O que o denunciante diz sobre os atos de Trump

Excertos do registo oficial da queixa

No decorrer das minhas funções oficiais, recebi informações de vários funcionários do executivo dos EUA que diziam que o Presidente dos Estados Unidos está a usar o poder do seu cargo para solicitar a interferência de um país estrangeiro nas eleições de 2020 dos EUA.

O denunciante que está por detrás deste relatório é, até ao momento, anónimo. Sobre a sua identidade, sabe-se apenas que trabalha para um ramo das secretas norte-americanos — ao The New York Times, três fontes dizem que é um funcionário da CIA que foi, a certa altura, destacado para a Casa Branca. A queixa divulgada esta quinta-feira, 26 de setembro, foi submetida a 12 de agosto deste ano. Está endereçada a duas pessoas do Congresso: o presidente do Comité de Serviços Secretos do Senado, o republicano Richard Burr; e o presidente do Comité de Serviços Secretos da Câmara dos Representantes, o democrata Adam Schiff.

Não fui testemunha direta da maior parte dos acontecimentos descritos [na queixa]. Ainda assim, acredito que as descrições que os meus colegas fazem dos acontecimentos são credíveis porque, na maior parte dos casos, vários funcionários do executivo demonstraram padrões factuais que eram consistentes com os outros relatos.

Este é um trabalho de recolha de informações por parte do denunciante, que não esteve presente nos momentos-chave descritos. O whistleblower já foi chamado a depor nas comissões de investigação montadas pela Câmara dos Representantes, onde a speaker Nancy Pelosi (democrata) deu ordem de início ao processo de impeachment. Desta forma, uma vez que a queixa do denunciante recai no relato de várias pessoas, é muito provável que estas venham a ser requisitadas para também deporem.

No início da manhã de 25 de julho, o Presidente falou ao telefone com o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Não sei quem fez a chamada. Esta foi a primeira chamada entre os dois líderes, desde uma breve chamada congratulatória após o Sr. Zelensky ter vencido a presidência, a 21 de abril.”

Os dois líderes demoraram mais de três meses para estabelecerem contacto direto — um período de hesitação que será abordado mais à frente na queixa do denunciante. timing da chamada é curioso: na véspera, 24 de julho, o procurador especial Robert Mueller, encarregado de investigar o alegado conluio entre a campanha de Donald Trump e a Rússia durante a campanha de 2016, testemunhou em dois comités da Câmara dos Representantes. Ali, repetiu o que o seu relatório, divulgado a 29 de maio, já dizia: que, ao contrário do que Donald Trump disse, “o relatório não conclui que o Presidente cometeu um crime, embora também não o exonere”; mas que seria “inconstitucional” acusar um “Presidente em funções”. Naquele dia, Trump sugeriu no Twitter que era preciso “investigar os investigadores”, acusando “os democratas e outros” de “inventarem ilegalmente um crime e tentarem colá-lo a um Presidente muito inocente”.

Os funcionários da Casa Branca que me deram esta informação estavam profundamente perturbados como que tinha saído daquela conversa de telefone. Disseram que já estava a “decorrer uma discussão” com os advogados da Casa Branca sobre como abordar aquela chamada por causa da probabilidade, segundo recordam esses funcionários, de terem testemunhado o Presidente a utilizar indevidamente o seu cargo para ganhos pessoais.

Depois de fazer uma descrição dos conteúdos da chamada — em que Donald Trump pede a Volodymyr Zelensky que seja investigada a passagem do filho de Joe Biden na Ucrânia; que se descubra se o Comité Nacional Democrata teve servidores montados na Ucrânia; e que as mais altas autoridades ucranianas entrem em contacto com o advogado de Donald Trump, Rudolph Giuliani, e o procurador-geral dos EUA, William Barr —, o denunciante refere que o telefonema foi discutido na Casa Branca e que, lá dentro, aperceberam-se das consequências que este podia ter. Mais à frente no relatório, o denunciante especifica que a chamada foi “ouvida” por “aproximadamente uma dúzia de funcionários da Casa Branca”. Além destes, também Ulrich Brechbuhl, alto funcionário do Departamento de Estado, terá “ouvido” a conversa.

Funcionários da Casa Branca disseram-me que tinham sido “instruídos” pelos advogados da casa Branca para retirarem a transcrição eletrónica do sistema informático em que essas transcrições são, geralmente, guardadas para fins de coordenação, finalização e distribuição a ministros. Em vez disso, a transcrição foi colocada num sistema eletrónico separado que é utilizado para armazenar e lidar com informação classificada de uma natureza sensível.”

As chamadas telefónicas dos presidentes norte-americanos não são, por norma, gravadas, desde o tempo de Richard Nixon. A partir desse momento, por razões de segurança, as gravações foram substituídas por transcrições verbatim das conversas. Estas ficam a cargo de pessoas empregadas para esse efeito — não são escolhidas politicamente e têm, por norma, uma carreira militar ou na área da segurança nacional, diz o Washington Post. Mais recentemente, estes anotadores trabalham com o auxílio de um software que transcreve em tempo real as palavras do Presidente — mas que não as grava. Existem, porém, dúvidas quanto à fiabilidade daquelas transcrições: ao mesmo jornal, um antigo funcionário da Casa Branca diz que as transcrições são, depois de entregues por aqueles funcionários, “altamente editadas pela liderança política do Conselho de Segurança Nacional”.

Soube junto de vários funcionários do governo dos EUA que, a 2 de agosto ou por volta desse dia, o Sr. Giuliani, alegadamente, viajou para Madrid para se encontrar com um dos conselheiros do Presidente Zelensky, Andriy Yermak. Os funcionários descreveram esta reunião, que não foi referida em público à altura, como um “follow-up direto” da chamada do Presidente com o Sr. Zelensky sobre os “casos” que eles tinham discutido.”

O encontro de Rudolph Giuliani com Andriy Yermak viria a ser confirmado por ambos, em diferentes declarações aos media. Rudolph Giuliani chegou a dizer que teve cerca de cinco encontros com aquele amigo e conselheiro do Presidente ucraniano — o Wall Street Journal refere que houve oito instâncias de pressão entre Donald Trump e os seus mais próximos junto do Presidente da Ucrânia e o seu círculo de confiança. Ao The New York Times, a 21 de agosto, Rudolph Giuliani disse que “instou veementemente” que Andriy Yermak “investigasse o raio daquelas coisas”. Acrescentou ainda que, depois dos seus contactos com o conselheiro do Presidente ucraniano, estava “bastante confiante de que eles vão investigar”.

Na sua multitude de declarações públicas antes da publicação do artigo [do The New York Times, de 9 de maio, onde se lia que o advogado de Donald Trump estava a investigar os assuntos relacionados com a Ucrânia], o Sr. Giuliani confirmou que estava empenhado em motivar as autoridades ucranianas a investigarem a alegada interferência da Ucrânia nas eleições de 2016 e alegadas irregularidades da família de Biden.”

O denunciante descreve nesta parte os esforços feitos por Rudolph Giuliani durante todo este processo. Os timings em questão, entre acontecimentos referidos pelo whistleblower e outros que aqui juntamos, surgem em cascata. A 25 de março, o procurador-geral dos EUA emite uma apreciação do relatório de Robert Mueller no qual refere que iliba Donald Trump no caso da Rússia. No final de março, começam a sair vários artigos no site The Hill (aqui, aqui e aqui) em que é dito que o então procurador-geral ucraniano, Yuriy Lutsenko, tinha informações comprometedoras para Joe Biden e para a sua família. A 31 de março, Volodymyr Zelensky vence a primeira volta das eleições ucranianas com 30,24% e é dado como favorito para ganhar a segunda volta. A 7 de abril, Rudolph Giuliani diz na Fox News que Joe Biden incorreu em irregularidades relacionadas com a Ucrânia, durante o tempo em que foi vice-Presidente. A 21 de abril, Volodymyr Zelensky vence as eleições ucranianas. A 25 de abril, Joe Biden anuncia que é candidato às eleições presidenciais, tendo, primeiro, de vencer as primárias democratas. No dia 1 de maio, o The New York Times escreve que Giuliani está a investigar a questão ucraniana.  A 6 de maio, o Departamento de Estado anuncia que a embaixadora Marie L. Yovanovitch vai terminar as suas funções como embaixadora dos EUA na Ucrânia. A 9 de maio, o mesmo jornal diz que o advogado de Donald Trump cancelou uma viagem à Ucrânia, mas admitiu as suas ações seriam “intrometer-se numa investigação” de maneira a “dar-lhes [aos ucranianos] razões para não a pararem”. A 10 de maio, Trump diz que é “apropriado” pedir ao procurador-geral William Barr para abrir uma investigação contra o filho de Joe Biden. A 14 de maioRudolph Giuliani diz, numa entrevista, que a embaixadora Yovanovitch foi “afastada” por ser “parte dos esforços contra o Presidente”.

A partir de meados de maio, vários funcionários do executivo dos EUA disseram-me que estavam profundamente preocupados com o que entendiam ser o Sr. Giuliani a contornar o processo de decisão [do órgãos] de segurança nacional, para entrar em contacto com funcionários do executivo ucraniano e passar mensagens de trás e para a frente, entre Kiev e o Presidente.”

Embora o denunciante não entre em detalhes quanto a este aspeto, o facto é que sobram dúvidas sobre o registo em que Rudolph Giuliani trabalhou para Donald Trump em todo este processo. A única ligação que Giuliani tem ao Presidente é o facto de ser seu advogado pessoal — de resto, não é funcionário nem da Casa Branca nem de nenhuma agência governamental dos EUA. No entanto, a qualidade em que viajou para a Ucrânia, falou com altos cargos daquele país e devolveu a informação ao Presidente dos EUA é incerta — pelo menos a julgar pelas declarações do próprio. A 9 de maio, em declarações ao The New York Times, disse que “basicamente [Donald Trump] sabe o que estou a fazer, claro, enquanto seu advogado”. Já a 19 de setembro, depois de ser noticiado que a Casa Branca estava a tentar impedir a divulgação do conteúdo da queixa do denunciante, Rudolph Giuliani foi à CNN e, quando questionado se Trump sabia o que ele estava a fazer, respondeu: “Não… Fiz tudo por mim mesmo e depois contei-lhe”. Porém, à Fox News, esta segunda-feira, 23 de setembro, já disse que só falou com “executivos do governo ucraniano” depois de o Departamento de Estado lhe ter ligado “a pedir para fazê-lo”.

Vários funcionários do executivo dos EUA disseram-me que a liderança ucraniana foi levada a crer que só haveria uma chamada ou um encontro entre o Presidente e o Presidente Zelensky caso Zelensky demonstrasse vontade para “ir à bola” em relação aos assuntos que tinham sido publicamente referidos pelo Sr. Lutsenk e o Sr. Giuliani.”

É neste período que a Casa Branca passa a dar um tratamento de silêncio à presidência ucraniana, explica o denunciante. Esse período coincidiu com  cancelamento, a 14 de maio, da viagem do vice-Presidente, Mike Pence, para a tomada de posse de Volodymyr Zelensky, a 20 de maio. A 13 de junho, entrevistado por George Stephanopoulos, da ABC, Donald Trump disse que estaria disposto a “ouvir” informação sobre um adversário mesmo que esta fosse fornecida por um país estrangeiro. “Se alguém ligasse de um país, a Noruega, [e dissesse] ‘temos informações sobre o seu adversário’… bom, acho que quereria ouvi-la”, disse Trump à altura.

Em meados de julho, soube de uma alteração repentina da política de assistência dos EUA à Ucrânia.”

Esta é a frase final do relatório do denunciante e é uma das pontas soltas deste caso. O que se sabe é que Donald Trump decidiu pessoalmente congelar um total de 391 milhões de dólares destinados a serem enviados para a Ucrânia e utilizados para combater os separatistas pró-Rússia no Leste do país — uma interrupção na ajuda financeira que foi decidida no início de julho. Nesse mês, mais tarde, Trump teria a conversa telefónica com Volodymyr Zelensky, onde essa quantia ou qualquer empréstimo não foram discutidos. Mais tarde, já a 11 de setembro, o Presidente decidiu desbloquear aquela quantia — mas só depois da pressão de republicanos e democratas nas duas câmaras do Congresso. Por essa altura, o relatório do denunciante já tinha sido submetido há quase um mês e, dias depois, sairiam as primeiras notícias que apontavam para os alegados esforços da Casa Branca para manterem esses documentos secretos.