Constança Braddell, a jovem que despertou as redes sociais e a sociedade para o problema da fibrose quística, está internada nos cuidados intensivos há quase duas semanas “com um prognóstico incerto e muito reservado”, conforme partilhou a família, pela mesma via que Constança usou para falar do seu estado de saúde, da esperança no novo medicamento e das notórias melhorias.
A irmã, Vera Marques, disse ao Correio da Manhã e à SIC que o agravamento do estado de saúde aconteceu depois de ter surgido um pneumotórax — quando o ar se escapa e fica entre os pulmões e a parede torácica, pressionando os órgãos e dificultando a respiração. O pneumotórax pode ser causado por um acidente, uma doença crónica ou a origem não ser identificada.
A família de Constança Braddell diz, no Instagram, que a “situação é de extrema gravidade”, não conseguindo dar mais informações. Ao Observador, especialistas explicam o que comummente conduz ao agravamento súbito do estado de saúde de um doente com fibrose quística e que papel pode ter o tratamento inovador que a jovem estava a tomar para impedir ou potenciar esta situação.
Constança Braddell internada nos cuidados intensivos em “estado muito grave”
Como evoluiu o estado de saúde de Constança Braddell?
Nos últimos quatro meses foi possível acompanhar a evolução da doença que acompanhava Constança Braddell há 24 anos, desde que nasceu, mas cuja manifestação se agravou desde setembro de 2020. “Perdi 13kg no espaço de 3 meses e estou ligada a oxigénio 24/7, e a um ventilador não invasivo para dormir porque é a única maneira de eu conseguir continuar a respirar”, escreveu a jovem no dia 5 de março. Ao mesmo tempo pedia ajuda: “Não quero morrer, quero viver!!!”
Apesar das dificuldades no acesso ao medicamento, bastou um mês para que Constança começasse a partilhar no Instagram o sucesso do tratamento que acreditava lhe poderia salvar a vida. “Sinto me tão feliz por me ter sido dada uma segunda oportunidade de viver, nunca imaginei que em tão pouco tempo me sentiria tão bem”, escreveu a 6 de abril.
Inesperadamente, porém, a jovem encontra-se novamente hospitalizada em estado muito grave, depois de “uma sucessão de complicações do ponto de vista clínico”. Algo “nunca antes ocorrido no seu panorama clínico”, conta a família.
Qual a relação do pneumotórax com os doentes com fibrose quística?
Vera Marques disse ao Correio da Manhã que, na altura das declarações, ainda não se conheciam as causas do pneumotórax da irmã Constança Braddell, mas que “não se pode atribuir somente à fibrose quística”. As causas de um pneumotórax são variadas, mas é mais comum nos doentes com fibrose quística do que na população saudável — 5% vai ter um pneumotórax pelo menos uma vez e muitos vão ver a situação repetir-se.
Os doentes com fibrose quística têm vários fatores de risco que podem levar à inflamação, enfraquecimento e rutura da pleura — a membrana que reveste o espaço entre os pulmões e a parede torácica —, diz o pneumologista Carlos Robalo Cordeiro. A pressão mecânica associada à dificuldade em respirar, o ar que fica retido e faz dilatar os alvéolos pulmonares, as pequenas bolhas de ar que se formam entre os pulmões e pleura (e que podem rebentar) são alguns dos exemplos. Outro, diz, é a ventilação mecânica invasiva (quando os doentes são entubados).
A evolução de um doente com fibrose quística é sempre imprevisível”, diz o pneumologista Carlos Robalo Cordeiro.
“O pneumotórax acontece subitamente”, diz o diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. E o o agravamento da doença também pode ser “súbito e inesperado”, acrescenta. Isto porque, muitos destes doentes têm colónias permanentes de bactérias nos pulmões que, de um momento para o outro, podem causar uma infeção — que também é fator de risco para o pneumotórax.
Outros fatores que podem agravar o estado de saúde de um doente com fibrose quística?
O estado avançado da doença de Constança Braddell, como de outros doentes, pode deixar sequelas com repercussões graves no futuro. Isto, só por si, pode levar a um agravamento da doença. Sem conhecer em concreto a situação de saúde atual da jovem, Margarida Amaral, investigadora na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, explica os diversos cenários frequentes nestes doentes, como as infeções pulmonares e a falência renal.
A acumulação de muco espesso no interior dos pulmões (característica da doença), faz com que as poeiras e bactérias fiquem retidas. Se uma pessoa saudável consegue tossir e assoar-se para se libertar de muco e impurezas, os doentes com fibrose quística não conseguem fazê-lo sem ajuda — fisioterapia e medicamentos. As bactérias acumuladas no muco podem causar infeções, que serão tratadas com antibióticos, mas as infeções frequentes podem aumentar a resistência das bactérias aos medicamentos, dificultando o tratamento.
Além disso, um desequilíbrio nos sais minerais em circulação no organismo, que permitem que a água entre e saia das células, pode conduzir a problemas renais graves. No caso dos doentes com fibrose quística podem acontecer quando a pessoa foi exposta a muito calor ou exercício físico intenso. Impactos destes podem acontecer até com pessoas saudáveis, tal como se viu no caso da dura recruta dos Comandos.
Para agravar, o baixo índice de massa corporal é um fator de risco para o agravamento da situação clínica de doentes com fibrose quística e outras doenças respiratórias, daí que os doentes tenham de manter uma dieta mais calórica.
O medicamento pode levar a um agravamento do estado de saúde?
Além das condições de saúde do doente, há riscos associados ao próprio medicamento. Apesar de se ter mostrado seguro e bem tolerado nos ensaios clínicos, pode ter efeitos negativos em algumas pessoas, coisa que só se vai perceber à medida que o medicamento for sendo mais usado, explica Nuno Vale. Como exemplo, basta pensar no que aconteceu com os efeitos secundários raros associados às vacinas contra a Covid-19.
O investigador na área da Farmacologia lembra que este medicamento combina três fármacos diferentes — o que não é muito comum — e que basta um deles ter um efeito indesejável no organismo para o doente ficar numa situação clínica grave. Especialmente alguém como Constança e outros doentes que só tiveram acesso ao tratamento numa fase avançada da doença e quando já estavam muito fragilizados.
Para um medicamento ter o efeito pretendido é preciso que seja absorvido pelo organismo e metabolizado — transformado em algo que o organismo consiga usar. Isto, à partida, terá acontecido, a julgar pelos efeitos benéficos reportados pela doente, diz investigador do Cintesis (Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde).
O que não se sabe é se a degradação dos fármacos e produtos resultantes aconteceu corretamente ou se estes resíduos estavam a ser convenientemente eliminados do organismo. A acumulação, nem que fosse de um dos fármacos, poderia ser o suficiente para causar um efeito tóxico grave no organismo. Durante um tempo, só se notariam os efeitos benéficos e, a partir de uma certa quantidade, a toxicidade (envenenamento) poderia provocar um efeito secundário muito grave, ao nível dos rins ou fígado, por exemplo.
Para que serve o medicamento Kaftrio?
Entre outros problemas, os doentes com fibrose quística têm uma mutação (ou mais) que torna o muco que reveste o interior dos pulmões muito espesso, como uma cola que tapa o filtro e impede que as trocas aconteçam normalmente. Com os pulmões tapados, os doentes vão perdendo, gradualmente, a capacidade de respirar e de fazer chegar o oxigénio ao sangue.
A nível celular, o que acontece é uma desregulação da quantidade sais minerais e água entre o interior e o exterior das células — que culmina em mucosas extremamente desidratadas. Indo ainda mais ao pormenor: a mutação mais frequente afeta um gene responsável por fabricar a porta de entrada para os iões cloreto e bicarbonato. O gene consegue passar a mensagem para o fabrico da proteína, mas é incapaz de lhe dar as instruções sobre a sua função. Logo, a proteína está lá, mas não faz o que lhe compete.
O medicamento Kaftrio usado por Constança Braddell e por outros doentes com fibrose quística em Portugal, tem como missão restituir a função da proteína, explica Margarida Amaral, professor de Biologia Molecular. Ou seja, traz a proteína do interior da célula até à membrana (onde tem de funcionar como porta) e mantém esta porta a funcionar para que a troca de iões aconteça dentro da normalidade.
O resultado é que o muco fica mais húmido, menos espesso, pode ser libertado e os doentes começam a respirar melhor — muito melhor. Margarida Amaral conhece, além de Constança, outros casos de sucesso com a toma deste medicamento.
Os outros dois medicamentos anteriores ao Kaftrio, o Orkambi e Symkevi, atuam mais ou menos da mesma maneira, embora tenham mostrado resultados menos impressionantes. “Com estes medicamentos já havia dados bastante fortes de que a doença, se não melhorasse, pelo menos estabilizava”, comenta Margarida Amaral. “O Kaftrio impede significativamente a progressão. Mas quanto mais cedo se começar o tratamento melhor.”
O medicamento pode evitar situações de doença grave?
Margarida Amaral não é médica, mas estuda a fibrose quística há 27 anos e confessa-se frustrada quando vê soluções promissoras ficarem “empancadas na burocracia”. A professora refere-se ao tempo que o Infarmed demora para aprovar um medicamento.
“Se o medicamento [Kaftrio] tivesse sido aprovado quando a EMA [Agência Europeia do Medicamento] aprovou, a Constança e outros doentes não tinham chegado a esta situação”, diz Margarida Amaral, referindo-se ao estado muito avançado da doença, que, por exemplo, obrigou a jovem a estar ligada ao ventilador.
O Kaftrio não é, no entanto, caso único — e nem é preciso ir buscar exemplos de outras doenças. O Orkambi foi aprovado pela Agência Europeia do Medicamento em 2015, mas a comercialização só foi autorizada em Portugal no início deste ano. O Symkevi foi aprovado pelo regulador europeu em 2018, mas ainda não foi autorizado pelo Infarmed. E o Kaftrio, aprovado pela EMA em 2020, só chegou a Portugal por via da Autorização de Utilização Especial (AUE), que tem de ser solicitada pelo hospital e que tem uma período limitado no tempo.
Nuno Vale admite que os reguladores do medicamento tenham velocidades diferentes na aprovação dos dossiers apresentados pelas empresas farmacêuticas, mas diz que “não se justifica tanto tempo para aprovar um medicamento”, referindo-se aos seis anos para aprovar o Orkambi. Até porque a EMA já tinha autorizado e existem delegados do Infarmed a trabalhar diretamente com a agência europeia.
O professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto espera que as lições aprendidas com a aprovação das vacinas contra a Covid-19 possam servir para acelerar os morosos processos de aprovação de um medicamento. Margarida Amaral vai mais longe e pede aprovações que sirvam para todos os Estados-membros da União Europeia, também porque o poder negocial (nomeadamente em termos de preço) é muito maior quando os países o fazem em bloco.
Quanto doentes em Portugal podem beneficiar deste tratamento?
“Existem cerca de 300 famílias onde prevalece a doença”, diz Margarida Amaral ao Observador. Destes, 80% poderiam beneficiar da aprovação do medicamento se Portugal seguisse o mesmo princípio que seguiu o regulador norte-americano (FDA, Food and Drug Administration) — na Europa, a farmacêutica não terá feito o mesmo pedido, conta a investigadora.
Não basta ter fibrose quística diagnosticada para poder usufruir do medicamento. Primeiro, ainda só está aprovado para maiores de 12 anos. Depois, só para quem tem a mutação mais frequente do gene, a F508del. A doença manifesta-se quando pai e mãe transmitem o gene doente aos filhos. Nos Estados Unidos, basta ter uma cópia deste gene (de um dos progenitores) para ter recomendação do tratamento, mas na Europa precisa de duas cópias iguais ou que, pelo menos, o gene que faz par também tenha uma mutação que comprometa a função (ou seja, que faça com que a tal porta não funcione bem).
A investigação que Margarida Amaral tem em curso mostra, no entanto, que podem existir outras mutações a beneficiar deste medicamento. O projeto usa organoides — pequenos órgãos criados a partir das células do doente — para testar se determinado medicamento será eficaz naquele caso ou não. O projeto, porém, não está concluído, nem os resultados publicados. “Falta financiamento. São estudos muito caros”, remata a investigadora.
Atualizado às 12h20 com informação sobre as causas de um pneumotórax em doentes com fibrose quística.