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A 26 de março de 1915 foi posto à venda o primeiro número do Orpheu. A revista, um projeto idealizado por um pequeno grupo de artistas lisboetas, tinha como objetivo acolher “tudo quanto representa a arte avançada”, como disse um dia Fernando Pessoa. Mas o Orpheu foi muito mais do que isso.
Com apenas dois volumes editados, a revista foi, nas palavras de Fernando Cabral Martins, “uma lufada de modernismo”, a explosão da Vanguarda e um escândalo que encheu as páginas dos jornais. E mais importante do que tudo — foi uma “loucura” que mudou para sempre o rumo da literatura portuguesa.
A Lisboa ingénua e pacata
O ano começou agitado. No primeiro dia de janeiro, explodiu num quintal em Lisboa um arsenal de bombas de dinamite, aí guardado por um grupo de anarquistas. A explosão, na rua do Borja, causou a morte de um dos bombistas, conhecido por “Centelha”. Ao longo de 1915, outros confrontos seguir-se-iam.
Nesta altura, Lisboa pouco tinha de “pacata” ou “ingénua”, como refere Eduardo Lourenço. A cisão do Partido Republicano em três fações mergulhou o país numa definitiva instabilidade governativa, que se arrastava desde a implantação da República. Num espaço de quatro anos, o país conheceu oito governos distintos e Lisboa era palco de confrontos regulares entre monárquicos, sindicalistas e anarquistas.
Estes confrontos conheceram o seu auge precisamente em 1915. Em maio, poucas semanas depois de ter saído o primeiro número de Orpheu, Lisboa assistiu ao primeiro grande confronto entre republicanos. No dia 14, a revolução rebentou na capital, provocando três dias de combates acesos e a morte de mais de uma centena de pessoas. “Foi a revolução mais sangrenta do século XX” em Portugal, escreveu José Barreto em 1915 — O Ano de Orpheu. O governo militar de Pimenta de Castro tinha sido derrubado.
Lá fora, as coisas não estavam muito melhores. Com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, assistiu-se a um declínio da vida artística e intelectual europeia. Em França, muitos artistas sediados em Paris, viram-se obrigados a regressar aos países de origem. Entre eles, estava Mário de Sá-Carneiro.
Este clima de grande agitação social e política não passou despercebido aos do Orpheu. “Na Vanguarda, é muito difícil separar a arte da política e da realidade social”, explicou Jerónimo Pizarro, investigador, especialista em Fernando Pessoa, ao Observador. “Pessoa teria alturas da sua vida em que se separaria muito mais do universo social (como na revista Athena). Mas o Orpheu era ainda uma revista que participava muitíssimo no contexto político e social”.
À sua maneira, Orpheu encarnou o espírito do seu tempo. “Numa altura de muita revolta, de muitos conflitos, Orpheu não queria indicar algum tipo de paz e tranquilidade”, referiu o investigador. “Num clima que já era muito bélico, Orpheu era uma forma bélica de pensar as artes”.
Mas, apesar da instabilidade, dos anarquistas bombistas e da guerra, os problemas do dia-a-dia não eram tema de discussão à mesa do Montanha. No café, a conversa era outra.
À mesa do Café Montanha
O Montanha, na antiga rua do Arco do Bandeira (atual rua dos Sapateiros), era um dos cafés mais frequentados por Fernando Pessoa. Foi aí que, em 1930, o poeta se encontrou pela primeira (e única) vez com José Régio e João Gaspar Simões, vestindo a pele de Álvaro de Campos. Mas não foi só por isso que o Montanha ficou famoso. Foi também aí que surgiu a hipótese de criar uma revista literária.
A ideia já era antiga, mas foi só em fevereiro de 1915 que começou a ganhar forma. A sugestão partiu de Luís de Montalvor, que tinha então regressado do Brasil, e que há muito pretendia publicar uma revista modernista em Portugal e em terras brasileiras.
Para o título, pensou-se em Contemporânea, Europa e em Lusitânia, nome que viria a ser depois aproveitado por José Pacheco. Mas a revista literária acabaria por ser batizada com outro nome — Orpheu. No dia 19, Pessoa fez o anúncio — “vai entrar imediatamente no prelo a nossa revista, Orpheu”, escreveu a Armando Côrtes-Rodrigues.
Em pouco mais de dois meses, a revista ficou pronta. No primeiro número, para além de Pessoa, Sá-Carneiro, Montalvor e Côrtes-Rodrigues, participaram também Alfredo Pedro Guisado, José de Almada Negreiros e José Pacheco, responsável pela direção gráfica. A direção ficou a cargo do brasileiro Ronald de Carvalho, “um dos mais interessantes poetas brasileiros”, e de Montalvor.
Infografia interativa dos autores do Orpheu 1. Clique nos círculos para ler as biografias.
A revista foi posta à venda no dia 26. Na noite anterior, tinham sido lidos excertos da “Ode Triunfal” pelas ruas do Chiado e entregues os dez primeiros exemplares a Mário de Sá-Carneiro. O primeiro exemplar foi comprado precisamente às 19 horas do dia 26, de acordo com um horóscopo feito por Pessoa. No mesmo dia, foram vendidos outros 16.
Os maluquinhos de Rilhafoles
Ao fim de vários meses de intenso trabalho e planeamento, o Orpheu estava finalmente nas ruas. E o escândalo não tardou em chegar.
Poucos dias depois da publicação, saiu no diário A Capital o artigo “Literatura de manicómio”. Aí, foram citados Júlio Dantas, psiquiatra e escritor, e Júlio de Matos, que apoiavam a ideia de que os poetas de Orpheu eram um caso claro de paranoia.
No dia seguinte, A Capital voltou ao ataque. Num artigo de opinião, André Brun escreveu que “quando vi o Orpheu nas mãos de Praxedes supus que tal leitura lhe tivesse alterado as faculdades mentais”.
O escândalo, alimentado pelos jornais locais, só serviu para aumentar o êxito da revista. Em carta a Côrtes-Rodrigues, datada de quatro de abril, Pessoa admitia que o Orpheu era “o assunto do dia em Lisboa. Sem exagero lho digo. O escândalo é enorme”, disse ao amigo.
Nos cafés lisboetas, todos falavam de Orpheu, e os jornais continuavam a encher as páginas com notícias dos “maluquinhos” de Rilhafoles. No dia seis, em A Vanguarda, José Bacelar pediu que “deixemos em paz os novos e enfatuados maluquinhos das letras pátridas” e, no dia 17, saiu em O Povo o artigo “Rilhafolescamente…: A humanidade avança… mais 200 anos e o mundo será um grande manicómio”.
Ainda em abril, no dia 19, saiu o célebre artigo de Júlio Dantas “Poetas-Paranóicos”, que acabou também por ser a sua sentença de morte. Para a posteridade, Dantas ficaria apenas conhecido como aquele que “usa ceroulas de malha”, como escreveu Almada Negreiros no seu famoso “Manifesto Anti-Dantas”, publicado um ano depois.
Para Jerónimo Pizarro, a reação da imprensa mostra que esta “não estava preparada para certas partes do Orpheu”. “A imprensa decidiu falar com psiquiatras”, que fizeram uma avaliação da revista. Mas esta não era uma “crítica literária a sério, era uma crítica psiquiátrica”.
Doidos ou não, a verdade é que o primeiro número de Orpheu foi um sucesso, e o grupo apressou-se a organizar uma nova edição.
O número dois
À medida que o ano avançava, nem tudo parecia correr bem dentro do círculo da Brasileira. Vários desentendimentos levaram à saída de Montalvor e Ronald de Carvalho da direção. No seu lugar, ficaram Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa.
Com a saída de Montalvor, a grande influência simbolista da revista, o Orpheu tornou-se numa “coisa muito diferente”. Mais vanguardista, passou também a incluir novas colaborações — o brasileiro Eduardo Guimarães, Raul Leal e Côrtes-Rodrigues, sob o nome de Violante de Cysneiros. Assumindo o papel de “maluquinhos das letras pátridas”, Fernando Pessoa decidiu convidar Ângelo de Lima, um poeta internado há anos em Rilhafoles, o antigo hospital Miguel Bombarda.
“A resposta dos órficos foi muito digna e muito bem pensada”, disse Pizarro. “‘Nós somos acusados de sermos doidos, então temos de convidar um doido a sério para participar na revista’. E assim entra Ângelo de Lima, que estava internado há 15 anos”.
A imprensa não perdoou. No próprio dia do lançamento, a 28 de junho, A Capital voltou a associar o Orpheu a Rilhafoles. Em “Artistas de Rilhafoles”, o jornal chegou mesmo a chamar a Sá-Carneiro um “rapaz mastodôntico com alma de criança”. No dia um de julho, O Século chamou-os “Os Incompreendidos” e no dia 17, surgiu no Sport de Lisboa o artigo “A prova do Zé Maluco”.
Jerónimo Pizarro acredita que a publicidade teve um papel fundamental na consagração do Orpheu. “Para o Orpheu, foi importantíssimo que a imprensa fosse uma espécie de inimigo. Pessoa nunca mais conseguiria tanta atenção”. Mas, para o investigador, o escândalo não surgiu por acaso. “A revista criou muito barulho, mas foi propositado. Se não fosse Pessoa a criar a polémica, teriam sido alguns dos jovens envolvidos na revista”, afirmou.
Afonso Costa e o elétrico
A primeira grande crise dentro da revista aconteceu no dia 5 de julho, data em que saiu na Capital uma notícia acerca de uma “récita” que estaria a ser planeada pelos “futuristas do Orpheu”. A tal “récita”, de nome “A bebedeira”, tratava-se de um “drama dinâmico” onde apenas entravam pernas, iluminadas por estranhos e bizarros efeitos de luz.
A resposta não tardou. No dia seguinte, com o duplo título “Antipático futurismo. Os poetas do Orpheu não passam, afinal, de criaturas de maus sentimentos”, A Capital dava conta da entrega de uma carta de protesto assinada por Álvaro de Campos, em que era referido um acidente sofrido por Afonso Costa.
“De resto seria de mau gosto repudiar ligações com o futurismo numa hora tão deliciosamente mecânica em que a própria Providência Divina se serve dos carros elétricos para os seus altos ensinamentos”, escreveu Álvaro de Campos.
No dia 3 de julho, Afonso Costa, dirigente do Partido Democrático, que havia apoiado o golpe contra Pimenta de Castro, sofreu um acidente durante uma viagem de elétrico. Ao ouvir o som do que lhe pareceu ser uma explosão, Costa decidiu saltar do elétrico em movimento. Ao salto espetacular, seguiu-se uma grande queda, acompanhada de um traumatismo craniano.
Pizarro admite que, na altura, Costa andava “um bocadinho paranoico” por causa de um atentado que tinha sofrido no Porto. Temendo um segundo atentado, o dirigente não viu outro remédio senão saltar borda fora. “Álvaro de Campos aproveita isso da ‘pior’ forma, criando praticamente o fim da revista”, explicou o investigador.
Descontentes com a carta escrita pelo “engenheiro e poeta sensacionista”, alguns colaboradores decidiram vir a público defender-se. Os mais radicais foram Alfredo Guisado e António Ferro que, como dá conta um exemplar de A Capital, decidem afastar-se do projeto. O próprio Sá-Carneiro decide entregar ao jornal uma carta em que diz que o Orpheu não se pode confundir com “os atos individuais dos seus colaboradores ou dirigentes”.
Em causa a reputação da própria revista. “A verdade é que, mesmo que Fernando Pessoa odiasse profundamente Afonso Costa, dentro da revista havia posições políticas muito diferentes. Esta tinha de conviver, não apenas com a heterogeneidade artística, mas também com a heterogeneidade política. E, politicamente, acho que o Orpheu nunca teve posição política nenhuma”, defendeu Pizarro.
Há porém quem acredite que a posição marcada por vários membros do Orpheu não se deveu apenas a um mero descontentamento. “Há quem diga que a Formiga Branca procurou Pessoa e, não só tentou bater-lhe, como poderá também ter tentado algum tipo de atentado parecido com o que sofreu Afonso Costa no Porto”, referiu Pizarro.
O Movimento da Formiga Branca era uma organização semi-clandestina formada durante a Primeira República e associada ao Partido Democrático e a Afonso Costa. Esta funcionava como uma espécie de polícia política, vigiando e controlando os opositores do partido.
De acordo com registos da época, notas em diários e outras indicações, acredita-se que o grupo tenha perseguido os membros da revista modernista. “Estariam a ser vigiados, controlados e ameaçados”, afirma Pizarro. Perante a ameaça, “que se podia ter materializado”, as reações de Almada e Sá-Carneiro, os mais próximos de Fernando Pessoa, nada mais são do que uma tentativa de proteger Pessoa. “Não era apenas uma questão de a carta não dever ter sido escrita. A carta foi perigosa e podia ter posto Fernando Pessoa em risco. Desmentiram para protegerem Pessoa e para se protegerem a si próprios”.
Uma morte precoce
Entretanto, em Portugal, a situação política e social agravara-se. O país debatia-se não só com a agitação social e governamental, mas também com a escalada da Primeira Guerra Mundial, em que entraria oficialmente em março do ano seguinte.
Em julho, Sá-Carneiro regressou a Paris. A decisão foi abrupta — sem aviso prévio, sem uma carta de despedida para os amigos. Uma vez em França, escrevia quase todos os dias a Pessoa. Falava da guerra, da vida passada entre os cafés dos boulevards parisienses. E claro, de Orpheu.
A publicação do terceiro número estava programada para outubro de 1915, mas tal nunca viria a acontecer. Afinal, “os tempos não estavam para brincadeiras, nem sequer para Orpheu, que não era uma brincadeira mas ninguém sabia”, como escreveu Fernando Cabral Martins para o Jornal de Letras.
O número três, já em provas, acabaria por nunca sair por falta de financiamento, obtido por Sá-Carneiro junto do pai. A notícia foi dada a Pessoa numa carta datada de dia 13 de setembro. “Temos desgraçadamente de desistir do nosso Orpheu”, escreveu Sá-Carneiro ao amigo. A razão estaria numa carta que recebera do pai, na qual este se mostrava indignado com a “conta exorbitante” que o filho o obrigava a pagar. “Foi para África por não ter dinheiro”, explicou o poeta. “Lá não ganha sequer para as despesas normais”.
Mas, para Jerónimo Pizarro, a morte do Orpheu não aconteceu por falta de dinheiro. O investigador acredita que o pai de Sá-Carneiro, a viver em Moçambique na altura, não estava a passar por dificuldades financeiras. O motivo seria outro.
“O pai tinha conhecimento dos ataques feitos à revista. Ele disse ter sido por falta de dinheiro, mas não me parece que vivesse naquele momento uma situação complicada”, explicou o investigador. “Penso que nunca terá sido uma decisão apenas económica. Não quis continuar a acompanhar uma doidice que estava a criar uma imagem do filho e dos amigos como doidos”.
O Orpheu 3 haveria de ser tema de conversa até ao fim da vida de Fernando Pessoa. Até à sua morte, em 1935, Pessoa haveria de continuar a sonhar com a publicação do terceiro número da revista que, de acordo com Jerónimo Pizarro, seria “mais europeu”.
A publicação acabaria por acontecer, mas muitos anos depois. Em 1983 seria finalmente publicado o último número do Orpheu, sob a forma de provas tipográficas incompletas.
Orpheu continua
Cem anos depois, a influência do Orpheu não está na publicação em si. A revista, heterogénia por natureza, é muito mais do que “uma série de textos”, como salientou Jerónimo Pizarro. “Não sinto que seja necessariamente o valor literário que esteja em causa. É o que implica simbolicamente”.
Para o especialista em Fernando Pessoa, “se tirarmos a colaboração de Pessoa e duas ou três coisas mais modernas, é uma revista desinteressante. Não é muito diferente do que se fazia na altura”.
Mas, se assim é, que marca deixou, afinal, Orpheu? Acima de tudo, “o que lembramos foi a coragem com que mexeram no ambiente. Escreveram coisas que mais ninguém teria escrito”, explicou o investigador. “Não há nada parecido ao espírito do Orpheu em termos de ataque, de reação, de provocação”.
Orpheu é, acima de tudo, um símbolo. “Representa o que de mais moderno se fez em Portugal na época da Primeira Guerra Mundial. Rompeu com uma série de limites, de ideias do que se podia ou não escrever, do que se podia ou não dizer”. Rompeu com a ideia do que era literatura.
Para Pizarro, assim como para muitos outros, a revista nunca deixará de ser importante. “Para mim o Orpheu é importantíssimo porque 1915 é o momento futurista e modernista em Portugal. O país já tinha tido muitas tentativas de modernizar a arte, mas ficaram cristalizadas no Orpheu. E não á uma cristalização mais importante das muitas tendências modernas”.
Passados cem anos, Orpheu continua a marcar. Porquê? Porque foi um oásis “no deserto da literatura nacional”. E foi isso que Fernando Pessoa quis dizer quando, em 1935, escreveu “Orpheu acabou. Orpheu continua”.