O discurso
Juiz Roberts, vice-presidente Harris, speaker Pelosi, líder Schumer, líder McConnell, vice-presidente Pence, distintos convidados, meus caros americanos.
A primeira linha do discurso, com os habituais cumprimentos formais, sublinhou a grande ausência do dia: Donald Trump. Durante todo o discurso, Joe Biden iria criticar a forma como se fez política nos EUA nos últimos quatro anos e assegurar que está apostado em romper com a era Trump — sem nunca dizer o nome do antecessor (tal como Trump tinha recusado dizer o nome de Biden no seu discurso de despedida).
Hoje é o dia da América. Hoje é o dia da democracia. Um dia de história e de esperança. De determinação e de resiliência. Durante as provações dos tempos, a América foi testada uma e outra vez — e esteve à altura do desafio. Hoje, celebramos o triunfo, não de um candidato, mas de uma causa, a causa da democracia. A vontade do povo foi ouvida e a vontade do povo foi atendida.
Após dois meses em que Donald Trump se multiplicou em alegações infundadas de fraude eleitoral, procurou reverter os resultados da eleição, tentou pressionar funcionários eleitorais a fabricar votos e questionou até ao último segundo a legitimidade da eleição de Joe Biden, o novo Presidente norte-americano fez questão de deixar claro que a eleição foi democrática, obteve uma participação recorde e ele é o legítimo vencedor do sufrágio. E depois das ameaças ao sistema democrático, Biden procura não colher os louros todos: mais do que ele, foi a democracia (e a escolha do povo) que ganhou.
Aprendemos outra vez que a democracia é preciosa. A democracia é frágil. Neste momento, meus amigos, a democracia prevaleceu. Agora, neste solo sagrado, onde há poucos dias a violência tentou abalar as próprias fundações deste Capitólio, reunimo-nos como uma única nação, sob Deus, indivisível, para realizar a transferência pacífica do poder, como temos feito por mais de dois séculos. Olhamos em frente com o nosso modo unicamente americano — incansável, ousado e otimista — e pomos o nosso olhar na nação que sabemos que conseguimos ser e que devemos ser.
O ataque ao Capitólio ocorrido no dia 6 de janeiro é o momento definidor da atual situação política norte-americana. O impensável aconteceu: apoiantes de um Presidente derrotado na reeleição invadiram o edifício, incitados por Trump, com o objetivo de impedir a certificação dos votos. Joe Biden não podia deixar de referir o incidente, e fê-lo logo no arranque do discurso. Salientou que, apesar das tentativas de para o impedir, no fim de contas prevaleceu a capacidade de organizar uma tomada de posse pacífica e terminar, civilizadamente, a era de Trump.
Agradeço aos meus antecessores de ambos os partidos pela sua presença aqui. Agradeço-lhes do fundo do meu coração. Vocês conhecem a resiliência da nossa Constituição e a força da nossa nação, tal como o Presidente Carter, com quem falei ontem à noite, mas que não pode estar connosco hoje, mas a quem envio uma saudação por toda uma vida de serviço. Acabei de fazer o juramento solene que todos estes patriotas fizeram — um juramento feito pela primeira vez por George Washington.
Joe Biden já ia com alguns minutos de discurso e, sempre sem referir o nome do antecessor, lançou várias em farpas a Trump. Esta foi uma das mais óbvias. Atrás dele, no Capitólio, estavam os ex-presidentes Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama. Todos — e Biden fez questão de sublinhar que fazem parte de ambos os partidos — tiveram direito a uma saudação vigorosa por parte do novo Presidente. Há dois ex-presidentes vivos que falharam a tomada de posse: Donald Trump e Jimmy Carter. Mas só o segundo teve direito a uma referência no discurso. Carter, de 96 anos e saúde frágil, optou por ficar em casa, onde tem passado todo o período da pandemia da Covid-19, mas enviou uma mensagem de felicitação ao novo Presidente. Ficou firmada a intenção de Biden de evitar o nome de Trump: nem no momento em que se referiu a ex-presidentes ausentes o nome do antecessor surgiu, ficando excluído da lista de “patriotas” enunciada por Joe Biden.
Poucos períodos na história da nação foram mais desafiantes ou difíceis do que aquele em que nos encontramos atualmente. Um vírus que surge uma vez num século persegue silenciosamente o país. Já ceifou tantas vidas num ano como as que a América perdeu em toda a Segunda Guerra Mundial. Milhões de empregos já se perderam. Centenas de milhares de negócios encerraram.
Depois de uma introdução essencialmente política em que procurou distanciar-se de Trump e mostrar que quer inaugurar um novo capítulo na história dos EUA, Joe Biden focou-se nas políticas e deixou clara qual será a sua primeira prioridade nos primeiros meses de mandato: o combate à pandemia. Também neste ponto, Biden adotou um discurso diferente do seu antecessor. Enquanto Trump, em vários momentos, desvalorizou a gravidade da pandemia e disse preferir abrir a economia rapidamente, Joe Biden quis começar por reconhecer a gravidade do problema.
Somos tocados por um grito pela justiça racial que demorou 400 anos. O sonho da justiça para todos não será mais adiado. Do próprio planeta, chega um grito de sobrevivência. Um grito que não podia ser mais desesperado ou mais claro. E, agora, um aumento do extremismo político, da supremacia branca, do terrorismo doméstico que temos de confrontar e que vamos derrotar.
Em poucos segundos, Biden listou aqueles que considera serem os principais problemas dos EUA neste momento e também aqui, mais uma vez, traçou uma linha clara entre a sua agenda e a da administração anterior. Enquanto Trump se distanciou do movimento Black Lives Matter, Biden garante que ficará do lado de quem luta pela justiça racial; enquando Trump retirou os EUA do Acordo de Paris, Biden diz que a luta contra as alterações climáticas estará no topo da sua agenda; enquanto Trump alimentou o extremismo (é curioso notar o uso da expressão “terrorismo doméstico”, que tem sido usada pelos democratas para classificar a invasão do Capitólio por apoiantes de Trump), Biden diz que se empenhará em “confrontar” e “derrotar” os extremistas.
Ouçamo-nos uns aos outros. Escutemo-nos uns aos outros. Vejamo-nos uns aos outros. Respeitemo-nos uns aos outros. A política não precisa de ser um fogo devastador que destrói tudo no seu caminho. Cada discórdia não precisa de ser causa de guerra total. E temos de rejeitar a cultura em que os próprios factos são manipulados e até fabricados. Meus caros americanos, temos de ser diferentes disto. A América tem de ser melhor que isto.
Depois de repetir os apelos à união, Joe Biden procurou dar uma receita para o regresso da normalidade à discussão política norte-americana. (Aliás, um dos grandes slogans oficiosos da eleição de Biden era: “Tornar a Política Aborrecida Outra Vez“.) Depois de quatro anos de retórica inflamada, de disputa constante no espaço público, Biden quer pôr água na fervura de um país dividido. E, novamente, deixa uma crítica a Trump sem o nomear: é preciso acabar com a retórica dos factos à medida.
Aqui estamos nós, a olhar para o Passeio Nacional, onde o Dr. King falou do seu sonho. Aqui estamos nós, onde há 108 anos, noutra tomada de posse, milhares de manifestantes tentaram impedir mulheres corajosas de marcharem pelo direito ao voto. Hoje, assinalamos a tomada de posse da primeira mulher na história americana eleita para um cargo nacional — a vice-presidente Kamala Harris. Não me digam que as coisas não podem mudar.
Com a referência a Martin Luther King e ao movimento sufragista, Joe Biden reitera que a sua agenda política será marcada pela luta feminista e anti-racista. Em 1913, durante a tomada de posse de Woodrow Wilson, uma marcha organizada pela AmericanWomanSuffrageAssociation percorreu a Avenida da Pensilvânia em protesto pelo voto feminino — um dos marcos da luta sufragista. Um século depois, os EUA elegeram a primeira mulher para o cargo de vice-presidente.
Há muitos séculos, Santo Agostinho, um santo da minha Igreja, escreveu que um povo é uma multidão definida pelos objetos comuns do seu amor. Quais são os objetivos comuns que amamos que nos definem como americanos? Acho que sei. Oportunidade. Segurança. Liberdade. Dignidade. Respeito. Honra. E, sim, a verdade. As semanas e os meses recentes ensinaram-nos uma lição dolorosa. Há verdade e há mentiras. Mentiras ditas pelo poder e pelo lucro. E cada um de nós tem o dever e a responsabilidade enquanto cidadãos, enquanto americanos, e especialmente enquanto líderes — líderes que juraram honrar a nossa Constituição e proteger a nossa nação — de defender a verdade e derrotar as mentiras.
Mais uma vez, Biden referiu-se, sem o nomear diretamente, aos esforços de Trump para reverter os resultados eleitorais ao longo dos últimos dois meses — e salientou que é inaceitável que um Presidente eleito fuja à sua responsabilidade de “defender a verdade e derrotar as mentiras”.
Eu percebo que muitos americanos veem o futuro com medo e trepidação. Percebo que se preocupem com os seus empregos, com o cuidado das suas famílias, com o que vem depois. Eu percebo. Mas a resposta não é andar para trás, não é recolhermo-nos em fações concorrentes, desconfiar daqueles que não se parecem connosco, que não rezam como nós, que não leem as notícias nas mesmas fontes que nós. Temos de acabar com esta guerra “incivil” [uncivil war, à falta de melhor tradução] que coloca o vermelho contra o azul, o rural contra o urbano, o conservador contra o liberal.
Joe Biden admite que é o Presidente de uma nação com problemas profundas, divisões difíceis de reconciliar, e não hesita em apontar o dedo aos quatro anos que passaram. Perante o medo, diz Biden, a solução não é a guerra de trincheiras nem a oposição ao que é diferente (a referência religiosa evoca uma crítica direta ao travelban imposto por Donald Trump aos países de maioria islâmica). A referência à guerra entre azul e vermelho — ou seja, democratas e republicanos — mostra que Biden pretende aproximar os dois partidos e estender a mão a um Partido Republicano que se encontra, agora, também definir o seu futuro no pós-trumpismo.
Estamos a entrar no que pode bem ser o período mais duro e mais mortífero do vírus. Temos de pôr a política de lado e, finalmente, enfrentar esta pandemia como uma nação. (…) O mundo está a ver. Esta é a minha mensagem para aqueles fora das nossas fronteiras: a América foi testada e saímos do teste mais fortes. Vamos reparar as nossas alianças e relacionar-nos com o mundo outra vez, não para responder aos desafios de ontem, mas aos de hoje e aos de amanhã. Vamos liderar, não apenas pelo exemplo do nosso poder, mas pelo poder do nosso exemplo. Vamos ser um parceiro forte e confiável para a paz, o progresso e a segurança. Passámos por tanto nesta nação.
O Presidente dos EUA recebe, por vezes, o epíteto de “líder do mundo livre” — o país é maior economia do mundo, com o maior poderio militar e a maior influência global em aspetos que vão da segurança internacional à cultura. Não é comum que, quando fala para fora, esse “líder do mundo livre” se assuma como o líder de uma nação ferida, dividida e com um percurso com erros. Foi o que Biden fez esta quarta-feira, no curto pedaço do seu discurso inaugural que dedicou ao exterior. Assumindo que, no combate ao maior desafio global contemporâneo — a pandemia da Covid-19 —, o país foi “testado” e saiu mais forte, Biden pede ao mundo um voto de confiança na mudança ocorrida agora na Casa Branca. Os EUA vão restaurar as alianças que Trump implodiu (com a Europa, com a ONU, …) e voltar a contribuir para o desenvolvimento global — sem a pretensão de serem os melhores, mas com a humildade do “exemplo”.