Aos 38 anos, Gonçalo Fernandes tinha uma vida relativamente calma como anestesista nos hospitais de um grupo privado. “Conseguia ir buscar e levar os meus filhos à escola e isso era importante para mim”, diz em entrevista ao Observador. Hoje em dia já não o consegue fazer, não apenas por falta de tempo, mas também por precaução, uma vez que integra desde o dia 23 de março a unidade de cuidados intensivos do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos. Não foi uma obrigação, foi uma opção.
Quando o novo coronavírus invadiu a Europa, o médico especialista em anestesia e em medicina intensiva ganhou cedo a consciência de que o mundo iria mudar. Começou por suspender as aulas de uma pós-graduação e não demorou muito a disponibilizar-se para voltar ao Serviço Nacional de Saúde, que tinha abandonado há oito meses com o intuito de mudar de vida. “Não consegui ficar em casa a ver as notícias.”
No regresso ao hospital onde trabalhou sete anos, quase tudo o que encontrou é novo, do silêncio nos corredores ao equipamento obrigatório para vestir. Apesar de se assumir como um pragmático e otimista, e de tudo o que vê, Gonçalo admite que o mais difícil são os telefonemas com os familiares dos doentes para os informar sobre o seu estado clínico. Felizmente ainda não viu nenhum a morrer pelo novo coronavírus no hospital, mas reconhece que inevitavelmente isso irá a acontecer. Parece estar preparado para isso e, para já, não sente medo de levar o vírus para casa, onde vive com a mulher e três filhos menores.
Para Gonçalo, a capacidade de resposta a esta pandemia não passa apenas por existem mais ventiladores, mas pelo reforço de recursos humanos. Foi por acreditar piamente nisso que se voluntariou, sem apelos ou telefonemas prévios. Garante que, apesar da tempestade que ninguém estava preparado para enfrentar, o espírito entre médicos é de união. “Sinceramente, não vejo ninguém triste.”
Preocupa-o a desobediência dos pais, o esquecimento generalizado de outras doenças potencialmente fatais e a possibilidade da falta de equipamento de proteção individual no seu local de trabalho. O que o faria desistir? “Se os meus filhos apresentarem sintomas graves, deixo imediatamente de trabalhar”, responde de imediato.
Eis o seu testemunho em discurso direto:
O percurso
“Sou natural de Cascais, mas em 2007 resolvi mudar-me para o Porto com a minha mulher, que é cirurgiã colo-retal, e os meus três filhos menores. Naquela altura, estava a terminar o curso, tinha boas notas e poderia ser colocado facilmente onde quisesse, mas por uma questão de vaga para a minha mulher decidimos vir para esta zona do país.
Fiz o internato no Hospital de Gaia, especializei-me em anestesia no Hospital Padre Américo, em Penafiel, e mais tarde em medicina intensiva, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, onde trabalhei sete anos, de 2012 até ao verão de 2019. Aí decidi mudar de vida, muito motivado pelo facto de só ter vida familiar com mais qualidade uma vez por semana, já que gerir os meus turnos com os da minha mulher nem sempre era fácil.
Não saí do hospital chateado com ninguém e, na verdade, nunca deixei a medicina de parte. Tinha era muita vontade de estudar, então inscrevi-me numa pós-graduação em gestão e economia na Porto Business School, em Matosinhos, e queria seguir para o doutoramento. Paralelamente aos estudos, era também anestesista nos hospitais do grupo Trofa Saúde. Conseguia ir levar e buscar os miúdos à escola, o que para mim era muito importante.”
A decisão
“Quando a Covid-19 invadiu a Europa, especialmente Itália, fiquei logo preocupado e pareceu-me tudo muito óbvio e muito claro. Fiz aquilo que deveria ter feito. Tinha aulas duas vezes por semana em horário pós laboral e decidi suspendê-las. De repente, comecei a ver o hospital onde “nasci” e a equipa responsável pelo médico que hoje sou a ser exposta a uma situação extraordinária e a um stress extremo. Não consegui ficar parado em casa a ver as notícias e decidi agir.
Ninguém precisou de me telefonar ou de fazer qualquer apelo. Escrevi um e-mail ao diretor do serviço de medicina intensiva do Hospital Pedro Hispano e disse-lhe que teria em mim “um soldado na reserva”. A resposta veio dois dias depois. Fui ao hospital reunir-me com ele e comecei a ser escalado para trabalhar no serviço há duas semanas. Tenho a certeza que com o capital de conhecimento inegável que tenho nesta área se esta porta não se abrisse iria bater a outras, sem problema nenhum. Sossegado em casa é que não ficaria.
Não foi, obviamente, uma decisão fácil ou pouco refletida, mas foi a que teve que ser, a que fazia e continua a fazer sentido. Feliz ou infelizmente ganhei uma noção do impacto desta doença mais cedo do que muita gente. Dou um exemplo concreto: visitei os meus pais em Cascais pela última vez no penúltimo fim de semana de fevereiro, não lhes disse que era uma despedida, mas tinha claramente a consciência disso.
Paralelamente ao trabalho que faço no Hospital Pedro Hispano, onde tenho um contrato de trabalho renovável por quatro meses, fui convidado para coordenar uma unidade cuidados intensivos no Hospital Senhor do Bonfim, em Vila do Conde. Era uma resposta que não existia e neste momento está ocupada apenas por doentes não infetados pela Covid-19.”
O regresso
“Quando regressei ao Pedro Hispano, o que me mais me chamou a atenção foram os corredores vazios, sem o habitual movimento provocado pelas consultas externas, e o espírito de equipa. Sinceramente, não vejo ninguém triste. Apesar de estarmos a lidar com uma situação muito difícil e de existirem cada vez mais doentes, muitos deles novos, há um ânimo generalizado, uma atitude de entrega, porque sentimos que estamos a ter um impacto importante na vida das pessoas. Claro que há receio e algum cansaço, até porque sabemos que os próximos 15 dias preveem-se especialmente complicados, mas o mais difícil para mim são mesmo os telefonemas aos familiares.
Temos uma tradição judaico-cristã de que a família é o centro de tudo e comanda os nossos valores, mas nos cuidados intensivos cada doente está sozinho, não recebe visitas. É estranho. Todos os dias fazemos um telefonema a um familiar a informarmos sobre o estado clínico da pessoa infetada. Tenho feito alguns e é duro, faz muita impressão, principalmente quando estamos a falar de situações críticas. Sinto vontade de tranquilizar e de dar esperança, mas ao mesmo tempo não posso contar que é tudo um mar de rosas, porque não é. Essa gestão não é nada fácil de fazer, mas tem um lado bom que é o reconhecimento do outro lado . Há uns dias houve uma senhora que chorou a agradecer-me, isso toca-nos sempre.”
A rotina
“A minha mulher, que é cirurgiã colo-retal no Hospital de Gaia, conseguiu ficar em casa com as crianças, embora continue a ajudar e a fazer a sua urgência semanal. Nunca ponderei sair de casa desde que recomecei a trabalhar nos cuidados intensivos. A minha casa tem 400 metros quadrados de área, dá perfeitamente para todos.
Quando chego a caso tiro a roupa e o calçado e vou tomar banho, a minha roupa é embalada, lavo frequentemente as mãos e só estou com a minha família ao almoço e ao jantar, onde todos percebemos que a distância é necessária. Durmo num quarto sozinho para não correr riscos, mas acredito que corra mais riscos na rua do que propriamente dentro do hospital, onde somos treinados para nos protegermos e antecipar tudo. Se for a um supermercado, não sei quem efetivamente tocou naquele pacote de arroz . Para isso não estamos tão protegidos como deveríamos.
Estou a fazer turnos de 24 horas nas duas unidades de cuidados intensivos, cada uma tem dez camas, uma com oito doentes Covid-19 e outra com quatro doentes com outras patologias.
De manhã o colega que faz o turno da noite faz um briefing sobre cada doente, depois dividimos tarefas e fazemos o planeamento para aquele dia e para cada paciente. Às 13h00 fazemos um novo briefing em que discutimos esse mesmo plano, que pode envolver mais exames, mais medicação, sedação ou mais vigilância.
Logo que entro no hospital tenho que usar a máscara cirúrgica obrigatória, mas só quando vou para a unidade é que aplico todo o equipamento de proteção individual, que inclui o fato completo, uma máscara P2, mais conhecida como bico de pato, e uma viseira.
Para já, não sinto que falte material, mas admito que é algo que pode vir a acontecer, embora não seja nada dramático nem crítico em relação a este assunto, como alguns dos meus colegas. Existe, de facto, um racionamento de equipamento e regras de utilização que dependem de uma gestão controlada, planeada e organizada que cada um pode e deve fazer. Por exemplo, quando entro nesta unidade faço uma lista de tarefas que preciso de desempenhar, para que consiga usar o material de forma consciente. Somos seres humanos e podemos errar, mas mesmo com todo o cansaço acumulado, acredito que é tudo uma questão de método.
Costumamos dizer que aqui temos doentes intensivos à séria, pois são doentes que não se resumem só à necessidade de ventilação, mas que são clinicamente muito deficientes e consomem bastantes recursos, tanto a nível de medicamentos como de acompanhamento, exigem, de facto, muito de nós. Quem trabalha numa ala como esta não pode mesmo sair deste perímetro, nem mesmo para ir ao bar. Agora as refeições são-nos trazidas diretamente e devidamente embaladas.”
As preocupações
“Acho que nunca me tinha zangado com o meu pai, mas já aconteceu por causa desta doença. Ele foi completamente irresponsável e saiu de casa para comprar uma coisa de bricolage no outro dia. A minha avó tem 86 anos e saiu para comprar coentros e levar a uma amiga. Este grupo etário não valoriza o que está a acontecer, porque tenho a certeza que nunca viveram nada assim.
Os meus pais ligam-me e dizem para eu ter cuidado com isto e com aquilo. Digo-lhes muitas vezes que a única maneira de me verem bem é conseguirem que eu trate menos pessoas e para isso acontecer têm mesmo de ficar em casa. A minha preocupação que lhes aconteça alguma coisa é algo que não me sai do espírito, é uma coisa que iria desorganizar um pouco aquilo que quero fazer: ajudar os outros.
Felizmente ainda não registamos óbitos no hospital e já demos alta a vários doentes, mas é algo que inevitavelmente vai acabar por acontecer. Acho mesmo que o verdadeiro ponto da resposta a esta pandemia não está nos ventiladores, como a maioria das pessoas pensa, está nos recursos humanos. É isso que leva à falta de capacidade de resposta do sistema de saúde. Esta é uma doença que veio para ficar e compete a cada um fazer o que puder.
Pensemos nisto como uma guerra. Numa guerra é relativamente fácil recrutar alguém com mais de 18 anos, dar-lhe uma arma para as mãos e ensiná-lo a disparar. Tratar doentes é muito mais do que isso. É redutor pensar ou afirmar que vamos salvar mais vidas se ligarmos mais ventiladores. É errado. Não se liga um ventilador e fecha-se a porta. Já para não falar de outros recursos bastante consumidos por estes doentes, como a medicação, a nutrição ou os equipamentos.
Outra das coisas que mais me preocupa são as restantes doenças agudas potencialmente fatais que não estão a ser valorizadas. Não nos podemos esquecer delas. Além das 10 mil mortes que podemos vir a ter pelo novo coronavírus, é preciso que se conte também a mortalidade colateral. Os doentes não Covid-19 são tão ou mais importantes. É necessário criar uma estrutura para mitigar essas situações. As grávidas têm de continuar a fazer exames, as crianças têm de ser continuar a ser vacinadas. O rastreio contra o cancro colo-retal, por exemplo, está parado. Mais pessoas doentes pode ser uma das muitas consequências desta doença.”