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Observador Summer Sessions com José Bento dos Santos:"A comida portuguesa não tinha divulgação"

Engenheiro químico, trader de metais, produtor de vinho, enófilo e um dos maiores gastrónomos do país: eis o currículo de Bento dos Santos, o homem que ajudou a lançar José Avillez. Conheça-o melhor.

Muito antes de toda a febre da gastronomia que se tem sentido nos últimos anos, já havia quem a explorava como ninguém. Quando ainda se contavam pelos dedos as estrelas Michelin em Portugal e a atenção mediática dada aos chefs e outros intervenientes do mundo da hotelaria e restauração era quase nenhuma, uma pequena franja de pessoas já se aventurava pelos meandros da técnica, história e criatividade da comida. José Bento dos Santos, o engenheiro químico especializado no trading de metais que protagoniza este Observador Summer Session, era um desses pioneiros.

Ao Observador, Bento dos Santos conta que “aos dez meses” participou na sua primeira vindima, com 18 anos viajou a Bordéus para conhecer mais sobre vinhos e, no meio disso tudo, conseguiu passar grande parte da sua juventude entre o Instituto Superior Técnico e o râguebi, outra das suas grandes paixões — foi um dos treinadores mais jovens de sempre da seleção nacional desta modalidade.

Apesar de afirmar que na infância já tinha gosto em cozinhar, foi precisamente graças a essa modalidade desportiva que cimentou ainda mais o seu conhecimento nessa área, muito por culpa da “terceira parte” dos seus jogos, que consistia em grandes petiscadas onde o próprio costumava preparar alguns pequenos pratos que, com o tempo, aumentaram de complexidade e tornaram-se, por exemplo, no seu famoso cozido de bacalhau, especialidade que os amigos mais próximos dizem já justificar a existência de um restaurante.

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Hoje já deixou o mundo dos metais e dedica-se, principalmente, à produção de vinho na sua conceituada Quinta do Monte D’Oiro. Faz ainda parte da Academia Internacional da Gastronomia e da Académie des Psycologues du Goût, e ao mesmo tempo é chevalier des Entonneurs Rabelaisiens e chevalier du Tastevin (conceituada confraria de enófilos ligados à região de Bordéus). Como se isto não fosse suficiente, tem também no seu historial um papel preponderante no lançamento da carreira de José Avillez, o mais conceituado chef português das últimas décadas.

Tendo tudo isto em conta, não é de estranhar que a conversa no terraço do Observador tivesse gravitado em torno destes temas. Falou ainda sobre o papel das mulheres nas cozinhas profissionais, a medicamentalização da comida e até aquilo a que o próprio chama de “tabu da alimentação”. No meio destes temas mais sérios deu ainda para perceber que no Cazaquistão se bebe água portuguesa e que queijos feitos com gordura de peixe não são muito agradáveis de comer logo pela manhã.

Bem-vindo ao terraço do Observador. A bebida que escolheu foi um vinho seu. Quer falar um bocadinho sobre ele?
Escolhi um Quinta do Monte d’Oiro Reserva branco, o Madrigal, que é um vinho que se adapta perfeitamente para um fim de tarde como este, na medida em que é da casta viognier, que tem origem na zona de Côtes du Rhône, em França, mas é uma casta que muito dificilmente dá bons resultados mais a sul. Dá algum trabalho e é com algum orgulho que nós conseguimos ter aqui, bem cá no sul, condições para fazer um vinho que tem sido um grande sucesso. Até em França, onde tem ganho algumas referências relativamente a ser o melhor vinho estrangeiro de casta francesa.

A par da engenharia química — que é a sua formação base — e da gastronomia — pela qual é muito conhecido –, a componente do vinho é-lhe muito importante. Como começou a sua aventura enquanto produtor?
Por estar ligado à gastronomia, naturalmente que também fiquei ligado ao vinho. Em minha casa bebia-se normalmente, os meus pais, naquela casa burguesa de cozinha portuguesa, tinham esse hábito de consumo. Eu passei sempre férias na região onde é hoje a Quinta do Monte d’Oiro e, portanto, tinha 10 meses quando estive presente na minha primeira vindima. Depois fui por aí fora, aprendendo os termos, vivendo aquelas conversas… Enfim, tive sempre uma relação. Depois tive a sorte de com 18 anos fazer a minha primeira visita a Bordéus. A vida foi me proporcionando mais coisas deste género. Eu fui conhecendo cada vez mais, não só no aspeto técnico mas também sobre a forma de encarar o vinho, a sua filosofia. Não é por acaso que o vinho tem cinco mil anos de História, e está presente desde as religiões aos grandes banquetes e negócios. É tudo firmado com um “tchin-tchin” de vinho! É esse mistério do vinho que me tem interessado muito estudar, aprender. Em determinada altura, eu dediquei a minha vida ao trading de metais e minérios. Um dia estava em Nova Iorque, num jantar, e um grande amigo disse-me: “Nós passamos a vida a negociar commodities, mas há uma que não existe mais: a terra”. Voltei para Portugal no dia seguinte com aquilo na cabeça. Tinha toda a razão. Assim que cheguei falei disso ao meu pai — que neste tipo de atividades era como se fosse um irmão — e ele também achou a ideia maravilhosa. Nós conhecíamos muito bem o antigo proprietário da Quinta do Monte d’Oiro, uma pessoa muito amiga e de grande competência que já não exercia mas que nos disse que éramos as únicas pessoas a quem ele a venderia.

E compraram-na.
Sim, isto aconteceu em 1986 e a partir daí passámos a ser proprietários desse pedaço de terra. Ela já estava com vinha, eram os caseiro que a cuidavam, mas bastavam os poucos conhecimentos que tinha na altura para perceber que aquilo dava origem àquele vinho mais fraco. Não era o vinho que eu me imaginava a produzir. Foram esses meus amigos do trading que me ajudaram. Muitos deles eram judeus e, na altura, havia uma preocupação de várias empresas israelitas de fornecerem, aos vários mercados, fruta no início da época, mais cedo do que a própria época. Vieram à quinta uns professores da Universidade de Jerusalém que a quiseram estudar, para saber se podiam fazer ali, entre várias frutas, uva de mesa. À conta disso fiquei com um estudo profundíssimo sobre o que se podia fazer ali, quais eram os potenciais, como se deviam fazer as coisas… Nessa altura decidi aproveitar. Começámos com uma pequena quantidade, para fazer uma experiência, e isso deu origem a resultados muito bons. A partir daí fomos progredindo e aumentando. Ao fim de 30 anos a Quinta do Monte d’Oiro já é o que é.

E o vinho já é o seu principal negócio ou ainda continua ligado ao mercado dos metais?
Nos metais já não fazemos praticamente nada, mas a quinta hoje está a ser dirigida totalmente pelo meu filho Francisco, que a assumiu de A a Z. Julgo que é assim, não se podem passar uns bocados e outros não. Aquilo faz parte de um negócio que tem de ter uma cabeça. Eu continuo disponível para estudar, estou a escrever um livro das minhas memórias do vinho, onde, essencialmente, preocupa-me a questão filosófica envolvida. E sempre que é preciso lá estou eu a incentivar, a dar um conselho — que normalmente é sempre bem-vindo.

"Cozinhar é algo que me permite ter um momento zen, nem sei bem que palavra utilizar para o descrever, tal é a paixão que tenho por isto. São momento de eternidade, essas alturas em que cozinhei e tive o prazer de ter um vinho que também me deu um gosto extraordinário."
José Bento dos Santos

Não só é produtor de vinho como também é colecionador, certo?
Sim, durante muitos anos tive essa oportunidade. Eu era um verdadeiro colecionador porque comprava os vinhos e depois tinha vergonha de os beber! [risos] Ia muitas vezes a leilões em Londres onde havia vinhos interessantes que se podiam adquirir por valores razoáveis — o que não acontece hoje. Durante anos fui colecionando, não só vinhos franceses como outros australianos, norte-americanos e por aí fora. Viajava muito. Tenho uma pequena coleção de vinhos chilenos porque fui ao Chile tantas vezes que trazia sempre algumas garrafas, umas de amigos e outras de produtores que me haviam sido bem recomendados. Finalmente fiquei com essa soi disant coleção. Até que agora, há uma boa dezena e meia (ou mais) de anos, decidi que acabou-se a coleção e passei a consumir tudo o que tinha. Aí, de facto, o meu universo de conhecimentos abriu-se extraordinariamente…

Há alguma garrafa que ainda não tenha tido coragem de abrir?
Há sempre vinhos desses… Por exemplo, eu tenho uma garrafa de Buçaco de 1928. Bom, enquanto estiver assim é algo de coleção. Não é pelo valor em si mas por aquilo que representa — e voltamos à tal filosofia. Tenho outra garrafa que estimo muito, de Terrantez de 1846: tem exatamente mais 100 anos do que eu! Lembro-me de que há alguns anos convidei para um jantar na quinta o Michel Béttane e o Jacques Puisais e abri uma garrafa que não era habitual, um vinho do Porto Noval Nacional de 1945, uma joia, uma coisa absolutamente extraordinária. Eles ficaram esmagados. A seguir, por curiosidade, abri uma garrafa de Burmester de 1856. Foi uma desilusão porque o vinho não tinha aguentado tantos anos, embora os vinhos do Porto sejam quase eternos. Era uma graça percebermos o que seria qualquer coisa daquela altura mas não passava disso. Esta conversa deu-se ao fim do jantar, continuamos à mesa e a falar até que o Béttane (ele é como se fosse o Robert Parker de França, é de longe o crítico de vinhos mais estimado, conhecido e importante), de repente, voltou ao copo e eu ouvi um estardalhaço… Até me pareceu que ele tinha caído da cadeira! Deu um berro tão grande… Acontece que o vinho tinha-se transformado e todos nós que estávamos à mesa pudemos comprovar isso. Aquilo foi uma experiência única na vida. Só de pensar que uns 30 minutos antes tinha sido desprezado, coitado… Isto é um fenómeno que ainda hoje gostava de compreender.

Passando agora para a gastronomia: gosta mais de comer fora ou de cozinhar?
Bem, eu gosto de comer, essencialmente — e se for bom… Eu gosto muito de cozinhar, desde miúdo. Com 7, 8 anos já tinha algum gosto nisso e continuei toda a vida a desenvolver essa vertente, inclusivamente junto de grandes cozinheiros que fizeram o favor de ser meus amigos. Posso dizer que sempre que estou em casa costumo cozinhar, sobretudo o jantar — e aproveito para abrir uma das tais garrafas da coleção. Cozinhar é algo que me permite ter um momento zen, nem sei bem que palavra utilizar para o descrever, tal é a paixão que tenho por isto. São momento de eternidade, essas alturas em que cozinhei e tive o prazer de ter um vinho que também me deu um gosto extraordinário.

E tem algum prato de referência, algo que os seus amigos lhe peçam sempre?
Nunca criei nenhum prato, aliás pratos criados há muito poucos, só pessoas como o Joel Robuchon ou o Ferran Adrià é que podem dizer que criaram alguma coisa. Tirando eles, a maior parte dos cozinhados são plágios ou receitas de outros que são adaptadas. Há uma receita, contudo, que faço recorrentemente. É algo tipicamente português e que me dá muito gozo: um cozido de bacalhau. O peixe é cozido com couves e com alguns elementos do cozido tradicional — o toucinho, algum chouriço. Sabe que o bacalhau é uma proteína seca, não tem muita gordura, daí que nós, aqui na Península Ibérica, o acompanhemos com azeite. Os franceses é o mesmo mas com manteiga, os ingleses com banha de porco. Enfim, é sempre preciso haver essa gordura. Ora, aquilo que eu faço de diferente é uma emulsão da água da cozedura (que tem as gelatinas e o azeite), que acaba por ligar todo o prato. Os meus amigos, que são sempre muito generosos, têm dito que valeria a pena abrir um restaurante só para servir esse prato.

"Aquilo que se comia no passado era do mais fresco que havia, porque era apanhado na horta e consumido no dia, não havia frigoríficos. [...] Hoje compra-se um pacote de plástico, que tem lá dentro folhas de uma alface... Não é propriamente acabada de tirar do solo."
José Bento dos Santos

Falando em refeições com amigos. É verdade que, quando ainda jogava râguebi, havia sempre uma “terceira parte”, um momento depois do jogo em que se juntavam todos para comer uns petiscos cozinhados por vocês?
É verdade, sim [risos]. Se referirmos que isso se passou há 50 anos, não há noção nenhuma nas pessoas de como era a vida nessa altura. Não havia um terço dos restaurantes que há hoje, só as nossas casas. Aquilo que nós fazíamos muitas vezes era ir para casa de um de nós, o que tivesse a casa maior… [Pausa para dar um gole de vinho — “Hum… Que bem que me está a saber”]… e eu era sempre o encarregado de fazer o jantar para a equipa. Isso depois aconteceu em muitas outras situações, sempre com muita graça e grande prazer, até na tropa. Eu cumpri o serviço militar com o professor Eduardo Marçal Grilo (que já era professor catedrático na altura, bastante mais velho) e ele conseguiu convencer o capitão que talvez valesse a pena pôr de lado os géneros que havia, para que eu pudesse fazer alguma coisa só para um grupo pequeno.

Ultimamente tem havido uma maior atenção à qualidade dos alimentos, talvez até um pequeno regresso às noções de sazonalidade que antigamente sempre orientaram os consumidores. Sente que isto é verdade?
Sim, sem dúvida, mas essa análise tem de ser feita com um bocadinho de cuidado. Aquilo que se comia no passado era do mais fresco que havia, porque era apanhado na horta e consumido no dia — não havia frigoríficos. A partir do momento em que passou a haver uma grande distribuição de comida industrializada, que se não ficar no frio se estraga rapidamente, foi preciso aparecerem muito mais regras. A salada, por exemplo: antigamente alguém cortava-a na horta e trazia-a nesse dia para Lisboa. A pessoa do restaurante ia à praça comprá-la e já estava. Hoje compra-se um pacote de plástico, que tem lá dentro folhas de uma alface… Não é propriamente acabada de tirar do solo. O que acontece hoje é que apercebemo-nos que o gosto dos produtos orgânicos, biológicos, que vêm diretamente da terra, é outro. Vale a pena fazer um esforço, pedir aos agricultores para fazerem esse esforço também, pagar-lhes um bocadinho mais e poder ter produtos de grande qualidade que contrastam com um certo desequilíbrio característico dos produtos mais industrializados — que durante demasiado tempo foram, quase, a base da alimentação. E isto sucede em todo o mundo. Hoje, em todos os restauradores e nas famílias, isso passou a ser uma preocupação.

Ao mesmo tempo que isso acontece, há alimentos, como o pão ou o leite, que passaram a ser quase demonizados. Estamos a pensar demasiado sobre aquilo que comemos?
A comunicação, antigamente, não existia com a facilidade de hoje. De repente começámos a ser bombardeados com pessoas a dizerem-nos que comer pão dá-nos hidratos de carbono a mais e outras coisas desse género. As pessoas começam a preocupar-se…

"Até muito depois da minha juventude, havia na sociedade o tabu do sexo. Eu vivi-o, naturalmente! Passar no aeroporto com uma revista Playboy era... Éramos apanhados!"
José Bento dos Santos

Com o glúten também…
Exato, aliás há quem diga que o glúten é uma mistificação. Enfim… Ainda não estamos nas certezas absolutas, mas estas situações passaram a ser divulgadas com muita facilidade. Há também as preocupações com elegâncias… As pessoas começam a ter algum cuidado e ainda bem! O que acontece é que, ao mesmo tempo, surgem também uma série de produtos milagrosos com os quais é preciso ter atenção. Há uma coisa curiosa: até muito depois da minha juventude, havia na sociedade o tabu do sexo. Eu vivi-o, naturalmente! Passar no aeroporto com uma revista Playboy era… Éramos apanhados! Lembro-me quando passou na televisão o filme “Pato com Laranja” e isso quase que deu uma crise política! Um filmezeco que hoje passava às três da tarde. Esta área, entretanto, sofreu uma alteração extraordinária mas passou a haver um outro tabu: o da alimentação. Não há ninguém que chegue à mesa de um restaurante, olhe para o pão e não pense “Ah, não vou comer o pão”. Há aquela célebre situação da senhora que chega a casa, cheia de fome, só comeu uma sopinha, e pensa que gostava mesmo era de comer um quadrado de chocolate. Não o faz e, em vez disso, come um iogurte. A fome vai aumentando, come um segundo iogurte. A seguir, como já não aguenta mais e tem o chocolate na cabeça, come uma tablete inteira. Com isto tudo consumiu umas 1500 calorias. Se tivesse satisfeito a sua ambição de comer só um quadradinho, calmamente, resolvia melhor o problema do que com aquelas complicações todas. Este assunto pode ser visto desta forma, tem alguns tabus, mas felizmente dá preocupação a toda a gente e, portanto, comer bem não é apenas ter o sabor. É também, obviamente, ter a saúde em consideração.

O seu passado profissional ligado à industria dos metais fez com que viajasse muito, chegando até a viver no estrangeiro. Um dos países onde viveu foi o Cazaquistão. O que é que se come lá?
Nas primeiras vezes em que lá estive, a comida era horrorosa. Depois, à segunda ou terceira vez, já havia um hotel moderno, gerido por uma cadeia até conhecida, onde havia de tudo — curiosamente, dentro do mini-bar dos quartos, havia (e não esquecer que estamos a falar do Cazaquistão, ao pé da China, em Almaty!) Água das Pedras e Água do Luso! Mas eu passei dias seguidos, nos restaurantes e nos hotéis onde ficávamos, a comer um pão que parecia uma bolacha, uma base de pizza sem nada, com cebola crua. Eu detesto cebola, mas acho que nessa altura nunca gostei tanto. Passei a comê-la com alegria! [risos] Algum tempo depois, voltei ao mesmo sítio e havia um checheno que tinha, fora da aldeia, uma casinha que também alugava quartos, como se fosse um hotel. Eu fiquei lá uma vez e comi um dos jantares que me fez vir lágrimas aos olhos. Ele começou por me dar, cultivado por ele, tomate às fatias com um queijo de lá (como se fosse uma salada caprese). Isto num sítio onde era suposto comer-se cebola crua com pão! [risos] Depois ainda serviu um borrego que eu nunca mais esquecerei, feito com todo o cuidado e tal… Bastou isso para ser uma refeição inesquecível.

Por falar em refeições inesquecíveis: há uma história famosa em que fala de um autêntico banquete, protagonizado por si, na passagem para o ano 2000…
Nesse jantar houve a contribuição de toda a família alargada. Trabalhei tanto que até dei cabo das costas. Nós andámos um ano, quase, a preparar essa refeição. Vários cozinheiros ajudaram na sua preparação, como o Jean-Michel Lorain (três estrelas no guia Michelin), que fez alguns pratos e depois mandou-os para cá. Os meus irmãos, os meus cunhados… Toda a gente colaborou. Não tivemos pejo em abrir as melhores garrafas que tínhamos e tivemos uma refeição, de oito ou nove pratos, absolutamente de sonho. Foi, de longe, a refeição onde investimos mais, no sentido de termos tido um trabalho louco. Fizemos a refeição em conjunto, servimo-la em conjunto e comemos tudo juntos.

Lembra-se de algum desses pratos?
Sim, o do Jean-Michel Lorain, por exemplo: era uma trufa embrulhada numa massa de cenoura, aipo e um outro legume (courgette, salvo erro), que depois foi cozida num caldo de galinha. Foi, de facto, qualquer coisa de extraordinário.

E qual foi a coisa mais estranha que já provou?
Algumas coisas na China ou lá para as Américas do Sul. Diria que há dois produtos que considero estranhos no mau sentido, de serem insuportáveis. Um deles provei na Noruega, ao pequeno-almoço, em 1970, quando estava a estagiar numa fábrica. Era uma refeição impecável, em buffet. Havia um queijo fresco, assim molinho, que eu achava que devia ser delicioso. Um dia decidi que finalmente o ia provar e fui lá buscá-lo. Quando peguei naquilo é que percebi que aquele “queijo” nascia de peixe muito gordo. Ou seja, eles depois de o pescarem punham-no pendurado numas cordas, como se fosse roupa a secar, davam-lhe umas facadas e deixavam alguma da sua gordura escorrer. Com ela faziam o dito queijo. Aquilo tem um sabor absolutamente intragável! Foi uma coisa que me marcou… Nem quis acreditar no que me acontecia. A outra foi precisamente no Cazaquistão. Um dos maiores petiscos que lá se pode oferecer a um convidado é leite de égua, que eles transformam numa bebida alcoólica. Embebedam-se com isso, até. Provei e aquilo não me aqueceu nem arrefeceu. O pior é que eles servem isso com uma tripa de cavalo, com um aspeto esquisito, a acompanhar. Foi um sacrifício comer aquilo… Tem de se comer e sabe tão mal, tão mal, tão mal, que é inimaginável saber que alguém gosta mesmo daquilo.

"Antigamente havia tascas maravilhosas e outras onde não sabiam cozinhar. Isso continua a existir hoje. Há experiências motivadoras e outras que não correm bem."
José Bento dos Santos

Em Portugal ainda existe um bocado o preconceito de que ir a um restaurante de autor ou com estrela Michelin é quase sinónimo de pagar muito e comer pouco. Concorda?
Eu acho que tudo isso existe mas não é um defeito. As coisas são como são. A cozinha evolui lá fora de determinadas maneiras. Cá, as coisas chegam sempre com uma décalage no tempo, como é natural (e acontece em muitos outros países). O que se passa é que aquela nossa cozinha, aquela com que cresci, entre pratos como cozidos à portuguesa ou borregos no forno, deu uma certa habituação. O que se passa é que às tantas era isto que era uma estrela Michelin. Ou seja, até aos anos 50/60, ia-se a um restaurante com estrelas não para comer nada de extraordinário mas, por exemplo, para comer o melhor cozido à portuguesa que havia. A partir de determinada altura evoluiu-se e passou-se a fazer novas receitas, coisas mais leves, ultra-saborosas, que celebrizaram grandes cozinheiros (como Joel Robuchon, por exemplo). É natural que as pessoas começassem a olhar à volta e a perceber que estava aqui uma boa maneira de ganhar dinheiro — começam a imitar a nouvelle cuisine, punham pouco no prato e julgavam que se safavam, o que foi um flop completo. O que se está a passar hoje é que fomos invadidos por cozinhas asiáticas, mais exóticas, em que, no limite, parece que basta pôr-se uma folhinha aqui ou usar uma pinça acolá… É preciso distinguir o que é genuíno, estudado e feito de tal maneira que a experiência, como diz o guia Michelin, vale a deslocação, porque isso é extraordinário. É qualquer coisa que deslumbra o paladar e as emoções. Tudo isto coexiste. Antigamente havia tascas maravilhosas e outras onde não sabiam cozinhar. Isso continua a existir hoje. Há experiências motivadoras e outras que não correm bem.

Muitas vezes, associa-se esta comida de tacho mais tradicional a uma cozinheira, à velhinha que faz o cozido “X” ou o borrego “Y”. Ou seja, associa-se à figura de uma mulher. Se pensarmos bem, as nossas primeiras memórias gastronómicas estão ligadas também à comida da nossa mãe ou da nossa avó. Agora, se olharmos para o panorama da cozinha de autor não existem tantas mulheres como homens. Como é que isso se justifica? Não é um pouco contraditório?
Oh, Diogo, parece-me uma pergunta inocente e, jornalisticamente, podíamos só dizer que sim ou que não e já estava. Mas vejamos o todo, entremos um bocadinho mais na filosofia porque aquilo que acabou de dizer é de uma riqueza enorme para se analisar. Repare: hoje há imensas grandes chefs, com estrelas e tudo Porque é que isto não acontecia há 60 ou 7o anos, então? Nessa altura, todos os tachos e panelas das cozinhas eram de cobre ou ferro fundido e eram desesperantemente pesados. Não era possível ter senhoras a carregar aquelas coisas, mas elas cozinhavam em casa. E porquê? Porque tinham um ingrediente que hoje muitos restaurantes não têm — tempo! Essas senhoras tinham tempo para cozinhar e podiam de manhã começar a fazer o almoço, coisa que demorava horas. Esse tempo perdeu-se, hoje é preciso preparar um prato em segundos. Portanto, aquilo de que fala tem tudo a ver com o tempo.

Olhando agora para Portugal. O nosso país está na moda e já está assim há, pelo menos, uns dois, três anos. Acha que a comida portuguesa, atrelada a isto, começa a ter maior destaque internacional?
Sem dúvida que sim. Repare que a comida portuguesa não tinha divulgação. Os imigrantes espanhóis, italianos e tal, levaram as suas cozinhas e organizaram-se, fazendo coisas que acabaram por dar origem a receitas que correram (e ainda correm!) o mundo. Nós não tivemos essa capacidade, talvez devido à nossa dimensão. Não tínhamos nada como as pizzas, as tapas, etc… Quando, aqui há uns anos, foi feito o programa Prove Portugal, o conjunto de pessoas que participou nesse projeto — que eu tive o prazer de coordenar — decidiu que existiam cinco aspetos que tinham de ser desenvolvidos em Portugal. Primeiro, a questão do mar: nós temos o melhor peixe do mundo, várias pessoas, do Ferrán Adrià ao Thomas Keller confirmam isso. Tínhamos de nos afirmar nesse aspeto, se não outros faziam isso no nosso lugar. Depois, tínhamos outra questão importante, que era ter um veículo, como os espanhóis têm a paella, os franceses a cocotte, os asiáticos o wok… Fizeram-se uma série de concursos e a cataplana foi escolhida, dado o seu sucesso. Passou a ser um símbolo da cozinha portuguesa. A seguir tínhamos na doçaria algo extremamente importante — e que não era corretamente divulgado — que era o pastel de nata. Não é preciso dizer mais nada sobre isto porque hoje toda a gente o conhece, apesar de termos a dificuldade de não ter algo com um nome tipo “crema catalana”, que é um nome universal. Enfim, conseguimos ultrapassar isso e foi um sucesso. Os outros dois pontos eram, precisamente, o vinho e o vinho do Porto, em duas categorias distintas mas que andavam de braço dado. Continuamos a ter alguma dificuldade em mostrar os grandes vinhos que temos. Não somos reconhecidos internacionalmente nessa categoria — e aí havia qualquer coisa a fazer. O Porto, que é um vinho fantástico, tem um problema: não temos muitas oportunidades para o beber. Os conhaques e os armanhaques sofrem da mesma situação. Deixaram de ser consumidos com a regularidade de outros tempos. Por último, precisávamos de ter chefs conhecidos no mundo inteiro. Era muito importante apostar em alguém — porque não dá para apostar em todos — que conseguisse entrar nesse meio. Felizmente, fez-se uma aposta que está a dar resultados. Esperemos que este ano, com a apresentação do guia Michelin em Lisboa, possamos bater no topo.

"Repare que a comida portuguesa não tinha divulgação. Isto está analisado e há estudos sobre o assunto... Os imigrantes espanhóis, italianos e tal, levaram as suas cozinhas e organizaram-se, fazendo coisas que acabaram por dar origem a receitas que correram (e ainda correm!) o mundo. Nós não tivemos essa capacidade, talvez dado à nossa dimensão, por exemplo."
José Bento dos Santos

A pessoa que dizia ser uma espécie de porta-estandarte da comida portuguesa presumo que seja o chef José Avillez. Correto?
Sim. Portugal é, felizmente, representado por inúmeros outros chefs que têm capacidades extraordinárias para transmitir a nossa cozinha, para abrir restaurantes no estrangeiro, para levar essa cozinha a todo o lado com grande sucesso. A aposta no Zé Avillez, neste mundo das estrelas estava certa porque foi possível alavancar alguém que tinha as dimensões de criatividade, conhecimento técnico, mundo, conhecimento. Chegando lá ele, de certeza que outros o seguirão. Precisamos de um primeiro, todos os outros talvez tenham feito um bocadinho de sacrifício para o suportar, para ajudar a fazer com que isso acontecesse. Estando isso já praticamente consumado, a partir de agora o caminho está aberto e tenho a certeza de que muitos mais grandes chefs que temos vão lá chegar também.

Já conhece o chef Avillez há muito tempo. Como se conheceram?
Ele um dia entrou-me pelo escritório dentro. A dona Maria de Lurdes Modesto tinha-o mandado lá porque ele estava num curso de marketing e decidiu fazer uma tese sobre gastronomia. Ela disse para ele falar comigo e lá foi ao meu escritório, ficámos umas duas horas a falar sobre um sem número de coisas e explicou-me que estava interessado na área, que tinha feito um estágio na Fortaleza do Guincho, que gostava de cozinhar e tal. Mas estava no princípio, estava a fazer um curso. Eu, nessa altura, tinha na Quinta do Monte d’Oiro um serviço regular de refeições, não só profissionais para pessoas que trabalhavam comigo na área dos metais mas também para pessoas do vinho, estrangeiros que vinham cá… Eu também fazia muitas vezes refeições em casa ou num pequeno apartamento que tinha para cozinhar e, às tantas, surgiu-me a ideia de o desafiar a fazer uma espécie de estágio semi-profissional. Não era trabalhar todos os dias mas fazer grandes refeições, muitas vezes para pessoas importantes. Ele aceitou e, nesse período, também fui convidado para dar aulas de gastronomia no meu Instituto Superior Técnico. Preparámos os dois essas aulas, onde falámos do sentido do gosto, das questões gastronómicas… Isso obrigou-nos a estudar uma série destes assuntos a fundo. Esse foi um período de grande fecundidade. Ele refere, simpaticamente, que este princípio de carreira não foi feito no fim da linha mas sim a meio — começou logo a fazer meia dúzia de coisas que o ajudaram, com certeza, a criar uma cultura gastronómica interessante. Se bem que a carreira dele deve-se a ele mesmo e a mais ninguém.

Então, de certa forma, o chef José Avillez foi apadrinhado por si, por um lado, e pela Maria de Lurdes Modesto, por outro?
Não diria apadrinhado, ele vale por si. Tenho-o como um grande amigo, pelo-me por ir aos restaurantes deles. Tenho tido o prazer de conviver com grandes, grandes gastrónomos mundiais que ficam profundamente emocionados e impressionados com a cozinha do José Avillez.

E, agora, aquela pergunta da praxe: qual é a refeição da sua vida? Sente que já a teve ou ainda não?
Há uma resposta para isso que acho muito engraçada: é a de amanhã. Mas não vou responder assim. Eu aqui há uns tempos decidi, para acompanhar um grande vinho, repetir aquela tartelette de trufas do Joel Robuchon — que dá um trabalhão a fazer — com uma geleia de caviar em creme de couve flor, que demora dois dias a preparar. Se eu quiser ir ao meu passado, tive milhares de refeições extraordinárias, mas esta ficou-me na memória com uma sensibilidade única.

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