Para uma força política que ficou associada ao agravamento da carga fiscal sobre os combustíveis, o Governo de António Costa deixou uma herança ao sucessor que vai no sentido contrário. Há um mega-desconto fiscal neste setor que permite retirar mais de 20 cêntimos por litro ao preço final e que custa mais de mil milhões de euros por ano. A revisão dos atuais apoios aos combustíveis está em “processo de avaliação”, indica ao Observador fonte oficial do Ministério do Ambiente e Energia quando questionado sobre o tema.
A decisão de baixar o imposto foi tomada em 2022 — aliás uma das primeiras da maioria absoluta socialista — e anunciada como extraordinária e temporária em resposta a um período extraordinário e temporário de choque nos preços provocado pela guerra da Ucrânia e ampliado pela inflação. Mas ao contrário de outras medidas temporárias — a mais emblemática foi o IVA zero nos alimentos adotada já em 2023 e terminada no início deste ano — o desconto nos combustíveis foi-se prolongando no tempo. Numa primeira fase, o Governo do PS manteve uma monitorização temporal com um ajuste mensal do desconto, tendo inclusive recuperado uma pequena parte do corte no imposto — aproveitando descidas pontuais nos preços finais. Mas isso deixou de acontecer no ano passado.
A portaria de setembro do ano passado que fixa as atuais taxas do ISP (imposto sobre os produtos petrolíferos) reduziu o imposto cobrado em dois cêntimos no gasóleo e um cêntimo na gasolina, ao abrigo da política de devolução dos ganhos do Estado com o IVA sobre os combustíveis na sequência da subida dos preços. À data, a redução temporária do imposto sobre os produtos petrolíferos face aos valores normais (fixados em 2018) era de 16 cêntimos na gasolina e de 15 cêntimos por litro no gasóleo. Este “desconto” resulta não só da devolução dos ganhos do IVA, mas também da calibragem da taxa de imposto para produzir um efeito no preço final equivalente ao que aconteceria se fosse aplicada ao setor a taxa intermédia do IVA de 13%. Por imposição europeia, os Estados são obrigados a aplicar a taxa normal (de 23% em Portugal) nestes produtos.
Para além da redução do imposto, o apoio ao preço dos combustíveis tem outra componente que é a suspensão da atualização da taxa de carbono. Para refletir a evolução das cotações de carbono em 2023, como estabelece a lei, a gasolina teria de pagar de taxa de carbono 19 cêntimos por litro (o valor atual é de 12,7 cêntimos) e o gasóleo 20,8 cêntimos (taxa atual é de 13,9 cêntimos por litro), segundo dados que comparam o preço dos leilões de outubro 2022 com os de setembro de 2023. Considerando os valores em vigor, a taxa teria que subir mais seis cêntimos por litro o imposto sobre a gasolina. O preço do gasóleo teria de ficar mais carregado em oito cêntimos por litro.
O que fará o novo Governo? Para já, há um “processo em avaliação”
No total, as medidas de subsidiação do preço dos combustíveis custam mais de 1000 milhões de euros por ano em perda de receita prevista no Orçamento do Estado aprovado pelo anterior Governo. O documento prevê que a medida de suspensão temporária das taxas do ISP custe 1,7 mil milhões de euros em 2024, face ao impacto de 2.000 milhões de euros em 2023 e de 1,5 mil milhões de euros em 2022. Ainda que estas projeções suscitem reservas por parte da UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental) que, no seu exame ao Orçamento, as qualifica de demasiado elevadas. A execução orçamental até fevereiro aponta para uma perda de 167 milhões em apenas dois meses.
O Orçamento do Estado em vigor acomoda essa perda, mas também sinaliza a intenção de repor a taxa de carbono. O Governo pode aproveitar o respaldo orçamental para deixar tudo como está até ao final de 2024 — sob pena de ser acusado de omissão, já que o agravamento deste imposto não está referido no programa eleitoral. Terá de decidir, ainda assim, o que fazer em 2025.
Mas esta não é apenas uma matéria orçamental e fiscal. Há que pesar na balança a contradição entre a subsidiação do preço dos combustíveis e o combate às alterações climáticas. Esse dilema é percetível na resposta que o Ministério do Ambiente e Energia deu ao Observador.
O gabinete de Maria da Graça Carvalho reconhece que “os apoios fiscais aos combustíveis rodoviários tiveram o propósito de mitigar a subida dos preços, num contexto em que os valores estavam em alta e os impactos da inflação atingiam fortemente as famílias e as empresas, em resultado de fatores externos como o impacto da invasão da Ucrânia. A suspensão da taxa de carbono aconteceu neste âmbito”.
Referindo que a situação evoluiu — “a crise energética resultante da invasão da Ucrânia foi mitigada, a inflação foi reduzida e há, hoje, um cenário de desagravamento” — assinala também o surgimento de “novas tensões geopolíticas no horizonte”. Ainda não se sente no bolso, mas a subida de tensão entre Israel e o Irão podem inflamar o petróleo. Além de que, considera a ministra do Ambiente e Energia, “a situação económica não tem o nível de desafogo que desejaríamos”.
Por outro lado, admite, “Portugal tem de melhorar o seu desempenho ao nível da descarbonização do setor transportes, reduzindo emissões de gases com efeito de estufa. A fiscalidade verde pode ser um importante aliado neste processo, implicando uma revisão de apoios em vigor, mas é algo que ainda está em processo de avaliação.”
O Ministério das Finanças não respondeu às perguntas do Observador.
Bruxelas contra prolongamento de apoios e a pressão das alterações climáticas
O apoio público tão substancial aos combustíveis vai contra as recomendações feitas já no ano passado pela Comissão Europeia a Portugal, quando analisou a proposta orçamental, no sentido de por fim aos apoios públicos aos combustíveis.
Bruxelas avisa Portugal que deve eliminar apoio generalizado ao preço dos combustíveis
A recomendação foi prontamente ignorada pelos socialistas, mas com o atual Governo terá de apresentar mais serviço para demonstrar que Portugal está a fazer o que é preciso para cumprir a sua parte dos compromissos europeus em matéria de combate às alterações climáticas. É que, à boleia do desconto fiscal, o consumo de combustíveis rodoviários não pára de crescer, em contraciclo com a evolução dos anos anteriores, e já ultrapassou a fasquia de 2019, ano anterior à pandemia. A Direção-Geral de Geologia e Energia indica crescimentos nos consumos de gasolina e gasóleo no ano móvel terminado em fevereiro. Esta evolução é puxada pela gasolina que tem vindo a ganhar terreno ao gasóleo por causa da crescente circulação de veículos híbridos que usam este combustível.
Este crescimento vai contra o disposto no Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) que, além de fixar como meta genérica para 2030 a redução em 35% do consumo final de energia e o corte em 40% das emissões de CO2 dos transportes, defende a revitalização da taxa de carbono com uma taxa indexa ao preço do carbono para setores como os combustíveis. O documento defende ainda a revisão dos benefícios fiscais e outros incentivos associados à utilização de combustíveis fósseis e que terá de ser revisto até julho já pela nova ministra do Ambiente e Energia.
Na resposta ao Observador, o Ministério do Ambiente assume que a “revisão do Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) 2030 é fundamental para um alinhamento de medidas que permitam avançar para a neutralidade carbónica com ambição, mas também com preocupação relativamente ao estado da economia e da sociedade.”
No programa o Governo diz que quer dar um “novo impulso à reforma da fiscalidade verde”, mas nada refere sobre o tema específico da taxa de carbono ou do apoio aos combustíveis. Certo é que à frente da pasta setorial está Maria da Graça Carvalho, que é uma acérrima defensora das políticas europeias nesta área e está apostada na sua execução em Portugal.