Índice
Índice
Kwasi Kwarteng estava em Washington, numa reunião para explicitar as suas políticas ao Fundo Monetário Internacional. O ministro das Finanças de Liz Truss mantinha-se firme, convicto que a política de redução de impostos sem corte na despesa que propunha não seria o desastre que os mercados pensam. Julgava que tinha o apoio da sua primeira-ministra, com quem sempre partilhou a visão de que uma política económica liberal era a única forma de garantir crescimento económico, apesar da inflação galopante e da crise energética que se forma no horizonte. Horas antes, tinha garantido à BBC: “Não vou a lado nenhum.”
Aquilo que Kwarteng não sabia é que, a quase seis mil quilómetros de distância, Liz Truss punha um plano em marcha para salvar o seu governo que implicava precisamente atirar o seu ministro das Finanças pela janela fora. A fazer fé no The Times, às 9h30 da manhã de sexta-feira (hora de Londres), enquanto Kwarteng provavelmente ainda dormia, Truss já estava a telefonar a Jeremy Hunt, apoiante do seu adversário na corrida à liderança, Rishi Sunak, — e economicamente muito mais centrista do que Truss —, para o convidar para a pasta das Finanças. Hunt pediu tempo para pensar e acabou por aceitar. Depois, apanhou o comboio de regresso a Londres a partir da Bélgica, onde estava de férias com a mulher.
De seguida, a primeira-ministra britânica deu ordem a Kwarteng para regressar de urgência a Londres e convocou uma conferência de imprensa de urgência para depois do almoço. Os jornais britânicos começaram então a avançar a notícia: o ministro das Finanças ia ser despedido e Liz Truss ia provavelmente anunciar um recuo estrondoso na sua política económica. Os jornalistas começaram a seguir freneticamente o rumo do voo 292 da British Airways, que trazia o ministro de volta a casa. Oficialmente, Kwarteng ainda não sabia de nada.
A situação já era tensa ainda antes desta sexta-feira. A Economist não tinha poupado nas palavras no início da semana, decretando a morte política de Liz Truss: “Será lembrada como a primeira-ministra cujo controlo do poder foi o mais curto de sempre na História política do Reino Unido. A senhora Truss entrou em Downing Street a 6 de setembro. Fez explodir o próprio governo com um pacote de de descidas de impostos e garantias no preço da energia sem financiamento a 23 de setembro. Retirem-se os dez dias de luto pela morte da Rainha e ela só esteve em controlo durante sete dias. Esse é o prazo de validade de uma alface.”
O soundbyte pegou. O jornal Daily Star rapidamente criou um live stream onde colocou uma foto de Truss ao lado de uma alface e onde é possível acompanhar em direto qual durará mais. O que os media britânicos não imaginavam é que, depois desta sexta-feira, o prazo de validade de Truss se poderia encurtar ainda mais.
A conferência de imprensa de oito minutos, quatro perguntas e nenhum pedido de desculpas
Chegado a Londres, Kwarteng seguiu direto para o Número 10 de Downing Street para se encontrar com Liz Truss e ouvir de viva voz as razões para a sua demissão. De seguida, publicou a sua carta de demissão, onde, apesar de deixar palavras calorosas para a primeira-ministra, sublinhou que estava a tentar aplicar a “visão” de Truss. Esta apressou-se a publicar uma carta de resposta onde reconhecia que ambos partilham “da mesma convicção firme de apostar no crescimento”.
Mas palavras leva-as o vento. Pouco depois, a primeira-ministra entrava numa sala cheia de jornalistas para uma conferência de imprensa que durou menos de oito minutos e que ditaria a total inversão da política económica que sempre defendeu ao longo da campanha para a eleição de líder dos conservadores: para além de reformular a equipa das Finanças e trazer agora vozes mais centristas, Truss decidiu manter o aumento de impostos decidido por Rishi Sunak no governo de Boris Johnson de 19% para 25% para as empresas. “Partes do nosso mini-Orçamento foram mais longe e mais rápido do que aquilo que os mercados esperavam”, foi o único mea culpa que deixou.
Respondeu a apenas quatro perguntas de jornalistas, revelando o desconforto com a situação que o seu rosto não denotava. “Não vai pedir desculpa ao seu partido?”, foi a última, deixada por Robert Peston da ITV. Truss disse que não e abandonou a sala, perante os gritos de “Primeira-ministra! Primeira-ministra!” de uma série de jornalistas exaltados que esperavam mais explicações.
Implodia naquele preciso momento a imagem cuidadosamente construída pela sua equipa ao longo dos meses de campanha. Afinal, Truss não é a liberal implacável que se recusa a aumentar impostos. Também não é a mulher que, inspirada em Margaret Thatcher, está pronta a revolucionar o sistema económico do país, com a ajuda do braço-direito Kwasi Kwarteng, com quem partilhou anos de descontentamento nos Comuns pela situação atual. Afinal, Truss cede nas suas ideias e sacrifica aliados. O importante, como a própria explicou, é manter-se para cumprir a “missão” — muito embora já ninguém entenda exatamente que missão é essa.
Tudo isto acontece num momento em que as sondagens a pintam como uma das primeiras-ministras mais impopulares de sempre, dentro e fora do partido. 63% dos eleitores do Partido Conservador consideram agora que a nomeação de Truss foi um erro. A nível nacional, a oposição do Partido Trabalhista já reúne 51% das intenções de voto, contra apenas 23% para os tories. 42% acham que o líder do Labour, Keir Starmer, seria o melhor primeiro-ministro entre todos os líderes partidários; Truss não vai além dos 13%.
“Ela é mais impopular do que Boris Johnson durante o pior período da sua liderança, em meados de janeiro deste ano, quando o escândalo do Partygate estava no auge”, ilustrou à BBC John Curtice, histórico cientista político perito em sondagens. “Ela está no mesmo nível de popularidade que John Major tinha umas semanas depois da Quarta-Feira Negra de setembro de 1992”, quando os mercados castigaram forte e feio aquele governo conservador. Os trabalhistas conseguiram uma vitória estrondosa nas eleições seguintes, em 1997, com Tony Blair.
Temendo uma travessia no deserto como essa — os conservadores só regressaram ao poder 13 anos mais tarde, com David Cameron —, o Partido Conservador já se agitava. Na quarta-feira, Liz Truss foi à reunião interna com a sua bancada parlamentar e os relatos mostram que foi um desastre. “Pelo menos o Boris falava connosco como se fosse uma mulher traída, a dizer para nos recordarmos dos bons velhos tempos. Para ela é mais difícil, porque não houve bons tempos”, ilustrou um deputado ao Telegraph. “Depois daquela reunião, não aposto sequer dois tostões em como ela sobrevive”, disse outro.
Ao longo da semana, o clima de desconforto adensava-se. Truss continuava a tentar agradar aos deputados conservadores, marcando encontros com eles para explicar a sua política. Na quinta-feira, organizou um almoço com alguns, mas o resultado não foi positivo. A revista Spectator revela que a maioria não quis tirar fotografias com ela: “Um colega saiu literalmente a correr da reunião por estar tão envergonhado e não querer ser captado pela câmara”, contou um dos presentes.
Deputados conservadores desenham plano para trazer Sunak de volta. “Hienas”, acusam outros
Depois desta sexta-feira, em que Truss demitiu Kwasi Kwarteng e quebrou uma promessa eleitoral, o clima tornou-se ainda mais febril entre as fileiras dos tories. À noite, um grupo de deputados do partido juntou-se num dos gabinetes do Parlamento. Encomendaram caril para jantar e, entre uma garfada e outra, começaram a planear o afastamento da primeira-ministra já a partir da próxima segunda-feira, conta o The Telegraph.
A defenestração de Truss, contudo, é tudo menos fácil. Para além do embaraço de substituir uma líder que esteve menos de dois meses no cargo, o próprio processo de substituição é complexo, devido a uma regra instituída no partido de conceder um período de “estado de graça” de um ano a cada novo líder. Muitos deputados conservadores, porém, estão prontos a ignorar essa indicação e já enviaram as suas cartas a pedir uma moção de censura interna ao Comité 1922, órgão responsável pela organização do Partido. As regras internas preveem que o período de “estado de graça” possa ser levantado caso haja uma “vaga de fundo” a favor da destituição, como explica a New Statesman, que cita fontes do Comité a preverem que tal possa acontecer mais perto do Natal.
Só que alguns não querem esperar. Na sexta-feira, o The Times revelou o plano que está a ser gizado por “20 ou 30” deputados: irem apenas dois candidatos a votos para substituir Truss, com um a desistir à última hora, para a campanha não se arrastar. E até já há ideias sobre quem podem ser esses dois candidatos. São eles Rishi Sunak, derrotado por Truss na última campanha, e Penny Mordaunt, que venceu a votação entre os deputados, mas não convenceu os militantes fora do Parlamento. “A malta do Rishi, a malta da Penny e os apoiantes de Truss com bom-senso que percebem que ela é um desastre precisam de se sentar e decidir quem deve ser o candidato da unidade”, explicou um dos conspiradores ao jornal. “Ou é o Rishi como primeiro-ministro e a Penny como vice e ministra dos Negócios Estrangeiros, ou a Penny como primeira-ministra e o Rishi como ministro das Finanças.”
O clima de divisão dentro do Partido Conservador, porém, é notório. Num grupo de WhatsApp de deputados, cujo conteúdo foi vertido para um editor da Sky News, o deputado Crispin Blunt defendeu a solução Sunak-Mordaunt, mas foi recebido com acidez pela colega Nadine Dorries: “Adoro-te, Crispin, mas se achas mesmo que podemos impor outro líder, sem uma eleição nacional, e que os media e as pessoas iam aceitar isso, precisas de te ir deitar.” Ao Telegraph, o deputado veterano Christopher Chope lamentou o frenesim dos colegas: “Se é assim que os meus colegas se querem comportar, não posso travá-los, mas sinceramente acho que parecem um bando de hienas.”
Divididos sobre como avançar, os conservadores passarão certamente todo o fim de semana a sussurrar ao telefone e a conspirar em reuniões privadas. Em público, tentarão estancar a pressão da oposição, que pede em coro eleições antecipadas. Consigam ou não forçar a demissão de Liz Truss agora, poucos acreditam que ela irá durar até às eleições de 2024. “Sinto que é game over”, confessou um dos apoiantes da primeira-ministra ao The Guardian. Truss até pode continuar no cargo, seja até 31 de outubro, quando o ministro das Finanças apresentar nova proposta económica, até ao Natal ou até às próximas eleições. Mas, dentro e fora do Partido Conservador, consolidou-se a ideia de que já não tem autoridade real e de que o seu executivo não passa de uma espécie de governo provisório.
“Até tenho pena dela”, comentou por estes dias um dos conspiradores com o Telegraph. “Todos nós já nos candidatámos a um trabalho e quando lá chegámos percebemos que não éramos capazes.” Liz Truss até pode vir a ter um prazo de validade maior do que o de uma alface, mas falta-lhe provar aos colegas e ao país que também tem mais talento político do que uma.