A dias de nova paralisação dos motoristas de matérias perigosas, o sindicato que representa os trabalhadores volta a estar no centro da discussão. O Ministério Público (MP) quer agora a dissolução da associação sindical. A motivar a ação estão o “processo de constituição” e “os estatutos” do Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP), designadamente “a participação na assembleia constituinte de pelo menos uma pessoa que não é trabalhador por conta de outrem, no âmbito profissional indicado nos estatutos”.
Pedro Pardal Henriques, o assessor jurídico do SNMMP, que chegou a ser vice-presidente (aliás, ainda consta como tal na página da internet do sindicato) já veio dizer que, durante a constituição da associação sindical, foi o único membro da assembleia constituinte que não era motorista de matérias perigosas, mas garante que cumpriu o que estava estabelecido nos estatutos (que, aliás, foram enviados à Direção-Geral do Emprego e das Relações do Trabalho — DGERT — e ao Ministério Público, no final do ano passado).
Numa primeira reação, Pardal Henriques disse que só tomou conhecimento do caso pela comunicação social, considerando-o um “ataque claro às vozes que se levantam contra a corrupção, contra a fraude fiscal e contra os baixos salários”. O advogado criticou ainda o facto de o sindicato não ter sido notificado antes do processo para corrigir algum problema. Porque só agora avançou o MP? O sindicato não foi mesmo notificado? E se não, deveria ter sido?
As dúvidas sobre a possibilidade de Pedro Pardal Henriques ser associado de um sindicato não são novas. Segundo a Lusa, no início do mês, a comissão instaladora do Sindicato dos Vigilantes e Seguranças de Portugal (SVP) queixou-se de que a DGERT e o Ministério do Trabalho estavam “a bloquear o arranque do sindicato”, ao pedir uma justificação pela escolha de Pedro Pardal Henriques para a mesa da assembleia constituinte.
Em resposta, a DGERT explicou: “Concluiu-se que na assembleia constituinte tinha tomado parte uma pessoa que aparentemente parecia não deter relação jurídica de trabalho subordinada no âmbito profissional indicado nos estatutos – segurança e vigilância”. Essa pessoa é Pedro Pardal Henriques.
Por isso, a entidade tutelada pelo Ministério do Trabalho “solicitou aos representantes do SVP que juntassem ao processo documentação comprovativa de que Pedro Pardal Henriques detinha a qualidade de trabalhador por conta de outrem, para a categoria profissional prevista nos estatutos, bem como das demais pessoas que participaram nas assembleias constituintes em causa, condição exigida na lei para a constituição de associações sindicais”. O SVP “apresentou nova documentação relativa à sua constituição, da qual o doutor Pedro Miguel Braz Pardal Henriques já não consta do elenco das pessoas singulares que participaram na constituição do SVP, nem figura como presidente da mesa da assembleia”.
Ao SNMMP, a DGERT não pediu documentos, nem notificou o sindicato, segundo o próprio Pardal Henriques. O processo chega em setembro às mãos de um juiz do Tribunal do Trabalho de Lisboa.
O que diz o Ministério Público?
Em comunicado, o Ministério Público avança que “instaurou uma ação declarativa de Extinção de Associação Sindical contra o SNMMP – Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas”. E que essa ação foi instaurada “na sequência da Apreciação Fundamentada sobre a legalidade da constituição e dos Estatutos do SNMMP“. Esta apreciação é produzida pela DGERT e remetida ao Ministério Público.
Após a “análise do processo de constituição e dos estatutos da mencionada associação”, o MP concluiu “pela existência de desconformidades com preceitos legais de caráter imperativo, designadamente a participação na assembleia constituinte de pelo menos uma pessoa que não é trabalhador por conta de outrem, no âmbito profissional indicado nos estatutos”.
Embora o MP não revele nomes, Pedro Pardal Henriques, assessor jurídico do SNMMP, já veio dizer que era o único membro da assembleia constituinte que não era motorista de matérias perigosas. E portanto, em causa está a participação do advogado na assembleia constituinte do sindicato. É essa assembleia que aprova os estatutos.
Segundo a Lusa, a Petição Inicial, que tem como “autor” o MP e como “réu” o SNMMP, deu entrada no Juízo do Trabalho de Lisboa em 9 de agosto, tendo sido distribuída ao Juiz 3 no dia seguinte. O processo está classificado como “Impugnação Estatutos/Delib.Assembleias/Actos Eleitorais”.
Estatutos do SNMMP dizem que pode ser sócio quem contribui para “os objetivos” do sindicato. Esta norma é legal?
Para responder a esta pergunta é preciso olhar primeiro para os estatutos do SNMMP. No artigo 8.º, referente à “admissão dos associados”, pode ler-se que a associação sindical aceita pessoas singulares que exerçam ou já tenham exercido a profissão de motorista de matérias perigosas, ou que “desenvolvam atividades de interesse ou interligadas com os objetivos e fins da Associação Sindical“. Pedro Pardal Henriques frisa que se inclui neste último ponto e que, portanto, nada fez “contra os estatutos”. Em teoria, esta alínea permitiria a qualquer pessoa fazer parte do sindicato.
Artigo 8.º
Admissão de Associados
1 – A admissão na Associação Sindical faz-se mediante pedido de inscrição, em modelo próprio, apresentado à Direção, que o apreciará e sobre ele decidirá no prazo de 15 dias.
2 – Podem fazer parte da Associação Sindical as pessoas singulares que:
a) Exerçam a atividade de motorista de matérias perigosas;
b) Tenham exercido a atividade de motorista de matérias perigosas, e que pela prática de atos relevantes, contribuam para o prestígio e desenvolvimento da Associação;
c) Desenvolvam atividades de interesse ou interligadas com os objetivos e fins da Associação Sindical.
Mas, por estar nos estatutos, este artigo é legal?
Luís Gonçalves da Silva, especialista em direito laboral, diz que não e dá um exemplo: “Imaginemos que há uma regra nos estatutos que diz que o património, em caso de liquidação da associação sindical, fica para os filiados. A lei diz que isso não pode acontecer”. E defende: o advogado Pedro Pardal Henriques “não pode integrar uma associação sindical que representa uma atividade que não exerce”.
Mas o que diz a lei a este respeito? “Não há uma norma concreta [no Código do Trabalho], mas nem tudo o que é proibido tem de estar expressamente previsto na lei”, avança Gonçalves da Silva, para quem, ainda assim, é claro que o facto de não ser motorista impede o assessor jurídico de fazer parte dos órgãos sociais do SNMMP e de votar. Para esta conclusão, cita algumas partes do Código do Trabalho: “Os trabalhadores têm o direito de constituir associações sindicais a todos os níveis para defesa e promoção dos seus interesses socioprofissionais.” Além disso, lê-se na lei, “pode manter a qualidade de associado o trabalhador que deixe de exercer a sua atividade, mas não passe a exercer outra não representada pelo mesmo sindicato ou não perca a condição de trabalhador subordinado“.
Aliás, nos estatutos do sindicato é referido que o SNMMP “associa e representa os trabalhadores que exerçam funções de motoristas profissionais de matérias perigosas” e que um dos objetivo é “representar e defender os interesses socioprofissionais dos seus associados”.
Gonçalo Gago da Câmara, jurista, tem dúvidas sobre a possibilidade de Pardal Henriques ser sócio de um sindicato. “A minha intuição é a de que não é compatível uma pessoa que tenha uma profissão deste cariz [advogado] estar associado a um sindicato de motoristas de matérias perigosas. Até porque não é esse o foco da atividade. A atividade de advocacia é do interesse do sindicato, mas não para este propósito. O propósito é representar os interesses do sindicato, não necessariamente para fazer parte integrante do mesmo.” O especialista acrescenta que a redação do artigo 8.º é ambígua. “O que são atividades de interesse?”, questiona.
Já Pedro Pardal Henriques tem outro entendimento: os estatutos foram enviados para a DGERT e para o Ministério Público que, garante, nunca notificaram o sindicato. “Se é uma irregularidade, basta que o Ministério Público nos notifique e nos diga ‘o Dr. Pedro Pardal Henriques não pode ser associado deste sindicato porque nós entendemos que não’”. E, na verdade, segundo a lei, a DGERT deveria ter notificado o sindicato oito dias após a publicação dos estatutos no Boletim do Trabalho e do Emprego, caso encontrasse “disposições contrárias à lei”. O Observador questionou o Ministério do Trabalho, que tutela a DGERT, sobre se efetivamente notificou ou não o sindicato, mas fonte oficial remeteu para um comunicado enviado às redações — que não responde à questão.
DGERT devia ter notificado o sindicato antes do processo?
É isso que diz a lei. Segundo o artigo 447.º do Código do Trabalho, relativo à constituição, registo e aquisição de personalidade, “a associação sindical ou a associação de empregadores constitui-se e aprova os respetivos estatutos mediante deliberação da assembleia constituinte, que pode ser assembleia de representantes de associados, e adquire personalidade jurídica pelo registo daqueles por parte do serviço competente do ministério responsável pela área laboral”, ou seja, pela DGERT.
O sindicato deve enviar para essa entidade “o requerimento do registo de associação sindical (…), assinado pelo presidente da mesa da assembleia constituinte”, assim como os “estatutos aprovados e de certidão ou cópia certificada da ata da assembleia, tendo em anexo as folhas de registo de presenças e respetivos termos de abertura e encerramento”. Depois de receber esses documentos, a DGERT “publica os estatutos no Boletim do Trabalho e Emprego (BTE), nos 30 dias posteriores à sua receção”. Essa publicação aconteceu a 8 de novembro de 2018.
Oito dias após essa publicação, a DGERT deve ainda remeter “ao magistrado do Ministério Público no tribunal competente certidão ou cópia certificada da ata da assembleia constituinte, dos estatutos e do pedido de registo, acompanhados de apreciação fundamentada sobre a legalidade da constituição da associação e dos estatutos“.
E é na alínea 5 que entram as dúvidas. Isto porque, “caso os estatutos contenham disposições contrárias à lei” (como agora o MP alega), a DGERT deve, oito dias após a publicação dos estatutos no BTE, notificar “a associação para que esta altere as mesmas, no prazo de 180 dias”.
O próprio MP também pode agir. Se, quando recebe os documentos da DGERT, detetar que a “constituição ou os estatutos iniciais da associação” são “desconformes com a lei imperativa”, o magistrado do Ministério Público no tribunal competente tem de, 15 dias após a receção dos documentos, promover “a declaração judicial de extinção da associação [como agora fez] ou, no caso de norma dos estatutos, a sua nulidade, se a matéria for regulada por lei imperativa ou se a regulamentação da mesma não for essencial ao funcionamento da associação”.
O sindicato garante que nunca foi notificado, nem pela DGERT, nem pelo MP. “Não é o MP que vem agora dizer ‘olha, vamos fechar um sindicato, porque há aqui um artigo que não está em conformidade’. Isto chama-se sanar irregularidade. Deveríamos ser notificados para sanar esta irregularidade. Caso não fosse sanada, aí sim partia-se para uma dissolução do sindicato”, defendeu Pardal Henriques, esta quarta-feira.
Gonçalo Gago da Câmara coloca uma possibilidade para o facto de o sindicato não ter sido notificado: a DGERT tem de enviar ao MP uma “apreciação fundamentada sobre a legalidade da constituição da associação e dos estatutos”, mas a entidade pode não ter encontrado ilegalidades e, por isso, não notificou o SNMMP. Aliás, no comunicado que o Ministério do Trabalho enviou às redações, pode ler-se que foi o MP que “solicitou informações à Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT), no âmbito de um processo por si desencadeado, sobre algumas normas estatutárias do sindicato em causa”.
“Na sequência deste pedido, a DGERT analisou os aspetos específicos requeridos pelo Ministério Público, tendo remetido a sua apreciação fundamentada a esse respeito.” Ficam, porém, algumas questões por responder: encontrou ou não a DGERT ilegalidades após a constituição do sindicato e no prazo legal para o efeito (oito dias após a publicação dos estatutos)? Se encontrou, porque não notificou o sindicato? Se não encontrou na altura, encontrou agora depois do pedido do MP? E porque só agora o MP pede a dissolução do sindicato? Questionada pelo Observador, a DGERT remeteu para o comunicado — que não responde a estas questões.
Se Pardal Henriques sair do sindicato, questão fica resolvida?
A ação do MP prende-se com as “desconformidades com preceitos legais de caráter imperativo”, como a participação na assembleia constituinte de “pelo menos uma pessoa que não é trabalhador por conta de outrem”. Segundo o advogado Luís Gonçalves da Silva trata-se de uma matéria que é “inexpugnável”, ou seja, não pode ser sanada, “a não ser que possamos voltar atrás no tempo”, ironiza o especialista.
Uma vez que em causa estão factos passados que determinaram a constituição do sindicato, mesmo que Pedro Pardal Henriques se desfilie do sindicato, as “desconformidades” da assembleia constituinte mantêm-se. Logo, o sindicato terá de continuar a responder legalmente.
Gonçalo Gago da Câmara defende, porém, que o Código do Trabalho está escrito de forma a dar aos sindicatos a possibilidade de sanar as irregularidades logo após a sua constituição (isto se, como já explicámos, a DGERT concluir que existiu uma legalidade e, por isso, notificar o sindicato). Nesse contexto, “há sempre hipótese de sanar” as ilegalidades.
Sindicato pode extinguir-se? Se sim, o que acontece com a greve?
Agora que o Ministério Público avançou com a ação judicial contra o sindicato, o juiz do Tribunal do Trabalho vai oficiar o SNMMP, que, por sua vez, vai ter o direito de se pronunciar. Só depois o juiz poderá decidir. “A extinção ou será decidida a favor, ou contra. Sendo decidida a extinção, o sindicato será extinto, e umas horas depois, eventualmente, será criada uma nova associação”, acrescenta Luís Gonçalves da Silva, sublinhando que, “mesmo que esteja em causa a extinção da associação sindical, nada impede que, 24 ou 48 horas depois, haja uma nova, com os mesmos objetivos e com os mesmos filiados”.
Segundo o comunicado do Ministério do Trabalho, “cabe ao Ministério Público a promoção da declaração judicial de extinção da associação sindical ou empresarial, caso entenda que a sua constituição ou os seus estatutos são desconformes com a lei”. Além disso, sublinha a tutela, “só uma decisão judicial transitada em julgado pode, a partir do momento da publicação em Boletim de Trabalho e Emprego (BTE) dos estatutos de associações empresariais e sindicais, decretar a extinção de uma associação empresarial ou sindicato”.
“Assim, a associação em causa continua a ter personalidade e capacidade jurídica para tal, enquanto não for proferida decisão judicial transitada em julgado e o cancelamento do seu registo não for publicado no BTE.”
É por isso que o processo pode não ter qualquer impacto na greve de 15 dias marcada para 7 de setembro. O sindicato continua em funcionamento, tal como estava, e não é provável que a decisão do juiz do Tribunal do Trabalho seja tomada antes dessa altura — pelo que o risco de extinção a meio da greve dificilmente se coloca.