Marcelo Rebelo de Sousa tinha combinado com António Costa não irem a Pedrógão Grande assinalar os seis anos dos incêndios de 2017. Quando surgiram as críticas públicas pela ausência dos dois, o primeiro-ministro anunciou a ida à inauguração do Memorial das Vítimas. O Presidente não escondeu o desconforto e, numa primeira reação, disse até que só iria, como todos os anos, “incógnito” — “promessa” que cumpriu há três dias na calada da tarde. O Governo acabou por acomodar a cerimónia desta terça-feira à agenda para que o Presidente pudesse chegar a tempo de Itália. Feita a vontade de Belém, não houve mais picardias. Os dois entraram e saíram de Pedrógão sem declarações aos jornalistas, para evitar segundas leituras. Só falaram do púlpito. Os sinais foram de normalização da relação e Marcelo até fez um anúncio que vincula Costa para o dia seguinte às Europeias.
O cachimbo da paz começou a desenhar-se pouco antes do início da cerimónia. O Presidente da República fez questão de cumprimentar, assim que chegou, vários ministros, incluindo aquele que queria fora do Governo: João Galamba. Foi a Infraestruturas de Portugal, que o ministro tutela, que assumiu o pagamento da obra e cujo preço já foi contestado pelas populações locais: 1,8 milhões de euros.
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Resolvida a questão de Galamba, Marcelo acabaria por fazer, do púlpito, um anúncio que disse esperar “contar com o apoio do Governo”. O Presidente da República revelou que as cerimónias do 10 de junho, um dia depois das eleições europeias de 2024, se vão realizar naquela zona: nos três municípios mais afetados pelos incêndios de junho de 2017. Isto significa que o Presidente da República conta estar com António Costa naquele mesmo sítio no dia seguinte às eleições que — de acordo com vários comentadores e artigos jornalísticos — podem ditar a ida do primeiro-ministro para um cargo europeu.
Marcelo anuncia que 10 de junho será nos municípios afetados por incêndios de 2017
Antes de entrar para o carro, o Observador ainda lançou uma pergunta ao Presidente. “Conta com a presença do primeiro-ministro nas comemorações do 10 de junho daqui a um ano?”. Marcelo entrou no veículo sem responder. Minutos depois, o primeiro-ministro — que ficou mais tempo a conversar com autarcas e entidades locais — sairia igualmente do local sem responder a questões dos jornalistas. Atrás dele, perdido à procura do carro, João Galamba também saiu rapidamente da ‘zona de pressão’. No 10 de junho deste ano, o ministro foi vaiado — o que aconteceu porque o nome foi anunciado nas colunas –, mas em Pedrógão passou despercebido da mais de uma centena de pessoas que assistiram à cerimónia.
Costa e Marcelo evitaram (quase sempre) segundas leituras
António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa deixaram (quase toda) a politiquice fora da cerimónia, mas não abdicaram de ter os seus apartes e idiossincrasias. No verão de 2022, António Costa foi criticado por ter dito em julho que “os incêndios só ocorrem se uma mão humana, voluntariamente ou por distração, os tiver provocado”. Agora, voltou a insistir que 64% dos incêndios ocorridos entre janeiro e o final de abril aconteceram por “negligência humana”. Ficou feito o aviso.
Já o Presidente da República também fez um discurso que não deu margem a grandes leituras, mas teve pormenores nas entrelinhas. Depois de ter feito a maior parte das visitas do 10 de junho no Peso da Régua, há duas semanas, ao lado do Almirante Henrique Gouveia e Melo (com quem partilhou um ginger ale), voltou a elogiar o trabalho do Chefe do Estado Maior da Armada. Gouveia e Melo, que assistia à cerimónia, ouviu Marcelo a elogiar a forma como na altura, como vice-almirante, o chefe militar organizou a logística das refeições que alimentaram os operacionais que combatiam o fogo.
A crítica antes da inauguração e a Raposa chama
Antes de seguir para a inauguração, António Costa ouviu algumas críticas do presidente da câmara do Sardoal. Miguel Borges, do PSD, lembrou ao primeiro-ministro — no encerramento de um dia com várias visitas no terreno — que antes do “fatídico dia” já tinha avisado que “a estrutura de Proteção Civil tinha pés de barro”.
Do ponto de vista da reforma florestal, o autarca elogiou o trabalho feito após os incêndios de 2017 (mesmo que tenha dito que “não era preciso ter havido um acontecimento tão trágico”), mas alertou que a estrutura da Proteção Civil continua a ter muitas debilidades e que continuam a existir “municípios muito vulneráveis” do ponto de vista da resposta que podem ao combate aos incêndios.
Quando chegou a sua vez de falar, António Costa optou por destacar o copo meio-cheio, relevando o elogio feito pelo autarca, por exemplo, ao programa de sensibilização de crianças “Raposa chama“. À chegada ao Centro Cultural, perante um ambiente mais fresco no exterior, António Costa diria uma expressão sobre a temperatura que acabaria por ser profética para o que se passou na inauguração do memorial minutos depois: “O clima aqui é outro”. E, com Marcelo, foi.