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A acentuada redução do número de casos de gripe sazonal identificados pelas autoridades de saúde não apanharam ninguém de surpresa. Nem em Portugal, nem no resto da Europa. Quando o mundo enfrentava os primeiros meses da pandemia de Covid-19, o hemisfério sul estava em pleno inverno e já combatia o vírus da gripe, mas nos países-sentinela da Organização Mundial da Saúde (OMS) — Austrália, Chile e África do Sul — a percentagem de pessoas que testaram positivo foi de apenas 0,06%. Entre abril e junho de 2017 a 2019 tinha sido de quase 14%.
Como é costume, a atividade gripal vivida antes pelos nossos antípodas repete-se agora nesta metade do mundo. Em Portugal, ela também está a ser “esporádica”, classificou o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA). Os boletins de vigilância epidemiológica que têm sido publicados todas as quintas-feiras desde a primeira semana de outubro revelam que, até à segunda semana de 2021, só nove casos de síndrome gripal tinham sido notificadas às autoridades de saúde pela rede de médicos sentinela. O número real de casos, no entanto, pode ser superior.
Nem mesmo o frio, que se fez sentir de forma contínua ao longo de vários dias e costuma potenciar os casos de gripe, parece ter impactado significativamente a transmissão pelo vírus influenza. As últimas indicações do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) notam que a semana passada foi a quarta consecutiva com um valor médio da temperatura mínima do ar inferior ao normal para o mês de janeiro. Metade das deteções de gripe ocorreram na primeira dessas quatro semanas. Desde então, só foi confirmado mais um outro caso.
Francisco Antunes, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, explicou o motivo ao Observador: como os vírus da gripe e da Covid-19 se transmitem e afetam pelas vias respiratórias, as medidas de saúde pública implementadas para atenuar a transmissão do SARS-CoV-2 — a utilização de máscara, o distanciamento físico, a redução dos aglomerados, entre outras — atenuaram também a propagação dos vírus influenza. Foi também isto que escreveu no livro “Gripe e Covid-19, a tempestade perfeita?”.
O infecciologista acredita que uma medida em particular pode ter sido importante para puxar a epidemia de gripe para níveis anormalmente baixos, mesmo nos países do hemisfério sul que cumpriram com menos afinco as regras de restrição: as limitações às viagens. Como houve menos movimentação de pessoas pelo mundo, o vírus da gripe teve menos oportunidade se espalhar e proliferar do inverno do hemisfério sul para o inverno do hemisfério norte.
Outro aspeto que pode ter tido um especial impacto na redução da atividade gripal em Portugal foi o facto de mais gente ter sido vacinada contra a gripe — um esforço das autoridades de saúde detalhado no Plano da Saúde para o Outono-Inverno 2020-2021 publicado em setembro pela Direção-Geral da Saúde (DGS). Houve vários apelos para que isso acontecesse pelas autoridades de saúde (quem não se lembra da imagem do próprio Presidente a ser vacinado) e o medo da Covid por parte dos doentes levou a uma maior procurado, levando mesmo a que as vacinas se esgotassem numa primeira fase. Todos estes fatores fizeram com que, até agora, a gripe não se tenha tornado epidémica e continue em níveis basais. Em anos anteriores, estaríamos agora a passar pelo seu pico.
Baixar a transmissão do coronavírus para 0,9 exige o dobro do que na gripe
Tudo se resume a um termo matemático, próprio da epidemiologia, que entrou no léxico dos portugueses quando a Covid-19 se tornou pandémica: o número básico de reprodução (R0), ou seja, a quantidade de pessoas que alguém infetado por um agente patogénico pode contagiar. De acordo com os cálculos mais recentes da comunidade científica, num mundo sem as medidas de saúde pública em vigor, o número de reprodução da Covid-19 rondaria 2,5; e o número de reprodução para a gripe 1,3.
Ou seja, se voltássemos à realidade pré-pandémica, 100 pessoas infetadas pelo coronavírus conseguiriam contagiar outras 250 e 1.000 infetados produziriam mais 3.000 casos. No caso da gripe, 100 infetados originariam outros 130 e 1.000 engripados infetariam mais 1.300 pessoas. Em suma, em condições normais, o SARS-CoV-2 já teria uma maior capacidade de transmissão do que o vírus da gripe, o que significaria que a Covid-19 já teria um maior impacto para a saúde pública do que a gripe.
Mas as regras mais básicas de proteção, como a utilização de máscaras, o distanciamento físico, a desinfeção regular das mãos; e as medidas mais pesadas como o confinamento obrigatório e adoção do teletrabalho contribuem para diminuir o R tanto de uma patologia como da outra, uma vez que ambas se transmitem pelas mesmas vias. Por isso, como a gripe já tem um R0 mais baixo do que a Covid-19, as medidas de saúde pública em vigor têm mais impacto na primeira.
De acordo com os cálculos de Carlos Antunes, engenheiro da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que tem monitorizado a evolução epidemiológica da Covid-19, a utilização de máscaras, o distanciamento físico e a desinfeção das mãos tiveram um impacto de 37,5% no R0 da Covid-19 na primeira vaga, que baixou de 1,6 para 1 em dez dias.
Assumindo o mesmo impacto no caso da gripe, o R do vírus baixou para 0,81. Mas bastava que a diminuição fosse de cerca de 31% para ficar nos 0,9 e extinguir paulatinamente a epidemia. É que sempre que o número básico de reprodução está acima de 1, o número de novos casos cresce exponencialmente; mas sempre que está abaixo de 1, a epidemia baixa também exponencialmente. Quando permanece em 1, a epidemia entra em planalto e os novos casos são mais ou menos constantes.
No caso da Covid-19, assumindo o R0 calculado em 2,5, o impacto teria de ser de 64% para alcançar um R de 0,9 — ou seja, mais do dobro do que na gripe. Isto significa que é preciso muito mais para que o número de novos casos de Covid-19 não continue a crescer de dia para dia (mesmo que mais devagar); e que o esforço para que o número de novos casos de gripe baixe até ao desaparecimento é muito inferior.
Menos pessoas em observação pode comprometer monitorização da gripe
O último boletim do INSA aponta que a taxa de incidência de síndrome gripal na semana de 11 a 17 de janeiro (o relatório mais recente disponibilizado na página da instituição) foi de 34,05 por cada 100 mil habitantes numa amostra de 26.435 indivíduos. Duas coisas condicionam a interpretação que se pode retirar destes dados: o número de pessoas sob observação é inferior ao normal e a capacidade de testagem ao vírus da gripe foi condicionada por causa da pressão que a Covid-19 exerceu sobre os laboratórios e hospitais.
Isso mesmo é admitido nos documentos publicados ao longo desta época gripal: “Este valor deve ser interpretado tendo em conta que a população sob observação foi menor do que a observada em período homólogo de anos anteriores”, avisa o INSA, alertando mais tarde que a pandemia afetou o modo de funcionamento dos serviços de saúde e a capacidade de testagem na região europeia da Organização Mundial de Saúde, o que “poderá ter impacto na notificação clínica e laboratorial de casos de gripe”.
O alerta é repetido no site Flu News Europe, um projeto da OMS e do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) para partilhar atualizações sobre a gripe. Na segunda semana do ano, altura em que a época gripal já deveria estar estabelecida, a página também dizia que a atividade gripal prosseguia num “nível muito baixo”, “apesar dos testes regulares e generalizados para o influenza“. E aponta o dedo à Covid-19: a pandemia “afetou os comportamentos de busca por cuidados de saúde, prestação de cuidados; e práticas e capacidade de testagem”.
Em entrevista ao Observador, Ana Paula Rodrigues, coordenadora da rede de médicos-sentinela e médica de saúde pública do Departamento de Epidemiologia do INSA, explica que a reorganização do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em função da pandemia teve impacto na forma como a gripe é monitorizada em Portugal — e que se mantém quase inalterada há três décadas. Agora, os doentes com suspeita de doença respiratória passam pela triagem à entrada dos hospitais e centros de saúde; e não têm a consulta normal com os médicos de família, alguns dos quais são sentinelas para os casos de gripe.
Os testes ao vírus influenza não costumam ser o principal método para diagnóstico de uma gripe: antes da Covid-19, na maior parte dos casos bastava uma vigilância clínica para identificar a doença de acordo com os sintomas relatados pelo doente. Mas com o SARS-CoV-2 em circulação, um vírus que se expressa com sintomas semelhantes aos da gripe, isso pode não bastar. Por isso é que em fevereiro, no início da epidemia, fizeram-se mais testes para despistar casos de gripe e de Covid-19.
Em entrevista ao Observador, Pasi Penttinen, diretor do programa de vigilância da gripe e de outros vírus respiratórios no ECDC, já tinha sublinhado que, como os sintomas que diferenciam a gripe da Covid-19 são tão poucos, não havia outra maneira de diagnosticar uma e outra a não ser com mais exames laboratoriais. Para ele, era necessário reforçar a testagem laboratorial de casos de gripes e “fazer uma preparação prévia no sistema de vigilância em geral”. Sai caro, sim, mas seria o preço a pagar para não sobrecarregar ainda mais o SNS.
Mas há mais: segundo Pasi Penttinen, a ausência de casos de infeção pelo vírus influenza no hemisfério sul — e agora possivelmente também no norte do globo — também “pode ser porque as pessoas que estão doentes não têm acesso aos prestadores de cuidados de saúde no meio da pandemia de Covid-19”, apontou. “Ou pode ser que os sistemas de vigilância estejam tão sobrecarregados e focados na Covid-19 que não estejam a recolher informações adequadas sobre a gripe”. Mas na Austrália, por exemplo, a questão não terá sido essa: as autoridades de saúde garantiram que realizaram testes para a identificação do vírus durante a época gripal do hemisfério sul, mas que simplesmente não o encontraram.
Em Portugal, a mesma coisa. Ana Paula Rodrigues explicou que, como não se estava a observar e medir os síndromes gripais da mesma forma, o INSA arranjou uma alternativa para colmatar o problema: começou a testar para a gripe e outros vírus respiratórios algumas amostras recolhidas nas áreas de atendimento para doentes respiratórios. Ainda assim, mesmo contando com uma redução da população sob observação (que pode desvirtuar a interpretação dos dados), os números da gripe continuavam anormalmente baixos.
Ainda assim, a médica de saúde pública do INSA sublinha que, como o sistema de monitorização mudou, os dados recolhidos nesta época gripal não são completamente comparáveis aos registados em anos anteriores. “Só o facto de dizermos às pessoas que procurem o SNS se tiverem febre ou tosse, induzimos que pessoas que de outra forma não iriam ao centro de saúde o façam para serem testadas. É como medir a mesma coisa com duas réguas diferentes“, exemplificou Ana Paula Rodrigues.
Tipo de vírus predominante em Portugal tende a ser menos grave
Nos países do hemisfério norte onde a Covid-19 chegou primeiro e as autoridades e saúde reagiram mais cedo, o efeito das medidas fizeram-se sentir logo em janeiro do ano passado, durante a última época gripal. Em janeiro de 2020, Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas avisou que aquela podia ser uma época tão ou mais severa que a registada dois anos antes — e que foi a mais letal em mais de 40 anos. Mas os números baixaram abruptamente quando foram instituídas medidas contra a Covid-19.
Em Portugal, a Covid-19 chegou quando a época gripal já tinha atingido o pico e entrava na reta final da epidemia. Desde a semana em que foi imposto o primeiro confinamento obrigatório até à vigésima semana do ano, de 11 a 17 de maio, o INSA estimou sempre uma taxa de incidência da gripe por 100 mil habitantes de 0,0. É possível que, também por cá, as medidas de restrição tenham evitado flutuações nesta métrica: com a mobilidade da população em níveis historicamente baixos, o vírus da gripe também não teve oportunidade de se propagar.
Mas será essa a única explicação para uma nova época gripal praticamente sem infetados pelo influenza, um vírus que chega a provocar entre três e cinco milhões de quadros clínicos severos e a matar até 650 mil pessoas em todo o mundo? Questionada sobre se os vírus da gripe em circulação este ano podem ter uma bioquímica diferente que lhes confere menos capacidade de transmissão, infeção e letalidade, Ana Paula Rodrigues explica que o tipo de vírus em circulação pode realmente ter algo a ver com a baixa atividade gripal.
Há três tipos de vírus influenza: o tipo A e o tipo B são os predominantes, mas o primeiro é o único capaz de provocar pandemias — por um lado porque possui reservatórios em animais, por outro porque essas pandemias são o resultado de mudanças genéticas maiores que dão origem a vários subtipos. Esses subtipos dependem da glicoproteína na superfície do vírus — a chave que tem como função interagir com o recetor da célula hospedeira. Já os vírus do tipo B são menos comuns, causam sintomas mais leves e doenças menos graves que os do tipo A.
Ao Observador, Ana Paula Rodrigues confirmou que a maioria dos (poucos) casos de gripe confirmados laboratorialmente são do tipo B, que tende a infetar mais facilmente os mais jovens — menos suscetíveis a desenvolverem quadros clínicos severos — e que habitualmente provocam infeções menos graves. Nem sempre é assim, ressalva a médica de saúde pública, mas parte da resposta para a época gripal mais suave pode estar nestas características.
O mais recente relatório do ECDC, publicado em dezembro, indica que 50% dos 415 casos de gripe detetados na região europeia da OMS (um decréscimo de 98% de deteções em relação ao mesmo período do ano passado) eram do tipo A e outros tantos eram do tipo B — algo que também já tinha acontecido por esta altura em 2017, época em que o vírus do tipo B acabou por ser o predominantemente detetado em Portugal e deu origem a uma atividade gripal de intensidade “baixa a moderada”.
Na época gripal seguinte, entre o fim de 2018 e o início de 2019, o ECDC estimou que 97,7% das deteções eram do tipo A, enquanto 2,3% eram do tipo B; em Portugal, o INSA revelou que o vírus da gripe A foi o predominante durante todo o período epidémico e que a atividade gripal foi de intensidade moderada. Em 2019/2020, o ECDC inscreveu em dezembro que 85% das deteções foram do tipo A e 15% do tipo B; e o INSA publicou mais tarde que a atividade gripal também foi de intensidade moderada.
Casos raros de gripe podem dificultar estudos sobre vacinas do próximo inverno
O menor impacto da gripe durante a pandemia foi uma vantagem para o SNS, que já está em situação de pré-rutura por causa dos casos mais graves de Covid-19. E foi verdadeiramente um alívio para as autoridades de saúde, que chegaram a temer as dificuldades de gerir uma “epidemia dupla”, como lhe chamou Francisco Antunes. Desde outubro até agora, apenas dois casos de gripe necessitaram de acompanhamento em unidades de cuidados intensivos. Nenhum deles terá resultado na morte dos doentes.
Mas o sucesso deste ano pode dificultar a tarefa de descobrir que vírus é que as vacinas da época 2021/2022 devem proteger. Um dos aspetos tomados em consideração pela OMS para determinar a composição das vacinas é a informação nos dados de vigilância dos países, que monitorizam as estirpes que estão em circulação, onde é que elas já foram identificadas, os índices de transmissibilidade que têm, a severidade da doença que induzem e a eficácia das vacinas distribuídas no passado.
Ana Paula Rodrigues confirma que a baixa notificação de casos de gripe e a qualidade inferior dos dados sobre ela “colocam problemas importantes” na escolha das estirpes que devem entrar na composição das vacinas do próximo inverno: “As estirpes que circularam nos invernos anteriores são informações importantes para as escolhas das estirpes para a vacina”, confirma a médica. Mas há formas de contornar o problema: há modelos matemáticos para prever o comportamento da doença; e a realização de estudos serológicos podem revelar a que tipo de estirpes a população está mais imunes.
Outros dados levados em conta têm a ver com as características bioquímicas do vírus (por exemplo, que tipo de proteína é que ele utiliza para se ligar aos recetores das células), uma vez que isso determina os anticorpos que o organismo deve produzir após a vacinação e que, perante uma exposição natural ao vírus, devem ser recrutados para neutralizar o agente patogénico. Além disso, a receita para a vacina envolve um estudo da evolução genética dos vírus, de modo a detetar mutações importantes para a funcionalidade deles.