Oito em cada dez casos positivos de infeção pelo novo coronavírus em Portugal são já neste momento provocados pela variante identificada originalmente no Reino Unido. A estimativa é do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), de acordo com uma sequenciação genómica de 1.500 vírus, que deve terminar nos próximos dez dias. A Unilabs, laboratório parceiro do INSA, calculou que a prevalência desta variante no nosso país era de 70,3% até à semana passada.
Como é que esta variante britânica, conhecida a meio de dezembro, se tornou em apenas três meses dominante não só em Portugal, como em toda a Europa? Porque é de facto mais infecciosa; mas, além disso, pode também ser mais letal. Quatro em 100 pessoas contagiadas com esta variante morre de Covid-19, enquanto a proporção da variante espanhola, que é ainda aquela que mais casos provocou desde o início da epidemia, é de cinco em 100. Ou seja à medida que mais casos provocados pela variante britânica forem registados, o risco de se morrer por causa dela pode revelar-se ainda maior.
Daí a preocupação dos epidemiologistas nacionais. Porque, apesar de a meio de fevereiro as previsões de crescimento parecerem afinal não se confirmar, agora verifica-se o contrário e o pior cenário está para breve. A tendência deve mesmo ser que a totalidade de novos casos detetados em Portugal venha a ser resultado de uma infeção pela variante britânica. Essa é já a realidade em Inglaterra e provavelmente na Irlanda, onde a prevalência era de 90% há cerca de três semanas. Na Dinamarca, 90% dos novos casos são causados por ela. Mesmo nos países europeus com prevalências mais baixas, o seu crescimento está a ser “bastante acelerado”.
João Paulo Gomes, investigador do INSA que apresentou este panorama na reunião de aconselhamento científico ao Governo esta terça-feira, avisou que é “uma questão de tempo” até a prevalência da variante britânica ultrapassar os 90% em Portugal e no restante território europeu. Aliás, isso não demorará mais do que “algumas semanas” a acontecer, sobretudo em países em desconfinamento como Portugal, disse.
É a passagem do tempo que vai determinar a real dimensão da letalidade induzida pelas diferentes mutações. Por enquanto, ajustando os dados em função das características dos infetados, a variante espanhola continua a ser ainda a mais letal. Mas “é possível que quer a inglesa, quer a brasileira venham a subir quando os números forem maiores e as estimativas estáveis”, explicou Henrique Barros, epidemiologista do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, na mesma reunião.
Variante britânica pode ser infecciosa durante mais tempo
Em meados de dezembro, quando as autoridades de saúde britânicas e irlandesas avisaram o mundo de uma nova variante com maior capacidade de se propagar entre hospedeiros, os governos europeus prepararam-se para uma avalanche de novos casos de infeção. As análises iniciais diziam que ela era 71% mais transmissível e que podia induzir uma subida em pelo menos 0,4 no índice de transmissibilidade — R(t).
Houve três sinais de alerta, explicou ao Observador Ricardo Leite, o coordenador da Unidade de Genómica do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), que trabalha com o INSA na sequenciação do vírus. O primeiro foi o facto de uma das sondas incorporadas nos testes em alguns laboratórios, desenhadas para detetar determinadas partes específicas do vírus, ter deixado de confirmar a existência de uma dessas zonas, embora continuasse a apresentar um resultado positivo.
O segundo, que não se verificou em todo o lado, foi a observação de casos com cargas virais maiores. E o terceiro foi a quantidade de mutações verificadas após a sequenciação do vírus: contém mais mutações do que é normal e a conjugação entre elas parece torná-lo mais transmissível (e, nesse sentido, mais perigoso) do que qualquer outra variante em circulação.
A variante serviu de justificação para uma vasta série de decisões na esperança de controlar a crise pandémica: era necessário restringir a mobilidade, aumentar a testagem, impor novos confinamentos e controlar os contactos. Foi assim na Alemanha, em Espanha e, mais tarde em Portugal, quando o país se viu a braços com a catastrófica terceira vaga e o Executivo apontou culpas mais à nova variante e não tanto ao alívio das restrições no período natalício. Agora, antes da Páscoa, o domínio da variante britânica volta a ser usada por Angela Merkel para impor medidas apertadas e o mesmo acontece em algumas regiões espanholas, como a Andaluzia, onde as tradições pascais tem enorme peso.
Na altura, ninguém sabia ainda ao certo porque é que aquela variante era mais eficaz que todas as que circulavam antes do seu aparecimento. As hipóteses e teorias só se transformaram em conhecimento científico quando os investigadores descreveram exatamente como é que as suas três mutações lhe dão vantagem em relação às outras porque ocorreram em pontos críticos da proteína S.
A proteína S é aquela que o vírus utiliza para introduzir o seu material genético nas células. Isso já se sabia. O que não se sabia é como é que estas mutações em particular lhe conferem vantagens. Segundo Diana Lousa, investigadora do Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier (ITQB), para compreender o sucesso da variante britânica é preciso saber passo a passo como o vírus infeta as células.
Primeiro, a proteína S, na superfície do coronavírus, liga-se ao recetor das células — o ACE 2, que também é uma proteína. Depois, a proteína S é cortada por umas enzimas (as proteases) e sofre uma alteração de morfologia. A seguir, a proteína alterada abre um poro que permite que o ARN passe para dentro das nossas células. Já era assim nas outras variantes, mas as mutações da britânica facilitam todo este processo.
Uma dessas mutações fica numa zona que é muito importante para a ligação ao recetor e dá-lhe vantagem ao torná-lo mais estável e forte, fazendo com que o vírus infete o hospedeiro mais facilmente e se multiplique mais. Outra mutação resultou na eliminação de três aminoácidos do código genético — por isso é que uma das sondas dos testes PCR os deixou de encontrar, acrescenta Ricardo Leite. A terceira mutação ocorreu numa região muito próxima daquela que é cortada pelas enzimas, simplificando a alteração morfológica da proteína S.
Se este processo provoca cargas virais mais altas que as outras variantes, ainda não se sabe ao certo. Mas uma coisa é garantida: como a comunicação entre o vírus e as células se tornou mais eficaz, isso bastou para que o vírus se multiplique e se transmita mais rapidamente. “A proteína S é um pé de cabra que força a entrada nas células”, compara Diana Lousa. E se já o era antes, tornou-se ainda melhor.
Mais estudos começam agora a ser publicados, muitos deles ainda sem revisão pelos pares, à medida que cada vez mais casos da nova variante inglesa são detetados e estudados. Um deles, da autoria da Universidade de Harvard, sugere que quem está infetado com o SARS-CoV-2 britânico pode permanecer infeccioso durante mais tempo. A duração média da fase de proliferação é de 5,3 dias e da infeção é de 13,3 dias — com alguns dos voluntários a permanecerem infecciosos durante 16,5 dias.
No caso da variante dominante até agora, a duração média de proliferação foi avaliada em dois dias e estimou-se que a fase infecciosa durasse apenas 8,2 a 9,7 dias — mesmo provocado cargas virais máximas semelhantes. São resultados pouco conclusivos porque só foram acompanhados 65 voluntários, mas que levantam agora a questão sobre se os tempos de isolamento devem voltar a ser alargados (chegaram a ser de 14 dias, passaram a dez e há quem faça apenas sete).
Outra questão por apurar é se quem está infetado pela variante britânica tem ou não mais risco de morrer de Covid-19. Em janeiro, Boris Johnson anunciou que a nova linhagem parecia também ser 30% mais mortífera do que as outras variantes. Um estudo realizado por várias escolas de saúde britânicas, que pode ver aqui, acompanhou perto de 55 mil infetados e concluiu que esta variante tinha o “potencial de causar mortalidade adicional substancial em comparação com as variantes circulantes anteriormente”.
No entanto, “a altura em que esta variante se espalhou pela Europa foi de picos na pressão nos hospitais, por isso é difícil avaliar”, avisa o investigador do IGC. Tanto Diana Lousa como Ricardo Leite avisam que não há conclusões sobre esta matéria, principalmente porque a letalidade depende de vários fatores, desde a resposta do próprio organismo à infeção, como ao atendimento que o doente recebe, e com os serviços nacionais de saúde sobrecarregados qualquer conclusão pode ser precipitada.
O problema é que, mesmo com estas novidades, a comunidade científica ainda não sabe tanto assim sobre como o vírus atua quando entra no organismo. As atenções estão todas concentradas na proteína S porque ela é o principal alvo das vacinas desenvolvidas até agora, mas pode haver mutações noutras zonas do SARS-CoV-2 que guardem as respostas sobre uma possível maior letalidade associada a esta linhagem britânica.
É isso que explica Miguel Castanho, investigador do Instituto de Medicina Molecular, ao Observador. Questionado sobre o que poderia, pelo menos em teoria, explicar um aumento da letalidade, o especialista explica que, se o vírus tiver mais facilidade de entrar no organismo, também vai entrar em mais células, multiplicando-se mais e criando uma doença mais severa. “Esta é a explicação mais simples”, resume.
Outra justificação está relacionada com a proteína N, outra estrutura do vírus menos mencionada, mas igualmente importante. Quem teve uma infeção com o SARS-CoV-2 desenvolve anticorpos contra a proteína S, mas também contra a proteína N. Mas quem apenas é vacinado contra a Covid-19 terá só anticorpos contra a primeira. Segundo Miguel Castanho, “é possível que estas proteínas também interfiram com outros processos celulares”, e essa é uma questão por esclarecer.
Variante do sul-africana, que pode escapar à vacina, está a aumentar em Portugal
Quanto às outras variantes, o problema só não é maior porque os casos gerados pelas mutações vindas do Brasil e da África do Sul continuam a ser poucos no nosso país: o INSA contabilizou 16 contágios pela variante de Manaus e um total de 24 infetados com a variante sul-africana, nove deles identificados só na semana passada. Esta última é especialmente preocupante porque é a que coloca mais entraves à vacinação contra a Covid-19.
“A última coisa que queremos é que se repita aquilo que aconteceu com a variante do Reino Unido”, avisou João Paulo Gomes: “Esta variante da África do Sul tem uma condicionante extra, que é o facto de ter algumas mutações associadas à falha de ligação aos anticorpos. Os casos de falência vacinais badalados na comunidade científica tem a ver precisamente com esta variante. Não queremos ter mais introduções”.
A melhor solução é controlar quem entra em Portugal, principalmente nos voos com origem em países onde estas variantes estão mais disseminadas. O Governo restringiu as ligações aéreas com a África do Sul e o Brasil, mas há outros países, como por exemplo Moçambique, com histórico intenso de viagens com Portugal, onde a prevalência da variante sul-africana é muito alta. No Brasil há três mutações significativas em circulação e a entrada de brasileiros no nosso país pode ser feita indiretamente.
O controlo nos aeroportos foi por isso mesmo uma das principais medidas defendidas pelo matemático Henrique Oliveira, do Instituto Superior Técnico, ao Observador. Questionado sobre se Portugal poderia evitar uma nova vaga numa altura em que muitos países da Europa a estão a escalar, o especialista defendeu que deve haver um rigoroso controlo junto às fronteiras: segundo ele, a realização de um teste de diagnóstico deve ser obrigatório e a possibilidade de cumprir quarentena à chegada deve ser ponderada.
Neste momento, as medidas impostas pelo Governo exigem aos passageiros com mais de dois anos a apresentação de um teste RT-PCR negativo realizado menos de 72 horas do embarque na viagem — caso contrário, ele vai ser realizado à chegada, sob pena de a entrada em Portugal ser negada. O isolamento só é exigido quando a origem é o Brasil, a África do Sul ou o Reino Unido ou se o país tiver uma taxa de incidência que exceda os 500 casos por 100 mil habitantes.
Neste momento, só na União Europeia, há 11 países com mais de 500 casos acumulados ao longo de 14 dias por 100 mil habitantes, incluindo Itália, Suécia e França. Portugal e Reino Unido (já fora da UE) continuam a ser os únicos com menos de 120. Dezoito dos países da UE estão com um R(t) superior a 1. Tal como alertou Baltazar Nunes, epidemiologista da Escola Nacional de Saúde Pública, as maiores preocupações vêm da Europa Central e de Leste.