No ano em que celebra duas décadas de vida literária, Ondjaki regressou às memórias da sua infância em Luanda em O Livro do Deslembramento, uma nova “busca” por uma rua e pelos “afetos de um grupo” que existe em torno do narrador, uma criança uma voz tão próxima da de Bom Dia Camaradas, o seu primeiro romance, publicado um ano depois da sua estreia com o livro de poemas Actu Sanguíneu. Esta proximidade não é coincidência, mas também não foi propositada: “É natural que, com o passar do tempo, as histórias que me vão aparecendo sejam as histórias que ficaram de fora”, disse o escritor angolano, que se assume sobretudo como um contador de histórias, ao Observador.
O Livro do Deslembramento, lançado em julho pela editora Caminho, representa uma espécie de último capítulo naquilo a que Ondjaki descreve como a sua “grande mentira sobre os anos 80”, que inclui, além de Bom Dia Camaradas, os livros Os da Minha Rua (contos) e AvóDezanove e o segredo do soviético (romance). O que o autor quer dizer com isto, só poderá revelar daqui a dez anos, o período necessário para que eventualmente surja uma nova obra que “que esclareça essas três mais um”.
Enquanto essa obra não chega, Ondjaki vai-se dedicando a sobreviver à abertura de uma livraria em Luanda com um amigo e sócio, a Kiela, um sonho que, se tudo correr bem, se concretizará fisicamente neste mês de setembro (por enquanto, está a funcionar apenas online). A inauguração esteve marcada para fevereiro, mas a pandemia da Covid-19 obrigou a alterar os planos. E são muitos, como explicou o escritor nesta entrevista ao Observador.
O Livro do Deslembramento é inspirado em histórias da sua infância em Luanda.
É uma mistura de muitas histórias, de histórias da infância com histórias que me lembro da infância. Não sei se são as mesmas, mas literariamente acabam por ser as mesmas.
O seu primeiro romance, Bom Dia Camaradas, também é inspirado nestas histórias, o que não deixa de ser curioso, tendo em conta que este ano celebra 20 anos de vida literária. É mera coincidência?
Não é que tenha pensado [nisso], mas é natural que, com o passar do tempo, as histórias que me vão aparecendo sejam as histórias que ficaram de fora. Então, algumas das histórias que não estavam no Bom Dia Camaradas ou n’Os da Minha Rua — quer queiramos quer não, fazem uma triangulação com este livro –, foram aparecendo, creio, num outro formato. Há uma espécie de capítulos mais longos, mais profundos aqui. A voz do narrador é quase a mesma, mas creio que os conteúdos vão para zonas sensoriais e emocionais um pouco mais profundas. Mas, sim, tem tudo a ver com Bom Dia Camaradas.
Estas histórias são mais familiares.
É, outra vez, uma busca de uma rua, de uma infância, dos afetos de um grupo específico que estão em torno desta personagem. Quando me pergunta se é autobiográfico, digo que sim, é, mas [que] extravasa o autobiográfico. Isto é, ao escrever sobre os meus vizinhos, também estou a escrever a minha autobiografia. As coisas que estão aí não têm só a ver comigo. Aliás, a maioria tem a ver com um grupo de pessoas. As memórias dos outros também são as minhas.
Uma coisa que sempre frisou é que os seus livros são inspirados em histórias e pessoas reais. Porque é que procura inspiração no real?
Volto mais ou menos a onde preciso de voltar. Na literatura, volto àquilo que por mim ainda não foi contado. É uma das hipóteses. A outra é que volto para lembrar coisas que quero reconstruir. Não lembro só para lembrar, lembro para reconstruir. Não o meu passado histórico, mas o meu passado emocional. Isso faz com que a literatura se apresente ou apresente uma outra versão da realidade. Então podemos, em 2020, olhar para os anos 80 sob a mediação de um livro. É diferente de sob a mediação de um historiador, de um jornalista. É isso que quero, transformar o passado numa outra coisa qualquer, nova emocionalmente.
E que olhar é esse que o escritor pode oferecer?
Creio que o escritor pode ter menos amarras. Creio que é só isso. Ou melhor, [pode ter] outro tipo de amarras. Acho que o historiador tem umas e o escritor tem outras. Não comparo, acho que são objetivos diferentes e águas diferentes que se navegam.
Disse que volta a certas histórias para reconstruir um passado emocional. Porque é que sente essa necessidade?
No sentido em que acredito que as pessoas têm direito de reconstruir as suas lembranças. Se uma criança ou um adulto diz “ai, eu lembro que foi assim”, eu respeito muito essa versão dos outros, quando se lembram que foi assim e não de outro modo. Então, não posso desrespeitar nesse sentido. Agora, se me lembro que foi de outra maneira e essa outra maneira é melhor para a literatura, agradeço e avanço. Gosto de me lembrar da maneira que o livro quer falar e não da maneira que eu, sozinho, quero falar. Não quero falar comigo, quero falar com os livros.
Apenas com os livros?
Não, falo com os livros para falar com o mundo.
A grande mentira sobre os anos 80
O Livro do Deslembramento está repleto de histórias muito divertidas, muitas delas envolvendo o tio Chico, mas termina com uma nota pesada — o recomeço da guerra civil.
Quis que marcasse o fim do livro como uma surpresa, tal como deve ter sido para as crianças que viveram esses dias. Nunca é fácil.
Porque é que escolheu acabar o livro num tom totalmente diferente, com esta guerra que durou de “sexta a terça-feira”, como diz o narrador?
Porque queria que o livro acabasse em 92. Há coisas para dizer que aconteceram depois disso, e o limite desse “deslembramento” era 1992.
Isso significa que pretende dar continuidade a estas histórias?
De certa maneira, isso já foi feito. Em Quantas Madrugadas Tem A Noite e n’Os Transparentes, ando para a frente. Enfim, tem sido tratado. O que este livro traz, se traz, se resolve, é um puzzle que estava a ser feito com Bom Dia Camaradas e AvóDezanove. A partir de agora, creio que os anos 80 estão resolvidos dentro da minha obra.
É a sua trilogia sobre os anos 80?
São quatro [livros], com Os da Minha Rua. São três mais um. Três romances e Os da Minha Rua [um livro de contos]. Considero que essa é a minha grande mentira sobre os anos 80.
Porquê a “grande mentira”?
Isso não posso revelar agora, temos de falar daqui a dez anos.
Porquê daqui a dez anos?
Porque daqui a dez anos talvez haja um outro livro que esclareça esses três mais um.
Então tem um projeto a longo prazo.
Tenho sempre um projeto, mas isso que estou a dizer é uma desconfiança. Não é um projeto, nem nada assim pensado, mas desconfio que falta aí alguma coisa. Mas demoro a perceber. Este livro, O Livro do Deslembramento, começou a ser escrito em 2010. Comecei a pensar neste livro há dez anos, por isso é que estou a dar dez anos para acontecer alguma coisa. Menos de dez, duvido.
Precisa de tempo para ir pensando, amadurecendo uma ideia?
Preciso de tempo para descobrir a história e de muito tempo para rever a história. Acho que passei os últimos três, quatro anos, a mexer n’O Livro do Deslembramento. O corpo da coisa já estava, mas os últimos dois, três anos, são sempre de corte. Neste caso, foi de muito corte. O livro era maior.
Olhando para a sua bibliografia, parece precisamente o contrário.
A verdade é que, por exemplo, se for publicar um livro em 2022, provavelmente já estou a rever esse livro [agora]. Poesia, contos, infantis… Estou sempre a mexer. Pode ser que escreva muito, mas [os livros] não saem sem serem profundamente revistos. Nem gosto de fazer isso, de acabar de escrever agora, entregar o livro e já estar a sair. Não me lembro de nenhuma vez isso ter acontecido. Talvez no Bom Dia Camaradas, porque tinha mentido ao editor e dito que já tinha o livro pronto. Depois tive de o entregar.
Como foi isso?
Ele perguntou-me se tinha alguma coisa a ver com a independência. Percebi que tinha espaço para isso e disse que sim, que estava a escrever um romance que tinha a ver com a independência. “E sobre o que é o romance?” Tive de inventar, “é sobre a minha infância, os meus pais, os professores cubanos em Angola, os anos de socialismo”. “Ah, isso é muito interessante, quando é que me mostras isso?” Disse, “ah, daqui a uns dois meses, já estou a meio”. Não tinha nada. Nada. Nem título. Nada, nada. Esta conversa foi em fins de maio [de 2000] e construí parte do livro em agosto. Entreguei o livro em dezembro, se não estou em erro.
Então criou o enredo de Bom Dia Camaradas ali, naquele momento.
Sim, mas ganhei uma lição, percebi que aquela mentira era toda verdade. Tudo o que tinha dito era verdade. Eu é que não sabia que já tinha o livro. Isso foi bom. É um livro que escrevi sem pensamento, sem estratégica, sem pensar que isto ou que aquilo. Muito pelo contrário, foi um livro instintivo e acho que correu bem. Não tenho a certeza.
Temos estado a falar sobretudo de romances, mas foi com um livro de poesia, Actu Sanguíneu, que se estreou. A poesia é, aliás, um género a que volta com bastante regularidade.
Sim. Gosto sobretudo de ler. Escrever não sei, mas gosto muito de ler poesia.
Mas sente essa necessidade.
Não consigo associar o “gostar” a escrever poesia. A poesia ou se escreve ou não se escreve. Gostar, gosto de ir à praia. Gosto de Chet Baker. Gosto muito de Chet Baker. Agora da poesia… Não estou a dizer que é uma coisa que aconteça como a chuva, sem saber de onde é que vem, mas às vezes é bom não saber de onde veio o poema. Então não ando aqui todos os dias a procurar de onde vem e se chegará o poema. O conto, não. O conto e o romance, tenho de trabalhar, vestir, pensar na ideia, voltar a pensar na ideia. O poema não. Com o poema tenho uma atitude de espera. Eu espero o poema. Ou ele vem ou ele não vem.
É um processo menos racional? Mais espontâneo?
É mais espontâneo de acordo com o que vai circulando por dentro.
Além de poesia e romance, já publicou contos, livros infantis, teatro. Vais alternando entre géneros porque te sentes confortável em todos eles ou porque não gosta de ficar preso a um só registo?
Não, não me sinto confortável em todos. Sinto-me um pouco mais confortável nos contos. O conto é o que gosto mais de estar, mais de falar quando dou escrita criativa. Em relação aos outros, não me sinto minimamente especialista. Mas não, não me sinto muito à vontade na poesia. No género da literatura infantil também não. Custa-me um bocado, mas gosto. Gosto dessa investigação, gosto de pensar que é possível hoje, com a minha idade, ter uma criança ainda dentro de mim que pode e sabe escrever para outras crianças. Porque não quero escrever para outras crianças com o adulto que mora em mim. Não me interessa.
Sente-se mais contista do que romancista ou poeta?
Sinto-me mais um contador de histórias. De vez em quando pode ser que saia um poema, mas a minha questão é com contar uma história. O processo é muito bom. Gosto é do processo de contar. O resultado já não tem muito a ver comigo.
Como é que se inicia esse processo de contar?
Inicia-se com uma espera, e às vezes sabemos o que há para ser contado e às vezes não sabemos. Creio que a grande aprendizagem, que procuro ainda beber nas palavras da Paula Tavares, do Ruy Duarte de Carvalho, por exemplo, é qual é o lugar do silêncio. Cada vez mais, ao longo do tempo, o que me vai assombrando e preocupando é o lugar do silêncio. Neste momento, já conheço o lugar das palavras. Já sei como se pode dizer ou escrever. Então, o que está em falta, daqui para a frente, até aos últimos dias, é aprender a gerir os silêncios, e acho que isso foi crucial na obra do Ruy Duarte de Carvalho e na obra da Paula Tavares também. Não é domar o silêncio, é adequarmo-nos ao silêncio. Ou adequar o silêncio ao que deve ser dito.
E sentirmo-nos confortáveis no silêncio?
Sim, isso é essencial. No silêncio coletivo ou no silêncio privado. Há pessoas que têm medo do silêncio. Bom, todos temos de trabalhar os nossos medos. O silêncio está subvalorizado ou esquecido. Devíamos até, se calhar, ter aulas de silêncio. Era muito bom.
Como referi no início da nossa conversa, este ano celebra duas décadas de vida literária. Como é que olha para estes primeiros trabalhos?
Olho descansado, mesmo para os que não são os mais afinados, porque fazem parte do meu percurso. Acho bom que o leitor conheça e, até eu, não no meu caso, mas no caso de outros autores, gosto de ir ver as obras iniciais, os erros, os lapsos, as enormes doses de influência que não se consegue medir e que aparecem com muito furor e com muita explosão. Gosto disso, e portanto aprendi a assumir isso. Corrijo algumas coisas, há livros que alterei um bocadinho, mas não tenho nenhum livro que dissesse que queria retirar do mercado. Não tenho. Estou descansado com as coisas que publiquei, com a idade com que publiquei e com a experiência que tive. O Momentos de Aqui é um livro de contos muito desigual, e é bom que assim seja. Tinha 23 anos quando o publiquei. Há contos que escrevi com 13 anos. É tranquilo para mim. Acho que é possível mostrar, aceitar e dialogar com o público de acordo com a nossa evolução. É bom.
Um sonho chamado Kiela
Em que projeto é que está a trabalhar agora?
O meu projeto agora é sobreviver à abertura de uma livraria. Estou a abrir uma livraria. Estou a trabalhar nisso há um ano e meio, com um amigo e sócio. É aqui, em Luanda. Estava tudo preparado para abrir em fevereiro e em março veio a Covid. Reformulámos tudo, estamos a fazer o site, a especializarmo-nos mais em ter stock e vender online, mas agora, em meados de setembro, devemos abri-la, enfim, dentro do que for possível. Mas os poucos contactos que temos feito, com o site, a reação do público tem sido boa. Claro, é uma livraria com uma curadoria escolhida a dedo. Temos 600 e tal títulos, livros vindos daí, daqui, claro, do Brasil também, e também vendemos jogos. A livraria chama-se Kiela e kiela é um jogo africano de pedrinhas, de negociação, de estratégia. E temos planos paralelos à livraria. Não é só uma livraria de vender livros, vamos ter muita programação cultural para crianças, adultos, oficinas, e queremos fazer um trabalho que faça sentido nesta sociedade — vender livros com preços mais ou menos acessíveis, com alguma responsabilidade, e ter ações diretas em torno da palavra para trabalhar para e com as comunidades. Este é um grande sonho. Lá está, gosto muito de falar em dez anos — vamos demorar dez anos a organizar tudo isto.
Como é o mercado livreiro em Luanda?
É complicado, mas creio que ainda não está a ser explorado e é isso que quero experimentar. Além da livraria, também vamos abrir uma editora. O que quero entender é se sempre foi uma mera opção as pessoas terem os livros caros ou se é possível de uma maneira criativa, com o papel certo, o tamanho certo e a edição certa, fazer o livro um bocadinho mais barato. Já temos vários títulos preparados, mas ainda não mandei imprimir. Estou a fazer uma sondagem de mercado e parece-me que sim, que vamos conseguir praticar preços abaixo dos que estavam a ser praticados, porque estamos a entrar numa lógica de lucro um bocadinho mais magro. Mas já falamos abertamente sobre isto aqui em Luanda: queremos mudar a lógica e a lógica do público se relacionar com o livro. Com atividades, com divulgação, programas, talvez aos poucos ir convencendo o governo que necessita de patrocinar, subsidiar os livros de uma outra maneira, para que os livros cheguem às pessoas mais baratos.
Os livros são caros porque a produção é cara ou existem outras razões?
Penso que os livros são caros porque é cara a importação do papel. O setor gráfico é uma atividade cara. Sei que o papel é caríssimo e que sofre taxas de importação. Por outro lado, claro, as prioridades em Angola durante muitos anos e até agora foram subvertidas, seja por razões reais, práticas, porque as pessoas tinham outras prioridades, seja por consequência de questões de educação e de cultura. E também falta de dinheiro. O livro ainda é um objeto caro em Angola.
Disse que também planeavam abrir uma editora. O que é que querem publicar?
Queremos trabalhar, claro, com autores angolanos e quero muito, assim que for possível — tudo isto são planos, ainda não está a ser executado –, trabalhar com autores africanos não só de língua portuguesa. Temos duas coisas que queremos fazer. A uma chamamos política de vizinhança — queremos traduzir e dar a conhecer os nossos vizinhos. Em Angola, ninguém lê os autores da República Democrática do Congo, da Zâmbia e da Namíbia. Já estou a estabelecer contactos para ver quem os novos escritores, não só os antigos. Isso tem de ser traduzido, porque estamos cercados de vizinhos de língua francesa e inglesa. Os outros são os habituais, os nossos primos, Moçambique, São Tomé, e os nossos primos mais distantes, Portugal, Brasil, Timor. Vamos chamar à coleção “Outras Geografias da Língua Portuguesa”. Portanto, em breve teremos novidades. Inclusivamente vamos distribuir em Portugal e no Brasil. Um dia, vai entrar numa livraria, vai ver uma editora chamada Kacimbo e vai lembrar-se desta conversa.