Uma ambulância preta descaracterizada, reservas de sangue exclusivas, um helicóptero a postos para qualquer problema. O dispositivo para receber um Papa é complexo e exige uma preparação detalhada, que dura meses. O Observador conta como foram os bastidores da visita de 2017, do ponto de vista médico.
Há seis anos, o plano de atuação preparado para responder a qualquer problema de saúde que o Papa pudesse ter contemplava meios de socorro personalizados e exclusivamente dedicados ao Sumo Pontífice, circuitos de acesso aos hospitais destinados também somente ao Papa, quartos hospitalares reservados caso algo corresse mal.
O médico intensivista Rui Costa foi o elemento do INEM escolhido para executar o plano de resposta clínica a qualquer problema de saúde que pudesse afetar o Papa Francisco, durante a primeira visita que este fez a Portugal, em maio de 2017, para participar nas comemorações do centenário das Aparições de Fátima.
A partir do Hospital do Litoral Alentejano, em Santiago do Cacém, onde trabalha desde 2018, o médico (com experiência no serviço de helicópteros de emergência e em eventos de grandes dimensões ao serviço do INEM) disse ao Observador acreditar que o plano traçado para este ano seja semelhante e que, apesar das dificuldades no SNS, “não haverá qualquer limitação dos cuidados a prestar ao Papa” durante a segunda visita que o Sumo Pontífice fará a Portugal, entre 2 e 6 de agosto deste ano, aquando da Jornada Mundial da Juventude.
Como foi preparada, do ponto de vista médico, a visita de dois dias que o Papa Francisco fez a Portugal em 2017?
Havia um elemento médico, eu, e um elemento de enfermagem em acompanhamento permanente a Sua Santidade. As decisões clínicas eram minha responsabilidade. Tínhamos sempre connosco, rapidamente disponíveis, numa questão de minutos, uma VMER e uma ambulância, ambas descaracterizadas de modo a não serem tão chamativas.
Essa ambulância estava equipada de forma diferente do habitual ou era uma ambulância ‘normal’?
Não tinha nada de diferente, mas essa ambulância estava destinada exclusivamente ao Papa.
As duas viaturas destacadas em 2017 para Fátima estão sempre descaracterizadas ou foram alteradas propositadamente para a visita do Papa?
Não sei. A ambulância era preta e a VMER era uma carrinha station um pouco diferente das outras, já que tinha todo o material na parte de trás. Tenho ideia de que estes veículos já tinham sido utilizados noutros eventos. Duvido de que tenham sido pintados apenas para este evento. O INEM faz algumas missões em que usa veículos descaracterizados.
Como estava montado o protocolo de atuação, caso fosse necessário prestar cuidados médicos ao Papa?
Existia um plano de atuação, que envolvia a abordagem inicial (comigo e com um elemento de enfermagem). Tínhamos um trolley com equipamento médico, não muito diferente das malas que utilizamos nas saídas VMER [Viatura Médica de Emergência e Reanimação]: tínhamos fármacos para uma intervenção inicial rápida. Na ambulância, que estava a uma questão de minutos — e que acompanhava as deslocações do Papa —, havia mais um reforço [de meios para intervenção] caso houvesse necessidade. Secundariamente, tínhamos um hospital de campanha situado no recinto do santuário de Fátima, onde estavam ainda mais fármacos e de outros tipos de dispositivos, que permitiriam uma estabilização do Papa em caso de necessidade. Este hospital não era exclusivamente destinado ao Papa. No entanto, tínhamos, por exemplo, unidades de transfusão sanguínea especificamente para o Papa.
O que aconteceria se o Papa precisasse de cuidados hospitalares?
O plano de intervenção seria a abordagem inicial no local da ocorrência, uma transferência rápida para um meio de socorro (nomeadamente para a ambulância que mencionei). Depois tínhamos um helicóptero destinado exclusivamente a transportar o Papa em caso de necessidade, podendo a unidade hospitalar que iria receber o Papa ser o Hospital de Leiria ou o Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Tínhamos, em ambos, protocolos criados, com corredores de acesso direto às Unidades de Cuidados Intensivos, com camas que não estavam reservadas [para o Papa] mas havia capacidade de gerir os doentes que estavam nesses serviços para receber o Papa.
O Papa Francisco poderia ter sido admitido numa enfermaria normal? Ou apenas em cuidados intensivos?
O que estava formalizado era uma admissão em ambiente de Medicina Intensiva, pensando no pior cenário possível.
E esses hospitais tinham quartos destinados somente ao Papa?
O Hospital de Leiria dedicou-lhe exclusivamente um quarto. Acredito que o plano atual, para este ano, não seja muito diferente. O mesmo foi feito quando veio a Portugal o [presidente dos EUA] Barack Obama ou o Mahmoud Abbas [presidente da Autoridade Palestiniana].
Os corredores de acesso aos hospitais, que estavam criados, eram corredores aéreos?
Aéreos e não só. Os postos de comando de tráfego aéreo estavam avisados da presença daquela aeronave no local [o helicóptero estava aparcado num campo de futebol em Fátima] e da eventual necessidade de descolagem imediata. Por outro lado, o acesso ao local de aterragem também estava facilitado para diminuir ao máximo o tempo de transporte, sendo que, nas próprias instituições hospitalares, também havia um percurso que não era o percurso standard [para os restantes doentes]. Em Santa Maria, por exemplo, a entrada não se fazia através da urgência, mas sim por aquelas rampas atrás da estátua do Egas Moniz, que dão acesso ao piso 2, e de onde o Papa seguiria diretamente para os cuidados intensivos. Tudo isto foi trabalhado, ao longo de vários meses, pelo INEM. A gestão do meio aéreo foi articulada pelo INEM com a Proteção Civil e com a ANAC [Autoridade Nacional de Aviação Civil].
Nunca foi equacionado o transporte do Papa para um hospital privado, com outro tipo de condições a nível dos espaços e da privacidade?
Não foi equacionado em 2017.
Houve uma coordenação da equipa médica do INEM com os médicos do Vaticano?
Sim. Algumas semanas antes fomos informados pelo médico pessoal do Papa Francisco de quais seriam as suas condições de saúde, medicações habituais. Recebemos uma nota clínica sobre a condição de saúde do Papa à data, nomeadamente com os diagnósticos médicos de maior relevo e que poderiam alterar a nossa abordagem.
O médico do Vaticano teria de estar presente de fosse necessário prestar cuidados ao Papa?
O médico pessoal do Papa acompanhou-o, tal como nós. Entre o grupo de pessoas que rodeava o Papa, estava o seu médico.
Acabaram por ter de intervir nalguma situação ou a viagem decorreu sem nenhum percalço de saúde?
Houve uma pequena intercorrência, resultante do cansaço acumulado, da viagem. Foi uma pequena indisposição do Papa, nada de particular relevo, que nem sequer motivou nenhuma intervenção específica. Foi mesmo [recomendado] só repouso.
Recorda-se de algum momento que o tenha marcado durante esse dias em que acompanhou o Papa Francisco?
Recordo particularmente dois. O Papa chegou num avião da Alitalia à base aérea de Monte Real. Aí, caso alguma coisa acontecesse, seriam utilizados meios dos serviços de saúde militares. Depois, o Papa foi transportado num helicóptero da Força Aérea, um EH-101 Merlin, desde a base aérea de Monte Real para Fátima. Nós fizemos o acompanhamento no tal helicóptero que estava reservado (partimos da base de helicópteros de emergência médica, sediada em Loures), para qualquer necessidade de evacuação aérea. Um dos momentos mais marcantes foi, ao chegar a Fátima, ver a multidão presente no recinto. A perspetiva aérea da multidão foi um dos momentos que mais recordo. O segundo momento mais marcante foi quando o avião do Papa levantou em direção a Itália. Aí, tive a sensação de ‘ok, correu tudo bem. Ele está bem e saiu daqui bem’.
Considera que o estado em que se encontra hoje o SNS — são conhecidas as dificuldades em preencher escalas no serviços de urgência e a falta generalizada de profissionais — pode afetar, de alguma forma, a confiança do Vaticano nos cuidados que poderá ser necessário prestar ao Papa aquando da Jornada Mundial da Juventude?
Eu acredito muito no SNS, não pretendo sair, e continuo, na minha prática clínica, a defender o SNS como o bastião dos cuidados de saúde em Portugal. Os cuidados de saúde prestados no SNS continuam a ser a referência no nosso país. Tenho a certeza de que não haverá qualquer limitação dos cuidados a prestar ao Papa no SNS. E a realidade italiana não é muito diferente da nossa, do ponto de vista médico.
Espera-se entre um milhão e um milhão e meio de peregrinos em Lisboa no início de agosto. Considera que o INEM terá capacidade para dar resposta a todas estas pessoas? Está confiante de que o sistema de saúde estará à altura do evento?
Acredito que tudo vá correr bem. As pessoas que estão atualmente à frente do INEM têm provas dadas no campo da organização deste tipo de eventos, como a Jornada Mundial de Juventude. Em relação ao dispositivo que vai ser empregue, acredito que não seja muito diferente do de 2017, porque estamos a falar de um evento que vai acontecer na cidade de Lisboa, com vários hospitais nas proximidades com capacidade para dar resposta ao Papa. Isso facilita [o processo] — em 2017, a dificuldade maior que tivemos era colocar o Papa rapidamente num meio de transporte para o levar a um centro de referência. Claro que é sempre difícil trabalhar com mais de um milhão de pessoas. Estamos a falar de um número que faz com que a necessidade de planeamento prévio seja ainda mais importante. No entanto, a partir do momento em que há corredores de evacuação e em que é dedicado tempo ao planeamento, qualquer coisa, acautelando o pior cenário, será rapidamente resolvida. Claro que 1,5 milhões de pessoas dificulta a criação dos corredores de evacuação.