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JIM COSTA
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Neto de açorianos, Jim Costa é um dos congressistas americanos com sangue português

CQ-Roll Call, Inc via Getty Imag

Neto de açorianos, Jim Costa é um dos congressistas americanos com sangue português

CQ-Roll Call, Inc via Getty Imag

"Tencionavam assassinar Nancy Pelosi e levar membros do Congresso como reféns". Jim Costa, congressista lusodescente que estava no Capitólio

O congressista lusodescendente Jim Costa relata ao Observador o que viveu na violenta invasão da semana passada. Jim Costa admite que alguns polícias do Capitólio tenham sido cúmplices e ataca Trump.

No Congresso dos Estados Unidos, há um conjunto de apelidos que podem soar familiares aos portugueses, como os de Jim Costa, Devin Nunes, Lori Loureiro Trahan ou David Valadao (que perdeu o til na travessia do Atlântico). Os censos norte-americanos dão conta de cerca de 1,5 milhões de portugueses ou lusodescendentes a viver nos Estados Unidos da América atualmente. Trata-se, sobretudo, de descendentes de açorianos que emigraram no início do século passado e se estabeleceram essencialmente em duas regiões: a Califórnia e a Nova Inglaterra. Jim Costa é um exemplo clássico. Na viragem do século XIX para o século XX, os seus avós, agricultores açorianos, mudaram-se para a Califórnia em busca do sucesso numa região agrícola daquele estado.

Um século depois, o neto, de 68 anos, é um dos 435 congressistas norte-americanos — e viveu na pele o recente ataque violento ao Capitólio do qual resultaram pelo menos cinco mortos. Numa entrevista à distância, Jim Costa, congressista democrata pelo estado da Califórnia, relata o que viveu e mostra-se confiante num impeachment, mesmo que apenas depois da tomada de posse de Biden, por considerar que Trump tem de ser responsabilizado e impedido de voltar a candidatar-se.

Ainda antes do início formal da entrevista, o congressista lusodescendente começou a contar a história daquela quarta-feira, enquanto pedia à assessora que nos enviasse as fotografias que ele próprio tirou com o telemóvel durante o inédito ataque, no dia em que o Congresso se preparava para validar os resultados da eleição de novembro. O dia começara como tantos outros: “Eu tenho uma bicicleta em Washington D.C. e uma aqui. Ando de bicicleta cerca de uma hora todos os dias. D.C. é uma cidade muito amiga das bicicletas. Costumo ir até ao rio, até ao Passeio Nacional, às vezes vou até ao Capitólio. Uso camisola, casaco, boné, máscara e as pessoas não sabem que eu sou congressista.”

“Sempre que passo pelo Capitólio, penso que o meu avô e a minha avó nunca imaginariam, há mais de 100 anos, em 1904, quando vieram para este país, que o neto deles viria a servir no Congresso dos Estados Unidos”, conta Jim Costa, sublinhando uma e outra vez o orgulho que tem nas suas raízes portuguesas. Quando viu alguns manifestantes perto do Capitólio, não estranhou: “Estamos sempre a ter manifestações em Washington, é uma coisa normal. Eu sabia que aquele era um dia importante, iríamos votar para certificar os resultados do Colégio Eleitoral, o que habitualmente é um mero formalismo.” Porém, não seria.

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Jim Costa é um dos congressistas da Califórnia na Câmara dos Representantes

CQ-Roll Call, Inc via Getty Imag

E nesse dia foi andar de bicicleta, antes da sessão?
Sim. Para tentar perceber como estavam as coisas. Por essa altura, estavam lá uns 700 a 900 manifestantes, perto do Capitólio.

O Presidente Trump já tinha feito o discurso?
Não, ainda não tinha falado. Isto foi por volta das 11h e ele discursou às pessoas por volta do meio-dia. A maioria deles estavam por lá, perto da Casa Branca, na zona a que chamamos a Elipse. Estavam lá umas 1.500 pessoas e no Capitólio estavam umas 700 pessoas. Quando lá passei, consegui ouvir uma das pessoas que lá estavam a falar com aqueles que tinham as bandeiras — bandeiras de Trump, bandeiras americanas e, lamentavelmente, algumas bandeiras da Confederação —, a dizer “hoje é o nosso dia, estamos à espera há semanas, viemos aqui, sei que muitos de vós têm borboletas no estômago, mas temos de garantir que protegemos o nosso Presidente e os impedimos de roubarem esta eleição”. Por essa altura, pensei que aquilo fosse simplesmente mais um discurso típico que se ouve quando se encontra um grupo de manifestantes que estão frustrados, excitados. Não podia imaginar, naquela altura, quando tirei as primeiras fotografias, aquilo que viria a acontecer três horas depois. Voltei a casa, mudei-me, vesti o fato, porque vivo a cinco quarteirões do Capitólio, e regressei. Às 13h, fui para a Câmara dos Representantes para começar os procedimentos.

E, por essa altura, já tinha ouvido o discurso de Trump?
Não, ainda não.

Então não fazia ideia de que o discurso podia ter incitado à violência que viria a ocorrer durante a tarde.
Só depois é que ouvi o discurso de Trump, o discurso do filho dele e o discurso de Rudy Giuliani, que disse que iríamos ter “um julgamento por protesto”, e depois o Mo Brooks, um dos membros do Congresso que conduziram estes esforços. Chamamos-lhe a grande mentira. A mentira que já se vem alongando há meses, de que, de algum modo, a eleição foi roubada, que o Presidente continua a espalhar, desde a eleição — mas mesmo antes da eleição ele disse que se ganhasse era uma eleição justa, mas se perdesse era porque a eleição tinha sido viciada. Ele dizia isso um mês antes de a eleição ter acontecido.

O congressista Jim Costa, durante uma volta de bicicleta pelo Capitólio na manhã de dia 6 de janeiro, quando encontrou os primeiros manifestantes

Fotografia cedida por Jim Costa

Em algum momento pensou num protesto daqueles, com uma violência daquelas?
Não. Quando se lê as redes sociais e se ouve alguns comentários, devíamos ter percebido melhor que havia um grupo que seguramente estava inclinado a invadir o Capitólio, que procuraria uma invasão violenta. Ver a câmara do Senado ser invadida por uma multidão…

Porque é que acha que isso aconteceu? Essa é uma das grandes perguntas: porque é isto pôde acontecer? Quem vê de fora pensa que o Capitólio devia ser mais seguro, devia haver mais segurança para evitar coisas destas.
Uma falha na segurança. Uma falha na segurança, que não antecipou que isto não seria apenas o habitual grupo de manifestantes. Já tivemos milhares, e até centenas de milhares, mas eles nunca tinham vindo a Washington D.C. com a ideia de que iriam ocupar o Capitólio e impedir um dos ramos do governo de exercer o seu papel ao abrigo da Constituição. Até à última quarta-feira, isso não era imaginável. Como resultado, houve uma falha na nossa segurança. Por isso, o chefe da polícia do Capitólio já apresentou a demissão, bem como os dois sargentos-de-armas responsáveis pela segurança no Senado e na Câmara dos Representantes, e haverá uma investigação cuidadosa para perceber onde é que foi a falha e porque é que ela aconteceu. Devo dizer que a polícia fez um trabalho incrível, no sentido de, por fim, retomarem o controlo do Capitólio e retirarem de lá aqueles tipos, com o apoio da Guarda Nacional.

Mas, ao início, não havia polícia suficiente.
Correto. E pensamos que alguns agentes poderão ter sido cúmplices. Esses foram colocados de licença. A esmagadora maioria deles foram corajosos. Perdemos a vida de um agente, e outro lamentavelmente faleceu no fim-de-semana. Seis vidas já foram perdidas como resultado deste ataque ao Capitólio da nossa nação, que foi um ato de traição.

Esses agentes que acredita que foram cúmplices com os atacantes estão suspensos, é isso?
Sim, foram suspensos. Não sabemos ainda até que ponto eles apoiaram ou não o ataque, mas há informações suficientes para os suspender.

"Quando se lê as redes sociais e se ouve alguns comentários, devíamos ter percebido melhor que havia um grupo que seguramente estava inclinado a invadir o Capitólio, que procuraria uma invasão violenta."

Como por exemplo? Sabe-se que eram apoiantes de Trump?
Bom, não sabemos isso. Pode ser o caso. Um deles abriu uma das barreiras e permitiu que as pessoas entrassem; outro foi visto no Capitólio a tirar selfies com um dos manifestantes; outro pôs um boné MAGA [Make America Great Again], um daqueles bonés vermelhos muito famosos do Presidente.

Deixe-me voltar à pergunta que tinha pensado em fazer-lhe em primeiro lugar. O senhor estava na câmara do Congresso quando o ataque aconteceu — e a maioria das pessoas que viram as imagens na televisão não conseguem imaginar como é que as pessoas que lá estavam se sentiram. Pode descrever o momento em que percebeu que havia alguma coisa de errado a acontecer fora do Capitólio?
Os procedimentos começaram às 13h e eu estava no plenário da Câmara dos Representantes, com alguns dos meus colegas. Tentámos espalhar-nos, por causa da Covid-19, para manter o distanciamento social. De acordo com o procedimento formal, os estados são anunciados por ordem alfabética, por isso começámos com o Alasca e o Alabama. Não houve nenhuma disputa relativamente a esses votos e eles foram contados. O vice-presidente reconheceu-os e foram certificados — isto é um esforço de ambos os partidos. Depois, chegámos ao Arizona, e o senador Ted Cruz apresentou uma objeção aos resultados. Isso obriga a que ambas as câmaras regressem às suas salas, porque aquilo é uma sessão conjunta. É preciso interromper a sessão conjunta e debater durante um máximo de duas horas sobre se devemos ou não certificar aqueles votos do Colégio Eleitoral. No entanto, nós não temos qualquer capacidade, ao abrigo da Constituição, para substituir aqueles eleitores, que já foram certificados pelos estados. Mas isto faz parte da grande mentira: o Presidente convenceu os seus apoiantes de que conseguiam de algum modo reverter os resultados que os estados já tinham certificado, mesmo depois de ter movido mais de 60 processos judiciais por todo o país a tentar impedir esses eleitores, e muitos dos juízes que ele próprio nomeou disseram que não havia qualquer evidência de fraude. Ele perdeu todos os casos.

Republicanos afastaram-se de Trump e confirmaram a vitória de Biden depois de uma noite caótica

Deixe-me fazer um parênteses: o que acontece, então, se a sessão conjunta não certifica um estado?
Depois de a manifestação ter acabado, não foi o fim da história. Às 21h dessa noite, depois de eles terem retirado de lá os manifestantes, nós voltámos e retomámos a contagem dos votos. E estas pessoas, os membros do Congresso, que pensaríamos que, por aquela altura, tivessem percebido que o inimaginável tinha acontecido, que o Capitólio da nossa nação tinha sido invadido por um grupo de traidores, por uma multidão, ainda apresentaram objeções na contagem de Pensilvânia! Acabámos às 3h30 da manhã, e o vice-presidente, que apenas tem o papel de presidir, anunciou quais eram os resultados finais. Fê-lo às 3h30 da manhã.

Na verdade, estava a perguntar no abstrato. Disse que não têm capacidade para reverter o resultado. O que aconteceria se a sessão conjunta não certificasse algum dos estados? Sei que não aconteceu desta vez, mas qual era a expectativa dos manifestantes?
Que, de alguma maneira, conseguissem bloquear a certificação e, por conseguinte, os votos do Colégio Eleitoral não seriam certificados e o Presidente-eleito Biden não teria obtido os 270 votos que precisava de reunir para vencer — mas acabou com 306. Esse era o objetivo dele. E o Presidente também mentiu — a segunda parte da grande mentira — ao dizer que o vice-presidente Pence poderia decidir que votos estaduais seriam contados e quais não seriam. Ele não tem autoridade para o fazer!

E, antes da sessão, disse que iria seguir a Constituição.
Exato! Mas o Presidente tentou dizer aos apoiantes que Pence podia fazê-lo. Quando ele disse que não o podia fazer, os manifestantes não só quiseram assassinar a presidente [da Câmara dos Representantes] Nancy Pelosi, como começaram a gritar “enforquem o Pence, enforquem o Pence”. O Presidente boicotou-o de um modo dramático. É por isso que o Presidente tem responsabilidade direta. Estava a dizer: o [congressista] Mo Brooks, do Alabama, que ajudou a liderar estes esforços, também estava lá com o Presidente ao meio-dia e disse todo o tipo de comentários inflamados, que agitaram aquela multidão, aqueles 15 mil, que pensaram “vamos rumar ao Capitólio, vamos dar cabo deles”. Foram estes discursos que motivaram a multidão.

"Pela primeira vez em 16 anos [como congressista], retirei a máscara de baixo do assento e abri-a. Já conseguíamos cheirar o gás lacrimogéneo."

Fechemos o parênteses. Estava a contar a história de como viveu aquela noite. Ia começar o debate sobre o Arizona…
Nessa altura, a segurança entra na câmara e dizem-nos: “Os manifestantes entraram no Capitólio, temos tudo sob controlo, mantenham-se calmos e vamos retomar o debate rapidamente”. Cinco minutos depois, os seguranças apressam-se a ir ter com a presidente e com os líderes das duas bancadas. Eles ainda tentaram retomar o debate sobre o Arizona, mas os seguranças regressaram e disseram: “Os manifestantes chegaram à Rotunda [a zona central do edifício do Capitólio, a partir da qual é possível aceder às duas câmaras do Congresso], estão a percorrer os corredores e vamos evacuar o edifício”. Retiraram todos os membros do Congresso dali. Devido ao distanciamento social, eu estava num lugar na parte de cima, na galeria, a observar os procedimentos e a responder a e-mails. De repente, comecei a ouvir tiros e disparos de gás lacrimogéneo. Debaixo dos assentos, nas câmaras — tanto para os membros como para o público presente —, temos umas embalagens que contêm máscaras para o gás lacrimogéneo, para, no caso de a segurança ter de usar o gás, nós podermos colocar as máscaras e conseguirmos respirar. Pela primeira vez em 16 anos [como congressista], retirei a máscara de baixo do assento e abri-a. Já conseguíamos cheirar o gás lacrimogéneo. Por essa altura, já tinham conseguido tirar quem estava no piso da Câmara dos Represenantes, mas os manifestantes já tinham subido até ao terceiro andar e estavam a bater violentamente nas portas. Há várias portas que permitem entrar na galeria e só tínhamos um punhado de agentes da polícia e seguranças connosco. Eles trancaram todas as portas, mas depois tentaram levar-nos dali para fora. Já lá esteve?

Nunca estive.
As câmaras são enormes. São quase do tamanho de um campo de futebol e abrangem três andares. Eles queriam levar-nos para um sítio onde existem escadas que nos permitem descer — obviamente, não nos queriam em elevadores —, mas por esta altura os manifestantes estavam a bater fortemente nas portas e, lá em baixo na câmara, tinham posto secretárias a barricar as portas. Eles já tinham partido as janelas… Tivemos de rastejar pelo chão e demorámos uns 15 ou 20 minutos a chegar ao outro lado da câmara, onde queriam que usássemos uns lanços de escadas para descer cinco andares e chegar aos túneis, para chegarmos em segurança às salas dos comités, onde já estava a maioria dos membros do Congresso, republicanos e democratas. Mas, à medida que fomos chegando ao outro lado da câmara, por causa da multidão furiosa, sentámo-nos no chão com as nossas máscaras durante um período que nos pareceu muito longo. Éramos uns 40. Pode ver as fotografias que tirei nesse momento e consegue ver a polícia com as armas. Quando finalmente saímos da câmara e chegámos às escadas, tirei outra fotografia em que se vê que eles tinham detido uns seis manifestantes, que estavam deitados de cara para baixo no chão, com as mãos atadas atrás das costas.

Fotografias tiradas por Jim Costa antes, durante e depois da invasão do Capitólio

Fotografia cedida por Jim Costa

E foi levado para um lugar seguro? Ou ficou sempre na zona da Câmara dos Representantes?
Depois de uns 40 ou 45 minutos, foi finalmente possível garantir a segurança do lugar onde estávamos e conseguimos alcançar as escadas, descer os cinco andares até ao túnel, e depois caminhámos até à sala de comité onde já estavam mais de 300 membros e funcionários. Esperámos ali cerca de duas horas, duas horas e meia, enquanto a segurança expulsava os manifestantes do edifício e limpava tudo, para que pudéssemos retomar o processo de certificação. Depois de cerca de duas horas na sala de comité, já era suficientemente seguro regressar ao meu gabinete. Voltei para lá e comecei a ver televisão. Foi aquilo que me impactou verdadeiramente. Lá dentro, ouvia-os a bater nas portas, ouvia os barulhos, ouvia os tiros, ouvia os vidros a partir…

Em algum momento temeu pela vida?
Bom, começa-se sempre a pensar… Meu Deus. À exceção de 1812, quando os britânicos ocuparam a cidade de Washington e incendiaram o Capitólio e a Casa Branca, nunca tinha havido uma tentativa hostil de ocupar o Capitólio da nossa nação — muito menos por um grupo de cidadãos americanos. Este ataque violento foi um ato de traição. Vamos ser claros com isto. Não foi um protesto pacífico. Este ataque violento teve a intenção de impedir um dos nossos três ramos do governo de cumprir o seu dever constitucional de certificar os resultados eleitorais, seguindo a orientação de um Presidente em cujas mentiras eles acreditaram…

Quando voltou ao seu gabinete, começou a ver televisão e foi nesse momento que viu o discurso que o Presidente Trump tinha feito?
Sim. Vi-o e percebi que a natureza deste ataque nunca seria um grupo de bandidos a ocupar o Senado dos EUA. Nunca teríamos um grupo de bandidos a saquear o gabinete da presidente da Câmara dos Representantes e a profaná-lo, bem como outros gabinetes no Capitólio. A intenção deles era impedir o Congresso de cumprir o seu dever de certificar os resultados eleitorais — e, pensamos nós, alguns deles tencionavam assassinar a presidente e levar membros do Congresso como reféns. Estão a surgir informações, por parte dos serviços de informações, de que há comentários a circular do género “temos de voltar a Washington para acabar o que começámos na quarta-feira passada, matar democratas e cercar a Casa Branca, para manter o Presidente Trump lá”.

Fotogaleria. As imagens da invasão do Capitólio por manifestantes pró-Trump

Gostava de olhar para a situação do país a partir do que aconteceu na semana passada. Apesar de ter perdido a eleição de novembro, a verdade é que Donald Trump obteve quase 75 milhões de votos, o que significa que, na verdade, representa uma parte significativa do país. Isto vai ser um dos principais desafios do Presidente Biden? Como é que se vai dirigir a estes 75 milhões de pessoas?
Claramente, e vai levar tempo. O Presidente-eleito Biden vai encontrar um país que hoje está muito dividido. Será um verdadeiro desafio tentar unir o país. Parte do problema é que este Presidente, ao longo de quatro anos, como mente todos os dias, foi capaz de distorcer os factos. As redes sociais têm um papel importante nisso, e alguns nos meios de comunicação social ajudaram-no a perpetrar as mentiras dele, a continuá-las. Ele foi banido do Twitter e do Facebook…

O que pensa disso? Dessas decisões do Twitter…
Penso que foi responsável. Nós garantimos a liberdade de expressão no nosso país, como fazem outras democracias por todo o mundo, como Portugal e muitas outras. Mas não é permitido, no nosso país, chegar a um teatro cheio de gente, ou a um recinto desportivo, e gritar “fogo” ou outra emergência falsa. A nossa liberdade de expressão não é garantida nesse momento.

E foi isso que o Presidente Trump fez?
Sim. Ele causou este ataque violento no Capitólio do nosso país, que é um símbolo da nossa democracia e da democracia em todo o mundo. Agora, foi ao Texas dizer que não aceita qualquer responsabilidade.

"Penso que o nosso país está a precisar de colocar este caos para trás das costas. De, depois dos últimos quatro anos, por causa da natureza deste narcisista psicopata e maligno que tem o temperamento de uma criança de 12 anos, voltar a uma Presidência normal."

E como é que o Presidente Biden poderá dirigir-se a estes milhões de pessoas? Especialmente aos mais fiéis, como aqueles que ocuparam o Capitólio?
Penso que, para muitos, que se tornaram seguidores desta seita — chamo-lhe uma seita —, o QAnon e outros grupos, será muito difícil que Biden os consiga cativar. Mas penso que há uma grande percentagem de republicanos, não lhe sei dizer o número, que vão, penso eu, gostar do facto de Biden se dirigir a eles, lhes estender a mão e a amizade e, como Presidentes anteriores, antes de Trump, tentar unir o país. Isso mostra boa-fé. Penso que o nosso país está a precisar de colocar este caos para trás das costas. De, depois dos últimos quatro anos, por causa da natureza deste narcisista psicopata e maligno que tem o temperamento de uma criança de 12 anos, voltar a uma Presidência normal.

Falava de alguns republicanos que se estão a distanciar do Presidente Trump. O vice-presidente Pence disse que iria estar presente na tomada de posse de Joe Biden. Este é mais um sinal de distância entre Trump e Pence? Trump já disse que não iria.
Sim, penso que Pence tem estado muito aborrecido e furioso com o Presidente. Ele foi tão leal quanto poderia ter sido. Eu conheço o Mike Pence. No artigo que escrevi, explico que, quando acabámos a contagem, depois do Wyoming — e o vice-presidente Pence anunciou “o Presidente-eleito Biden e a vice-presidente-eleita Harris têm 306 votos no Colégio Eleitoral e o Presidente Trump tem 232 votos, a certificação foi registada e o próximo Presidente dos EUA é Joe Biden” —, eu encontrei-me com o Mike Pence. O gabinete do Mike Pence, quando ele estava na Câmara dos Representantes, era ao lado do meu, e nós viajámos os dois para o Médio Oriente várias vezes em 2006 e em 2010, por isso conhecemo-nos bem ao longo dos anos. Virei-me para ele e disse-lhe: “Senhor vice-presidente, eu sei que tem estado sob uma grande pressão do Presidente e de outros, mas quero agradecer-lhe por ter cumprido o seu dever”. Ele olhou para mim e disse: “Jim, vindo de ti isso é um elogio. Agradeço”. E eu respondi-lhe: “Mike, é o nosso país. É a Constituição”. Ele sorriu e fez-me sinal com o polegar erguido.

E acredita que ele vai invocar a 25.ª emenda? [Nota: a entrevista aconteceu horas antes de Mike Pence confirmar formalmente, em carta enviada a Nancy Pelosi, aquilo que já se afigurava como mais que provável: não irá fazê-lo.]
Não, não acredito. Talvez ele gostasse de o fazer, mas penso que não. Em primeiro lugar, ele teria de ter uma maioria do governo — e o governo está em desordem. Três membros do governo já se demitiram na última semana. Foram-se embora e eram aqueles que mais provavelmente apoiariam a 25.ª emenda. A secretária dos Transportes, Elaine Chao, Betsy DeVos, da Educação. Depois, há o Mike Pompeo, secretário de Estado, que está a tentar posicionar-se para uma candidatura a Presidente dentro de quatro anos, há o secretário da Habitação e do Desenvolvimento Urbano, Ben Carson… Estas pessoas não vão apoiar a 25.ª emenda.

Portanto, isto significa que a Câmara dos Representantes vai votar o impeachment esta quarta-feira [Nota: já depois da entrevista, a Câmara confirmou a acusação contra Trump]. Os prazos — e vimo-lo o ano passado — dizem-nos que o Presidente não vai ser destituído nos próximos oito dias. Ou seja, não teria efeito prático. Qual é o objetivo de “destituir” um ex-presidente?
Dois pontos. Primeiro, ele precisa de ser responsabilizado, e nenhum Presidente americano tinha sido sujeito a impeachment duas vezes. Segundo, podemos determinar, quando enviamos os artigos de impeachment (e penso que teremos votos suficientes, penso que haverá votos republicanos também) que, quando o Senado os receber — e o senador Mitch McConnell, que é o líder da maioria republicana no Senado, disse que não o levaria ao Senado antes do dia 19, e Biden toma posse no dia 20, e isso significa que Chuck Schumer se vai tornar o líder da maioria e Kamala Harris vai presidir ao Senado e o impeachment é só uma acusação; o Senado é que determina se há uma condenação ou não —, pode incluir um impedimento de ele voltar a candidatar-se a cargos públicos federais novamente. Cada vez mais senadores republicanos, nos últimos quatro dias, ao verem os vídeos do que aconteceu naquela quarta-feira à noite, estão a ficar cada vez mais furiosos, quando veem a câmara do Senado ocupada por esta multidão… Muito poucas pessoas têm autorização para entrar no Senado. É preciso ser senador, membro do Congresso ou um funcionário com privilégios para ali estar. É o Santo Graal. Ao verem isto acontecer, muitos republicanos estão muito frustrados com Trump e querem que ele se vá embora. Mas penso que há alguma motivação. Para os republicanos, uma das formas que eles têm para lidar com esta ocupação hostil do partido que o Presidente Trump conseguiu, com sucesso, durante quatro anos — ele nunca foi republicano antes — é impedi-lo de voltar a candidatar-se. Há muitos senadores republicanos que gostavam de se candidatar dentro de quatro anos.

Chegou a hora de os republicanos abandonarem Trump? Para uns é tarde demais, mas ainda há quem lhe jure lealdade

Porque é que este distanciamento entre os republicanos e Trump não aconteceu antes, durante o mandato? Este acontecimento foi o momento definidor?
Esta poderá ter sido a gota de água. Muitos de nós — todos, exceto os verdadeiros fiéis — sabemos que Trump não se preocupa com o país, preocupa-se com ele próprio e com a sua fortuna. Está a tentar aproveitar cada oportunidade para pôr dinheiro no seu próprio bolso enquanto é Presidente. Abusou terrivelmente da Presidência, em termos de tradições e costumes. Mas, além disso, causou danos às nossas alianças na Europa.

Acredita que o fim do mandato de Trump é o fim do trumpismo? Ou ele vai arranjar outras maneiras de se manter na política norte-americana?
Ele vai seguramente tentar encontrar maneiras de se manter ativo. Por causa desta mentira que ele tem perpetrado ao longo de dois meses e meio, ele conseguiu angariar, sob o falso pretexto de que era para a sua defesa jurídica, mais de 200 milhões de dólares. Isso dá-lhe muito dinheiro para usar para os seus próprios objetivos, políticos e outros. Ele não gastou 200 milhões de dólares em processos em tribunal. Ele vai tentar manter-se ativo. Será interessante perceber como é que ele o vai conseguir fazer, quando já não tem a atenção dos meios de comunicação social. Se ele continuar banido do Twitter e do Facebook, como é que ele será capaz de continuar este narcisismo psicopata que ele precisa de alimentar constantemente. Tudo é à volta dele. A grande especulação é quanto tempo é que este trumpismo continuará. Se será um ano, dois anos, ou se se dissipa mais rápido. Há algumas pessoas, claramente pessoas como o senador Ted Cruz ou o senador [Josh] Hawley, que assinaram a petição para contestar os resultados do Arizona e da Pensilvânia, porque pensam que conseguirão herdar os apoiantes de Trump quando eles próprios concorrerem à Presidência daqui a quatro anos. Eles sabem que não conseguiam reverter a eleição, eles sabem que o Colégio Eleitoral seria corretamente certificado. Sabiam tudo isso, mas estavam a tentar disputar o espaço de Trump, na esperança de conseguirem atrair esse apoio ao longo dos próximos anos.

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