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O regresso a Nápoles, à procura da verdade com Elena Ferrante

O novo “A Vida Mentirosa dos Adultos” não revela a identidade de um dos grandes fenómenos literários atuais, mas mostra-nos mais sobre o que move a escritora italiana e porque nos movemos com ela.

Assim que cheguei ao fim do novo livro de Elena Ferrante, A Vida Mentirosa dos Adultos, arrependi-me de o ter lido. Pelo menos, desta forma. Voraz, compulsiva, como se sugada por um vórtice de palavras. E agora? Que fazer com este vazio? Teria de esperar mais seis anos para regressar àquele universo de vivências íntimas, recônditas, cristalizadas em todo o seu silencioso poder? “Podes sempre voltar a ler”, disse-me uma voz pequenina. E assim decidi. De volta à primeira página, à primeira frase, ao primeiro golpe, que numa segunda leitura se revelou ainda mais implosivo: “Dois anos antes de sair de casa, o meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia.”

A Vida Mentirosa dos Adultos (Relógio d’Água) é a primeira ficção de Ferrante desde a tetralogia napolitana, os quatro romances, entretanto transformados em série da HBO, que fizeram da autora um dos maiores e mais misteriosos fenómenos literários deste século. Até hoje, a sua identidade permanece em segredo.

A primeira frase do livro desvela o momento em que o mundo perfeito de uma adolescente-menina começa a desmoronar-se e abre espaço para a recriação da adolescente-mulher. Trata-se, na verdade, de um eco de uma das ansiedades de Ferrante em miúda. “Dizia para comigo: não seria terrível se não só o meu aspecto físico, mas também certos traços de carácter, desagradassem, sobretudo, aos meus pais?”, conta, nas únicas perguntas a que aceitou responder, feitas por tradutores e livreiros de todo o mundo e publicadas em Portugal pelo jornal Expresso. “Atribuí a frase a um pai e, no entanto, na história, a mãe de Giovanna não se insurge, não contradiz o marido.” Uma traição dupla que, aos 13 anos, atira a protagonista para fora do ninho. Os anglo-saxónicos chamar-lhe-iam um romance de “coming of age”. Em português, por palavras menos precisas, será uma história de amadurecimento.

A capa da edição portuguesa de "A Vida Mentirosa dos Adultos", de Elena Ferrante (Relógio d'Água)

O mote é o das mentiras, as que os adultos contam a si próprios e aos outros. “Como se a mentira fosse o instrumento fundamental para terem coerência, para se atribuírem sentido, para aguentarem o confronto com o próximo, para se mostrarem aos filhos como um modelo respeitável”, comenta Ferrante, no mesmo conjunto de respostas. “Por volta dos 14 anos, depois de muitas humilhações, decidi crescer e deixar de mentir.” Um pouco desta “impressão da adolescência”, diz, terá alimentado a história da protagonista. Em fundo, a própria adolescência, um período de que a italiana não guarda boas memórias – “quanto mais depressa passar, melhor” – mas sobre o qual a apaixona escrever: “Quando escreves, aquele tempo parado e asfixiante, visto da beirinha da vida adulta, começa a fluir, faz-se e refaz-se, encontra as suas motivações.”

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A par da eterna pergunta, “Quem é Elena Ferrante?”, uma das inquietações que se impôs nos últimos anos foi que tipo de livro escreveria a autora depois de uma saga que vendeu mais de 11 milhões de exemplares e seduziu um grupo ainda mais numeroso de fiéis. Se a primeira questão já deu origem a investigações de jornalistas, académicos, linguistas e até informáticos, a segunda tem neste A Vida Mentirosa dos Adultos uma resposta concreta. Para onde se vai depois de uma obra-prima? Tenta fazer-se melhor.

Ao contrário do que as quase mil e quinhentas páginas do quarteto napolitano podem indicar, Ferrante não tem muito mais publicado. Precedem A Amiga Genial, primeiro romance da série, apenas três novelas – ou romances curtos – compilados em Portugal num único volume, Crónicas do Mal de Amor (Relógio d’Água). Tal como a maior parte dos leitores, fui lá parar ressacada, com sintomas daquilo a que um documentário sobre o fenómeno apelidou de “Ferrante Fever” (Febre Ferrante). Ouvira várias opiniões, a maior parte pouco deslumbrada, mas se queria mais da criadora de Lila e Lenú, era aquilo ou nada. E foi bastante.

Talvez seja isto que nos agarra nestes livros. O momento em que vemos transpostos de forma nítida para o papel instantes fugazes, escorregadios, que sempre julgámos inefáveis e até inconfessáveis. Ferrante revela-nos que a vida interior pode ser um lugar estranho, mas não solitário.

Logo em Um Estranho Amor (1991), uma deriva desconcertante pelos meandros do afeto e da memória, está muito do que se encontrará daí em diante na obra da escritora italiana. O quadro vai-se compondo com os perturbadores Os Dias do Abandono (2002) e A Filha Obscura (2006). Relações entre mães e filhas, conflitos interiores, uma sociedade machista – e Nápoles, cidade-sufoco de que é impossível fugir, embora a única saída aceitável seja tentar. Espaço ainda para o simbolismo, objetos mágicos que parecem, de alguma forma, atrair os males do mundo, todos eles símbolos de uma feminilidade esperada: sapatos, bonecas – em A Vida Mentirosa dos Adultos, uma pulseira. Camadas sobre camadas, em que nada é apenas aquilo que parece. Enredos que tanto se resumem numa frase, como se expandem em horas infindas de catarse e debate. Qualidades sublimadas nos quatro best-sellers publicados em Itália entre 2011 e 2014, que podem ser descritos como a história da amizade de uma vida entre duas raparigas ou processados enquanto chave para tantos momentos das nossas vidas e dos outros.

Pré-publicação. As confissões de Elena Ferrante

Na obra de Ferrante, desconforto e verdade andam de mãos dadas. Como se o primeiro fosse fundamental para nos levar à segunda, objetivo último na vida e na literatura. É também esse o purgatório que Giovanna terá de atravessar, numa sucessão de experiências confusas, que a fazem a dada altura dizer, “abracei-a como se a estimasse de facto, e, quem sabe, talvez estimasse, já não percebia metade dos meus sentimentos.”

Talvez seja isto que nos agarra nestes livros. O momento em que vemos transpostos de forma nítida para o papel instantes fugazes, escorregadios, que sempre julgámos inefáveis e até inconfessáveis. Ferrante revela-nos que a vida interior pode ser um lugar estranho, mas não solitário. Tanto nos recantos mais sombrios como nos momentos de pura radiância há mais denominadores comuns do que excentricidades ímpares. No limite, abre-se espaço para a empatia.

[o trailer da segunda temporada de “A Amiga Genial”, adaptação dos romances de Elena Ferrante disponível na HBO Portugal:]

Também os fantasmas são recorrentes. A linha ténue que separa a loucura da sanidade; a tensão entre o bem e o mal; o momento em que forças obscuras tomam conta de nós. Como quando em A Vida Mentirosa dos Adultos um personagem exemplar se descontrola e revela uma parte repreensível de si. “Acontece a todos ou só alguns? E éramos mais reais quando víamos tudo nitidamente ou quando sentimentos mais robustos e densos nos cegavam?”, pergunta-se Giovanna.

Na única entrevista oficial que concedeu na vida, publicada em 2015 na revista literária The Paris Review, Ferrante demora-se no tema da verdade. A sinceridade, diz, “é o tormento e, ao mesmo tempo, o motor de qualquer projeto literário.” O caminho para lá chegar é misterioso. Sabe, contudo, que tudo começa com “frantumaglia”: “fragmentos da memória”, diz, “pedaços de origem incerta que se agitam na tua cabeça, nem sempre de forma confortável.” Podem ser lugares da infância, membros da família, colegas da escola, vozes ternas ou insultuosas, momentos de grande tensão. Não há regras; apenas uma altura em que essas farpas se reorganizam e fundem numa história convincente.

A genial Elena e a história dos autores anónimos

Difícil, explica, é não “domesticar a verdade”. “O que quer dizer com ‘domesticar a verdade’?”, perguntam os entrevistadores. “Seguir por caminhos expressivos muito vistos”, responde. “Como assim?”, insistem. “Trair a história por preguiça, por querer agradar, por ser conveniente, por ter medo. É sempre fácil reduzir uma história a clichés.” Vai mais longe: a verdade implica sofrimento. “Na ficção literária tem de se ser sincero até ao ponto em que se torna insuportável”, afirma na colectânea de cartas e outros textos Escombros (Frantumaglia, no original). De novo nas respostas publicadas no Expresso: “[escrever] é rodar a faca na ferida.”

Não deixa de ser curioso que, por muito que a italiana se recuse a mostrar uma vida real para responder pelos seus textos literários, cada um dos seus leitores tenha criado uma imagem sua na cabeça e fale sobre isso. Ferrante tornou-se ela própria literatura.

Reside também nesta ética obsessiva da verdade uma das razões para o seu anonimato. Ferrante já afirmou por várias vezes que só separando a vida real da literária consegue evitar a auto-censura. Da mesma maneira que se intui que será por isso que, em muitos dos seus romances, as suas personagens cortam relações com a família e a cidade onde nasceram. Neste último, junta a virgindade a esse conjunto de circunstâncias. Numa palavra, amarras. Noutra, liberdade. Pelo caminho, reinvenção.

Não deixa de ser curioso que, por muito que a italiana se recuse a mostrar uma vida real para responder pelos seus textos literários, cada um dos seus leitores tenha criado uma imagem sua na cabeça e fale sobre isso. Ferrante tornou-se ela própria literatura. Imagino-a na casa dos 60 ou 70 anos, independente, divorciada, talvez recasada. Terá duas filhas adultas do primeiro casamento, tal como algumas das suas personagens mais marcantes. Vejo-a criança num ambiente hostil. Uma outsider, que, entretanto, aprendeu a domar o medo. Para isso, terá abandonado Nápoles, onde já admitiu ter crescido. Suspeito que tenha passado muitos anos no divã de um ou uma psicanalista. Percebo com este último livro que o seu derradeiro compromisso é com a sua verdade mais profunda.

Crescer, percebe Giovanna, protagonista adolescente de A Vida Mentirosa dos Adultos, é ser verdadeiro. Mas tal como na literatura verosimilhança e autenticidade não são a mesma coisa, também na vida envelhecer e amadurecer são coisas bem diferentes. Felizmente, tanto na obra de Ferrante como no mundo real, há sempre a possibilidade de escolher. Só é preciso ter coragem para lidar com as consequências.

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