Não foi por vontade própria que Francisco São Bento, 39 anos, deixou a carreira de motorista de matérias perigosas, no início de 2018. A Atlantic Cargo, transportadora onde trabalhava, começou por transferi-lo para a carga geral devido a “necessidades sazonais”. Mas quando o agora sindicalista se preparava para retomar as funções no transporte de matérias perigosas, teve nova surpresa.
“Disseram-me que precisavam mais de mim no outro serviço. Manifestei-me, mas responderam: ‘Lamentamos, neste momento é o que temos'”, conta ao Observador o presidente do Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP). São Bento recusou a proposta (“a minha formação é de matérias perigosas”) e a empresa instaurou-lhe um processo disciplinar que acabou em despedimento. Impugnou a decisão em tribunal, numa ação judicial que se arrastou ao longo de “cerca de 10 ou 11 meses”, mas, devido à “situação financeira debilitada” em que se encontrava, acabou por aceitar um acordo com a empresa, com direito a uma indemnização — cujo valor prefere não revelar.
Francisco São Bento não tem dúvidas de que foi o envolvimento na criação da Associação Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas (ANMMP), em dezembro de 2017, que ditou o afastamento do transporte de combustíveis e, mais tarde, da Atlantic Cargo. “A empresa, quando se começou a aperceber que a associação estava a ser constituída, e que estava a ter imensa adesão — e porque as pessoas reivindicativas são personas non gratas — afastou-me.”
Do descontentamento na profissão ao convite a Pedro Pardal Henriques
Muito antes, há mais de duas décadas, quando tinha 18 anos, mudou-se “uma temporada” para os Estados Unidos da América, onde tinha família, e trabalhou em bares e na construção civil. De regresso a Portugal ingressou no setor dos transportes “aos 20 e poucos anos”. Por admiração da profissão? “Não foi uma questão de admiração. Conhecia algumas pessoas na área e comecei a pensar que podia gostar de exercer”. E assim o fez: primeiro a conduzir veículos ligeiros na área da distribuição, depois a conduzir pesados.
Já não sabe em que ano começou na Atlantic Cargo — “eu com cronologias sou péssimo”, brinca. Primeiro no transporte de carga geral, depois passou para as matérias perigosas. “Num evento de natal, fui abordado pelo diretor de recursos humanos que me fez essa sugestão, e aceitei de bom grado.” A formação, no valor de 650 euros, foi-lhe debitada do ordenado — e durante cerca de dois anos foi motorista de matérias perigosas, profissão que agora representa no diferendo com a Antram, associação patronal liderada por Gustavo Paulo Duarte, um durão do râguebi.
“Vi os problemas gravíssimos que estavam instalados no setor, os horários abusivos, o cansaço psicológico e físico e a forma como isso agravava a perigosidade do transporte”, revela. Um dia de trabalho podia chegar a ultrapassar as 17 horas. “Muitas vezes tínhamos de estar no estabelecimento de trabalho a aguardar serviço. Diziam-nos que ainda não sabiam que serviço tinham para nós. Havia dias em que entrava às 8 horas da manhã e só depois da hora de almoço é que me chamavam para um serviço de 10 ou 11 horas.”
O descontentamento era geral. E, por isso, em conversações com colegas, surgiu-lhe a ideia de criar uma associação que lutasse pela melhoria das condições de trabalho: a Associação Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas (ANMMP). Logo no primeiro encontro, apareceram 400 pessoas. Mas o destino estava traçado. “Contactámos ministérios, a própria Antram, que sempre nos fechou as portas porque não nos reconhecia enquanto organização, e diversas entidades do setor, a alarmar para o que se estava a suceder. Ninguém queria falar connosco. Passado cerca de um ano, concluímos que tínhamos chegado ao fim da linha como associação e que era preciso criar um sindicato.”
Nasceu, assim, no final de 2018, o Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP), que se tornou conhecido após a greve que parou o país em abril deste ano. Para ajudar no processo, São Bento chamou para assessor jurídico um primo da sua companheira: Pedro Pardal Henriques.
“Na altura em que estávamos a constituir a associação, sabíamos que era necessário termos um apoio jurídico, como qualquer instituição que defenda os interesses dos trabalhadores. E os nossos colegas concordaram. Falei com ele [Pedro Pardal Henriques]. Ele contou-me logo a história do pai [que trabalhou como camionista até ao dia antes de morrer], e disse que era uma causa nobre, que teria todo o gosto em defender-nos.”
O advogado Pedro Pardal Henriques tem sido o principal rosto da luta dos motoristas. Além de o pai ter sido camionista, o irmão também exerce a profissão. Contactado pelo Observador, o assessor jurídico não quis tecer comentários sobre o amigo e a relação que mantém com ele. “Não queria falar sobre isso agora. Acho que era mais importante neste momento centrarmo-nos em resolver este problema. Gostava de falar com o Francisco primeiro sobre isso. E há coisas que me preocupam muito mais agora, que é resolver este problema que está a afetar o país”, disse.
Apesar de o advogado parecer estar a dar mais espaço mediático a Francisco São Bento, já várias as vezes foi apanhado pelas câmaras das televisões a sussurrar discretamente ao ouvido do presidente do sindicato, enquanto os jornalistas fazem as perguntas.
“Na vida tomamos opções e algumas coisas ficam para trás. A música foi uma delas”
Francisco admite a timidez. Talvez por isso tenha preferido passar os microfones a Pedro Pardal Henriques, quando o SNMMP saltou para as luzes da ribalta, em abril. Só recentemente, tem saído da sombra do advogado primo da sua companheira, para assumir um protagonismo crescente.
Foi ele quem começou por falar aos jornalistas após o plenário que confirmou a greve, com Pedro Pardal Henriques na retaguarda; foi ele que marcou presença em dois debates televisivos — a par de Anacleto Rodrigues, do Sindicato Independente de Motoristas de Mercadorias (SIMM), frente a André Matias de Almeida (Antram); foi ele que frisou que “compete ao Governo trazer a Antram para a mesa da negociações” após uma reunião com o Governo no Ministério do Trabalho, na quinta-feira; e foi ele quem apelou aos motoristas, esta sexta-feira, depois de o SIMM ter desistido da greve: “Não se deixem vergar. Estamos aqui duros como o aço”.
Apesar da timidez, Francisco São Bento já tinha liderado dois outros projetos: uma banda de música pimba; outra de covers de música rock, onde foi vocalista e guitarrista (chegou, aliás, a usar o cabelo comprido).
[Francisco São Bento canta a versão d0s Muse da música Feeling Good]
“Tocava [guitarra] e cantava e tenho muitas saudades disso. Só que na vida tomamos algumas opções e algumas coisas ficam para trás. A música foi uma delas”. Afastou-se dos dois projetos no início da constituição da ANMMP. “O tempo começou a ser muito pouco, uma vez que na associação fazíamos eventos aos fins de semana”, conta. Acabou também por se afastar dos colegas de banda.
A timidez é igualmente reconhecida pelos colegas no sindicato. Poucos aceitaram falar — ora dizem que só o conhecem dos plenários, ora asseguram que não estão “à vontade” para conversar abertamente sobre o colega. Manuel Mendes, um dos coordenadores do SNMMP, conheceu Francisco São Bento em Aveiras, onde ambos chegaram a fazer os carregamentos dos camiões. “É um bom colega, uma pessoa pacífica, não é arrogante. Se calhar é um bocadinho tímido, mas pode ter a ver com a experiência. Não é de um dia para o outro que se está preparado”, diz ao Observador. Mas admite que não sabe muito sobre o colega do sindicato. ” Somos muitos motoristas. Há casos em que não nos conhecemos pelo nome, só de vista. Nem sempre nos conhecemos bem”. Parece ser esse o caso, ainda que Manuel Mendes seja o delegado da zona Norte do sindicato. O motorista frisa apenas que São Bento “sabe transmitir as coisas aos camaradas e é competente”.
Apesar de ser pacífico, há relatos de “rivalidades” dentro do sindicato. Um motorista chegou mesmo a publicar no Facebook uma mensagem, na qual dizia que se iria retirar das reuniões entre a associação sindical, Antram e Governo por sentir que estaria a atrapalhar as negociações. Na origem da decisão estariam, segundo apurou o Observador, divergências com Francisco São Bento.
“Prefiro ver um bom documentário no canal História a ver um bom jogo de futebol”
São Bento não gosta de falar da família nem dos amigos e, por isso, mostra cautela nas respostas. Mesmo quando as perguntas são sobre ele. Não está habituado a ser o “centro das atenções”: “Não procurei notoriedade, nem protagonismo”, sublinha. E várias vezes diz ao Observador que prefere não responder para “evitar expor” a família e os amigos.
Gosta de se “cultivar”: lê os livros que a mulher compra, sobretudo romances. E aprecia “muito Dan Brown”. É benfiquista mas assegura: “Se me perguntarem se quero ver um bom jogo de futebol ou ver um bom documentário no canal História ou no Discovery Channel, sem dúvida escolho a segunda opção”.
Os últimos dias não têm sido fáceis. Passa mais tempo nos piquetes de greve do que em casa. “Venho a casa comer qualquer coisa, tomar um duche. Tenho dormido umas 3 ou 4 horas por noite. Como o cansaço já se sente mais, já prolonguei um pouco o descanso para cerca de 5 ou 6 horas”, conta. Mora nos subúrbios de Lisboa, cidade onde nasceu, e o percurso até Aveiras demora-lhe cerca de meia hora. A fadiga já se nota na voz do sindicalista e por vezes faltam-lhe as palavras. “É do cansaço”, justifica.
O aumento das quotas e a exclusividade no sindicato
Há pouca informação disponível sobre Francisco São Bento. Numa pesquisa pela internet, salta à vista uma empresa registada com o nome “Transportes Francisco São Bento, Lda.”, com sede em Vila Franca de Xira. Mas o sindicalista garante que é só coincidência (“há muitas pessoas com o mesmo nome e apelido que eu”) e que a companhia não é sua (“só tive um bar”, avança).
O sindicato a que Francisco São Bento preside tem hoje cerca de 700 associados. O ex-motorista dedica-se agora em exclusivo às funções de presidente do SNMMP e só desde junho começou a ser remunerado. “O sindicato nunca teve grandes capacidades financeiras, daí não ter proposto [ser remunerado] antes. Mas com o aumento dos associados e, ao ver que havia possibilidade de sustentar um salário para trazer alguma dignidade para mim e fazer face às despesas do dia-a-dia, comecei a ser remunerado”, explica.
As quotas dos filiados são hoje de 10 euros mensais (em abril eram de 6,50 euros). A partir de janeiro vão passar a 1% do salário tributável bruto, “à semelhança das grandes associações sindicais” (o que equivale a, por exemplo, 10 euros num salário bruto de 1000 euros).
A ideia de São Bento é agora continuar à frente do SNMMP em exclusividade até conseguirmos “encontrar a dignidade nesta profissão, que em tempos foi excelente, mas que gradualmente tem vindo a degradar-se”, diz. “O meu objetivo é poder olhar à minha volta e ver pessoas com salários dignos e restituir a dignidade do setor. O sol quando nasce, nasce para todos”.
Apesar de o sindicato estar isolado, e da pressão de todas as frentes para desconvocar a greve, Francisco São Bento garante que os motoristas “não estão cansados”. E qualquer que seja o desfecho, diz que o sindicato já ganhou: “Os portugueses conseguiram finalmente perceber a penosidade da nossa profissão”.