelo SARS-CoV-2.
E também deixa sequelas, confirma o médico gastrenterologista: “A infeção Covid-19 não é uma coisa tão simples como a gripe. Tenho visto e ouvido falar de recuperações muito complicadas, com quadros de obstipação, prisão de ventre e desnutrição, mesmo em pessoas que não tinham problemas anteriores”. O fígado, por exemplo, também pode ser atacado pelo SARS-Cov-2: o vírus pode desencadear insuficiências hepáticas que perduram mesmo após a recuperação.
Rui Tato Marinho aponta ainda outro problema que a Covid-19 trouxe e que pode ter repercussões na identificação de doenças do trato intestinal: a diminuição significativa no número de exames, como as colonoscopias e endoscopias, por exemplo, que podem detetar complicações de saúde de modo precoce. “Muitas pessoas estão com medo de ir aos consultórios e às clínicas. Isso pode adiar o diagnóstico de doenças, como os cancros, precisam de ser tratadas o mais cedo possível”, avisou o médico.
Todos estas sequelas juntam-se aos efeitos secundários que já eram conhecidas há meses: os danos pulmonares, os problemas cardíacos, o ataque ao cérebro, as complicações causadas pelo próprio internamentos nos cuidados intensivos e o comprometimento da saúde mental.
O que dizem os números da DGS?
Nos últimos dias, Portugal tem registado números diários de infeções pelo novo coronavírus semelhantes aos que eram contabilizados em abril, quando o país atravessava o pico da pandemia. Só há três dias com mais casos que os 899 registados esta sexta-feira: dois em março e um abril, na primeira fase da epidemia.
Os gráficos mostram que, entre 13 de março (quando foi decretado o estado de alerta) e 4 de maio (quando se entrou no estado de calamidade e começou a primeira fase de desconfinamento), os números dispararam em flecha — chegaram mesmo a atingir os 1.516 casos diários de Covid-19 — para depois descerem abaixo dos 100 casos diários.
Nos dois meses seguintes, até à primeira semana de julho, os números subiram novamente até aos 542 novos casos de Covid-19 em 24 horas. Nessa altura, a região Norte deixou de ser o foco da Covid-19 e as atenções viraram-se para Lisboa e Vale do Tejo, de onde vinha a maior parte dos casos diários de infeção pelo novo coronavírus.
Ao longo de um mês, os números voltaram a abrandar. Mas tudo começou a mudar a partir de agosto, quando os casos de Covid-19 passaram a aumentar até aos dias de hoje. Os 849 casos detetados a 19 de setembro equiparam-se aos 852 anunciados a 3 de abril, apenas uma semana antes de o país ter tido o pior dia da epidemia em termos de casos diários de Covid-19. E os números desta sexta-feira só são ultrapassados pelos dias 28 de março (902), 31 de março (1.035) e 10 de abril (1.516).
O número de mortes por Covid-19 também acompanhou esta tendência de subida, mas muito longe da forma acentuada do número de casos. Desde o início deste mês que o número diário de vítimas mortais do SARS-CoV-2 subiu ligeiramente e, com as 13 mortes a 20 de setembro, iguala-se agora às registadas no fim de maio. É um fenómeno semelhante ao registado no início de julho, quando os surtos de Covid-19 ditaram a declaração do estado de alerta em Portugal, o estado de contingência em Lisboa e Vale do Tejo e o estado de calamidade em 19 freguesias lisboetas. Mas não se compara às quase 40 mortes diárias de abril.
De resto, tendo em conta o número total de casos de Covid-19 registados em Portugal e o número de fatalidades provocadas pela doença, a taxa de letalidade tem baixado significativamente desde 1 de junho, na entrada da terceira e última fase do desconfinamento. Neste momento, a percentagem ronda os 2,7% — ou seja, em cada 100 pessoas infetadas, três morrem de Covid-19.
São valores semelhantes aos registados no final da primeira semana de abril, mas evidenciam uma realidade diferente: na altura, o número total de infetados da Covid-19 era menor do verificado atualmente, mas o número absoluto de mortes por consequência do novo coronavírus chegava a quase 40. Agora, o número total de infetados já vai em mais de 72 mil, mas registam-se menos mortes diárias.
Os dados também mostra que desde 24 de maio, quando o números de curados saltou de 7.705 para 17.549 graças a uma atualização nos números das autoridades de saúde, a contagem dos recuperados sobe a um ritmo estável e constante. A maior preocupação é mesmo o número de casos ativos que, depois da mesma atualização, subiu ligeiramente até meados de julho, desceu também suavemente até meados de agosto e depois disparou até aos dias de hoje.
Portugal tem agora tantos casos ativos quanto os reportados em maio; e mais do que os registados no pico da primeira vaga. Isto é, há mais pessoas doentes neste momento em Portugal do que havia quando o país esteve confinado, com apertadas restrições às movimentações, durante o estado de emergência. Com o número de novos casos diários de Covid-19 a aumentar a um ritmo maior do que o número de casos recuperados, a tendência é que o volume de casos ativos continue em ascensão.
Quem são os infetados da Covid-19?
De acordo com os dados da DGS, a maioria dos infetados que já foram registados em Portugal pertencem à faixa etária dos 30 aos 39 anos: são 11.706 desde março até agora. Logo atrás, com uma diferença de apenas 76 casos, estão as pessoas com entre 40 e 49 anos. E em terceiro lugar aparecem os da faixa etária dos 20 aos 29 anos, a que pertencem 11.396 de todos os casos portugueses. Ou seja, quem tem entre 20 e 49 anos representa metade dos casos infetados com Covid-19 no país.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) já veio avisar que a pandemia “está a mudar”: “As pessoas na faixa dos 20, 30 e 40 anos estão a impulsionar cada vez mais a disseminação. Muitos [jovens] não sabem que estão infetados e isso aumenta o risco de transmissão para os mais vulneráveis”, descreveu em agosto Takeshi Kasai, diretor regional da OMS para o Pacífico Ocidental.
A percentagem de idosos com 70 ou mais anos, principal foco das preocupações no início da epidemia de Covid-19, tem decrescido desde abril até agora. Tal como Graça Freitas, diretora-geral da Saúde, anunciou em conferência de imprensa, estes doentes representam agora apenas 11% do total de infetados em Portugal, menos cerca de 13,5 pontos percentuais do que em abril. Agora, o epicentro das novas infeções está na faixa etária dos 20 aos 29 anos, cuja percentagem subiu de cerca de 11% em abril para 16% a 24 de setembro.
Ao Observador, Manuel Carmo Gomes, epidemiologista e professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, já tinha afirmado que este fenómeno era expectável e deve continuar a ocorrer. A culpa é de uma mudança nos comportamentos: as crianças e os jovens vão voltar às escolas e às universidades, os mais novos vão encontrar-se mais vezes com amigos e o frio do outono levará mais gente para dentro de espaços mal ventilados.
Mas Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública e membro do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, diz esperar o “aumento de idade das pessoas afetadas” e, por consequência, das pessoas “mais vulneráveis”. É que também elas terão tendência a desconfinar, algumas delas a regressar ao trabalho e acabarão por contactar com o vírus. Ou seja, os mais jovens devem continuar a ser a fonte das infeções da Covid-19, mas também se deve assistir a um aumento de casos nas faixas etárias dos 50 anos para cima. E isso, como veremos mais à frente, pode trazer problemas para o SNS.
O Sistema Nacional de Saúde está igual?
Não. De acordo com Marta Temido, ministra da Saúde, o SNS tem agora mais cerca de 700 ventiladores disponíveis para doentes Covid-19 do que em março, a testagem aumentou de uma média de três mil amostras por dia para 23 mil, há uma maior capacidade de “funcionar em rede” e foi possível melhorar “aquilo que é a celeridade de deteção de casos”.
“Temos hoje muito mais meios, mais recursos humanos e técnicos, mais organização e mais conhecimento. Enfrentamos esta fase de crescimento dos números com confiança e preocupação, mas com a consciência que conseguimos reforçar a capacidade laboratorial, de medicina intensiva, dos recursos humanos e os métodos de organização de trabalho ao nível da saúde pública e integração de outras áreas”, afirmou a ministra em declarações à RTP1.
Na região de Lisboa e Vale do Tejo, a mais preocupante neste momento, 300 das 500 camas reservadas à Covid-19 estão ocupadas. Mas “são 300 das 500 que fazem parte das sete mil”, relativizou a ministra: “Temos esta capacidade de ir adaptando as respostas àquilo que são as necessidades de cada momento”, garantiu. Além disso, espera-se um “reforço das linhas telefónicas, reforço da capacidade de atendimento, garantir que as pessoas têm uma voz do outro lado que as atende”. “Perdemos atividade presencial, mas melhoramos este nível de resposta”, disse Marta Temido, avançando que já foram concretizadas três milhões de consultas não presenciais.
As mudanças que o SNS vai sofrer quando comparado ao funcionamento verificado na primeira vaga estão descritas no Plano da Saúde para o Outono/Inverno, publicado no início da semana. Depois de o SNS ter sido direcionado para o controlo da epidemia provocada pelo novo coronavírus, agora espera-se um regresso à atividade não-Covid-19.
Por exemplo, as Áreas Dedicadas à Covid-19 vão ser convertidas em Áreas Dedicadas aos Doentes Respiratórios, recebendo não só doentes de Covid-19 como utentes com outras doenças do foro respiratório, incluindo a gripe sazonal provocada pelo vírus influenza. E está a ser criada um grupo de trabalho para a prestação de cuidados de saúde a utentes que não padeçam de Covid.
Outros medidas incluem o reforço no stock e nas reservas de medicamentos, dispositivos médicos, equipamentos de proteção individual (como máscaras, por exemplo) e testes laboratoriais. O Remdesivir é um dos medicamentos que será adquirido em maiores quantidades para ser utilizado no tratamentos de doentes de Covid-19, mas o plano também tinha novidades sobre outros fármacos: a campanha de vacinação contra a gripe sazonal vai ser antecipada para o final de setembro e deverá chegar a mais gente, incluindo a grávidas.
Das vacinas aos testes rápidos, os planos da DGS para o outono e o inverno
Em cima da mesa está ainda a utilização de testes com resultados em menos de 60 minutos e outros com resultados disponíveis em 24 horas, mas apenas perante uma escassez de recursos e em surtos em lares ou escolas. Uma outras das novas medidas é o aconselhamento para a utilização de máscara na rua sempre que não for possível garantir o distanciamento físico de dois metros.
Porque é que não vamos confinar desta vez?
Em conversa com o Observador, Ricardo Mexia considerou que o país não vai estar sujeito ao mesmo nível de restrições do pico da epidemia em abril porque agora “conhecemos melhor a doença”: “Não temos vacina nem uma terapêutica eficaz, mas temos uma resposta melhor na gestão dos casos e na capacidade de diagnóstico. Temos mais medidas de contenção, como a utilização de máscara e desinfetante, e uma nova dinâmica nas atividades em grupo”.
O médico especialista em saúde pública recorda que, no início da epidemia, o confinamento teve por objetivo “comprar tempo” para “conhecer melhor a doença”, “preparar o sistema nacional de saúde” e “evitar um assoberbamento do SNS com os casos de Covid-19 que necessitassem de acompanhamento hospitalar”.
Agora, a dinâmica da doença mudou: a maior parte dos infetados são jovens sem comorbilidades. “A maior parte deles não vai necessitar de tantos cuidados” como os idosos, mais expostos ao vírus no início da epidemia em Portugal. Há seis meses “não havia outra solução”, defende Ricardo Mexia.
Mas isso pode não tardar a mudar. Os relatórios de situação da DGS provam que o número de internamentos sempre acompanhou a evolução do número de novos casos de Covid-19: quando os infetados aumentam, os internamentos (inclusivamente em cuidados intensivos) também sobem. Atualmente, e apesar de os infetados serem essencialmente pessoas jovens e saudáveis, os internamentos têm aumentado desde finais de agosto. Esta sexta-feira, por exemplo, foram contabilizados tantos internamentos quanto os verificados em maio.
Isto não surpreende o presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública: “Sempre houve alguma demora entre o momento entre o registo dos casos positivos e a necessidade de cuidados hospitalares. O desfasamento no tempo deve-se à evolução da própria doença, que apenas se agrava alguns dias depois da infeção. Por isso é que os números já estão a aumentar há algum tempo, mas só agora se nota um aumento de casos a necessitar de acompanhamento hospitalar”.
Daí que Ricardo Mexia diga que um novo confinamento é possível: “Um aspeto que não podemos ignorar é que, se a situação se agravar ao ponto de o sistema nacional de saúde ficar assoberbado, não teremos muitas alternativas senão confinar novamente. É a linha vermelha para uma decisão desse género”, conclui.