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Com o modelo no Brasil, e o artista sem tempo para cruzar o oceano, impôs-se uma manta de retalhos de referências visuais. À distância, o pintor que retratou Napoleão produzia um retrato até aqui desconhecido do então Príncipe Regente. O mesmo a quem, feito já D. João VI, seria oferecido um peculiar relógio ligado a Luís XVI, e que mais de 200 anos depois faz o seu caminho até esta morada, uma das prediletas da princesa que iluminou na tela a imagem da Virgem Maria. Não se cruzassem todas estas personagens na história de um monumento que foi residência oficial, retiro de verão e ainda discreto cárcere quando a loucura tomou conta de D. Maria I.
Com forte pendor político, em tempos de especial turbulência no país e na Europa, ou com um carácter marcadamente afetivo, três novas peças juntam-se ao acervo do Palácio Nacional de Queluz, e acrescentam camadas de história e interpretação a este destino. O lote de aquisições da Parques de Sintra, que assumiu a gestão do monumento em 2012, representou um investimento total de cerca de 100 mil euros. Uma delas exigirá maiores cuidados mas ficará disponível no próximo ano. As outras duas, adianta ao Observador Hugo Xavier, conservador no Palácio, deverão poder ser vistas no palácio até ao final do ano.
Um “patchwork” de referências para pintar o rei que se aborrecia com retratos
Consta que D. João VI não apreciava posar para os artistas, de resto o pintor em causa nunca ter-se-á deslocado ao Brasil, destino onde a família real portuguesa residia desde 1807, na sequência das invasões francesas. Não sendo incomum à época, a verdade é que torna todo o processo ainda mais interessante, até pela forma como a peça foi criada. “Essa informação está numas cartas que o próprio escreve à irmã, que casou com um infante espanhol. Eram muito ligados e foram-se correspondendo mais do que uma vez por mês. A certa altura D. João recebe a carta sobre a vinda a Lisboa de um retratista italiano, Giuseppe Trono, porque a irmã estava sempre a pedir-lhe um retrato como memória. Mas ele dizia que era muito aborrecido estar parado.”, explica Hugo Xavier. Por curiosidade, D. João VI acabou por ser um dos monarcas mais retratados, devido ao longo reinado, ainda durante a regência e depois já no trono.
A recém-chegada peça data de 1815 e tem como autor Henri-François Riesener, que retratou nomes como Napoleão Bonaparte, a imperatriz e o príncipe Eugénio de Beauharnais — e ainda um então Príncipe Regente que no retrato em causa surge a apontar “para Portugal Continental num globo terrestre que está pousado sobre um mapa que representa o Brasil; um gesto de afirmação política, numa clara alusão à união dos dois territórios.”
Segundo a investigação levada a cabo pela equipa do Palácio Nacional de Queluz, a pintura terá sido encomendada pelo marquês de Marialva, à época embaixador de Portugal em Paris, prática frequente numa época que precede a fotografia. Riesener emigraria no final daquele ano para a Rússia, onde se encontrava ativo em 1816, tendo regressado a Paris em 1823.
Na verdade, D. João nunca chegou a ver este trabalho, já que o pedido tem um carácter de urgência — e um propósito claro. “Isto tem a ver com a queda de Napoleão. É uma encomenda para a reinstalação da nossa representação diplomática em Paris. Era necessário rapidamente fornecer uma imagem do soberano e não havia tempo de enviar um artista ao Brasil.” Posteriormente, seria também produzido um outro retrato, por outro autor, já D. João era rei, e que hoje pode ser visto no Museu do Tesouro Real do Palácio da Ajuda.
Para executar esta obra, sem o retratista estar diante do modelo, recorreu-se a outras referências visuais. Por um lado, gravuras, que podiam não ser muito atualizadas — neste caso, é usada uma com mais de dez anos de D. João. Depois, certamente terão contribuído as indicações precisas do embaixador sobre o detalhes como o numero de insígnias na casaca, por exemplo. “Assim foi construído este retrato de forma muito eficaz. O pintor teve formação com os melhores”, distingue o conservador.
Riesener era tio de Eugène Delacroix, estudou no atelier de Jacques-Louis David, outro grande nome do neoclassicismo, e concretizou um autêntico “patchwork”. “O rosto é feito a partir de uma gravura, o espadim de outra; o embaixador terá mostrado o uniforme, e mostrado as suas condecorações para serem copiadas; e para volume do corpo pode ter recorrido a alguém que vestiu uma casaca. O resultado é bastante fidedigno”.
Não sabemos o trajeto da pintura depois de ter sido encomendada, nem que voltas terá dado pela Europa, mas uma análise posterior mais aprofundada destapou a existência de uma etiqueta muito apagada na moldura com uma inscrição em italiano, o que sugere a passagem por algum palácio daquele país antes se seguir para a escala seguinte. “Não se consegue ler inteiramente”. Foi “uma surpresa” quando o quadro, até aqui nunca referenciado, apareceu num leilão na Alemanha, no ano passado, momento a que a Parques de Sintra não conseguiu chegar a tempo. “Fui avisado um ou dois dias antes do leilão mas não foi possível tentar a compra porque estes processos são muito burocráticos, exigem um mínimo de 15 dias para qualquer instituição, de proposta, etc. Guardei a imagem numa pastinha no computador com alguma pena.”
O quadro haveria de voltar a cruzar-se com Portugal, e a cumprir o destino de vir parar a Queluz. Fora adquirido por um antiquário e galerista luso-francês, Philippe Mendes, que o apresentou em Lisboa na feira de Artes da Cordoaria, em março deste ano. “Foi um nova surpresa. Ele contactou-nos e contactou instituições brasileiras, que também mostraram interesse, mas por sorte antecipámo-nos e fechámos negócio”
Em breve, espera-se que seja possível apreciar a pintura nos aposentos que outrora pertenceram ao monarca. “Acreditamos que no início de dezembro, ou pelo menos até final do ano, possa estar nos aposentos de D. João VI aqui no palácio”.
Um símbolo da reação que acabou nas mãos de D. Carlota Joaquina
O relógio que se segue tem ligação com a figura anterior. É possível que tenha sido uma oferta a D. João VI para assinalar o momento em que assumiu a regência do reino, em 1792. Se a corte partiu de Queluz rumo ao Rio de Janeiro em 1807, foi aqui que regressou em 1821. Quando João VI morreu, em 1826, desencadeou-se a disputa pelo trono entre os dois filhos, D. Pedro IV e D. Miguel, que contava com o apoio de D. Carlota Joaquina. É na posse desta última que permanece esta peça, colocada na Quinta do Ramalhão, sua residência pessoal em Sintra, onde foi inventariada em 1829.
“Tem também toda uma história política. É uma peça misteriosa e ainda há muito por deslindar. Acreditamos que pela carga política é oferecida ao próprio regente, depois é que passou para a coleção da mulher.” A obra incorpora inscrições em português que têm excertos de um canto de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, e de uma carta de Sá de Miranda a D. João III. Segundo Hugo Xavier, terá sido executada antes da morte de Luís XVI, com firme propósito político. “Portugal não estava isolado, e acreditamos até pelos textos impressos que quase glorificam o poder absoluto que acaba por ser uma espécie de reação à Revolução Francesa, e de sinal de apoio do monarca português ao seu congénere francês.”
O curioso relógio vai agora ser restaurado e no futuro também ele integrará o circuito expositivo do Palácio Nacional de Queluz, uma casa que Carlota Joaquina conheceu desde muito jovem. Mas é em França, de facto, que a sua história começa, com uma ligação ao monarca que terminou na guilhotina. “Estas peças não eram habitualmente assinadas, mas execução terá sido francesa porque os mármores e bronzes são franceses, produzido em 1790, no seguimento da Revolução.”
Qual maqueta, a peça bebe do gosto neoclássico e replica em mármores e bronzes dourados o obelisco erguido em Port-Vendres (Pirenéus Orientais), por iniciativa do conde Augustin-Joseph de Mailly, que somava já 86 anos quando conheceu o mesmo fim que o soberano deposto, a lâmina sobre o pescoço. O monumento, erguido para homenagear o monarca, subsiste, apesar de muito descaracterizado.
A ficha técnica revela como esta criação, cujo mecanismo se encontra habilmente escondido, permite saber hoje como era aquela construção no passado, com algumas adaptações à realidade nacional. O globo em metal que coroa o obelisco de mármore, e que indica as horas, tem o mapa de Portugal Continental, incluindo os nomes de várias cidades, regiões, rios, etc. Está dividido por dois “anéis” em metal branco gravados com numeração romana e árabe, destinados à indicação das horas e dos minutos, efetuada através da cabeça de uma serpente que se encontra enrolada na base do globo.
Com 96 centímetros de altura e 49 de largura (com plinto as dimensões ascendem aos 178 x 54 cm), assenta sobre quatro pés formados por esferas achatadas em metal e pequenas placas quadrangulares em mármore branco e negro. Em cada ângulo da base estão colocados plintos de secção quadrangular em mármore branco com panóplias de armas em bronze dourado, figurando couraças, elmos e escudos, numa alusão aos quatro continentes, lê-se na nota descritiva da obra.
De acordo com o conservador, das três novas aquisições esta peça é que a vai exigir uma intervenção mais profunda, e que não deverá estar pronta para ser mostrada antes do próximo ano. “Conserva todo o mecanismo interior mas não está operacional. Já tivemos contacto com o mestre relojoeiro da Casa Pia, Paulo Anastácio, que viu a peça e já a desmontou e percebemos que está lá tudo, precisa é de ser afinado, também os mármores e bronzes vão precisar de ser limpos. Temos que reunir estas três especialidades.”
Memórias de uma princesa que gostava de pintar
Em 1807, acompanhou a restante família ao Brasil, regressando 13 anos depois para viver ainda oito em solo português. Morreu na Ajuda, mas Queluz foi um dos locais de eleição da princesa que desposou, a 21 de fevereiro de 1777, o seu próprio sobrinho, o príncipe da Beira, D. José. Três dias depois, com a morte do pai e soberano, a sua irmã mais velha e agora sogra, D. Maria I subia ao trono. Falamos de Maria Francisca Benedita, que enviuvou em 1788, não teve filhos nem chegou a consorte. Mas a quarta e última filha do rei D. José I e da rainha D. Mariana Vitória, então príncipes do Brasil, eternizou-se pelo papel filantrópico, ajudando a erguer com o seu pecúlio o asilo de Runa — também cultivava o gosto pela música e pela pintura, e é este último que volta a merecer atenção nesta lista de aquisições.
A princesa que viveu entre 1746 e 1829 terá recebido lições do mestre Domingos Sequeira, mas escasseiam os testemunhos desse seu gosto particular, daí a relevância da entrada no acervo de uma pintura da Virgem Maria assinada pela princesa, que constitui um bom exemplo do tipo de obras que produzia: pequenos formatos, com figuras de santos ou cenas de cariz religioso, destinadas à devoção privada, para colocação num quarto ou oratório. “Figuras religiosas muitas vezes pintadas através de modelos que faziam parte das coleções reais, recriando, também a partir de gravuras”, descreve Hugo Xavier.
Em causa, a representação da Virgem Maria pelo busto, com o rosto voltado para a esquerda e inclinado para baixo. Tem cabelo castanho-claro, com risco ao meio e trança, parcialmente coberto com dois mantos: um azul e outro castanho que se atravessa pela frente do vestido com drapeados. Olhar baixo e maçãs do rosto rosadas. E ainda nota para o vestido encarnado com decote debruado a branco onde se lê a inscrição/assinatura: “MARIA BENEDICTA BRASILIAE PRINCEPS PINXIT” (Maria Benedita Princesa do Brasil Pintou). A moldura (não original) é em madeira entalhada e dourada.
“É uma figura muito interessante, que também atravessa uma fase de tumulto político. Este é um dos raros trabalhos assinados, em óleo e sobre cobre. Ao vivo ainda é mais bonito do que nas fotos, com cores muito vibrantes.”, sublinha o conservador, que destaca ainda outro contributo relevante. Pintado em data anterior à partida do clã real para o Brasil, o quadro permitiu atribuir à princesa uma obra anónima do acervo primitivo de Queluz, dadas as características que apresenta. Trata-se de uma pintura de S. José com o Menino, pertencente ao oratório dos aposentos de D. João VI neste Palácio. “Quando a princesa morreu deixou muito do seu património ao asilo de Runa e a sua coleção de pintura está hoje lá, em parte, mas pintura de outros autores, sobretudo imagens de santos e figuras mitológicas. Já obras feitas pela própria não são abundantes. Existe uma grande tela na Basílica da Estrela assinada por ela e por uma outra irmã.”
E que etapas terá cumprido desde a sua criação? Crê-se que a obra terá sido um presente que Maria Francisca ofereceu a algum membro da corte, atendendo até às dimensões: 22,5 cm por 17 cm. A tela com a Virgem apareceu num leilão da Veritas, sabendo-se apenas que pertencia a uma coleção nacional, estando na posse de particulares da zona de Cascais, adianta Hugo Xavier. “As nossas leiloeiras quase nunca indicam a proveniência, o que é uma singularidade portuguesa que nós lamentamos.”
Vem agora associar-se a um conjunto de aquisições desenvolvidas pela Parques de Sintra nos últimos anos. Desse conjunto recente sobressai a vista panorâmica da Quinta de Queluz de finais do século XVII, início do século XVIII (Palácio Nacional de Queluz), uma salva em prata dourada datada de 1548 e proveniente da coleção de D. Fernando II (Palácio Nacional da Pena), um leito de aparato com elementos decorativos em prata da segunda metade do século XVII (Palácio Nacional de Sintra), assim como um relevo em mármore com uma representação da Virgem com o Menino, obra do escultor do Renascimento italiano Gregorio di Lorenzo (Palácio de Monserrate), proveniente da coleção de Sir Francis Cook, antigo proprietário de Monserrate, e classificada como “Tesouro Nacional” em 2021.
Sobre a pintura da princesa filantropa já tem lugar reservado. “Logo após a morte do marido e sobrinho, D. Maria I pergunta-lhe o que deseja e ela pede que a levem para Queluz. Gostava especialmente do palácio, viveu aqui, tem zona de aposentos, e é ali que colocaremos a obra, ainda em dezembro”.