Há pelo menos 25 milhões de razões para que os Estados Unidos não entrem em guerra com a Coreia do Norte. Mesmo sem fazer uso do seu arsenal nuclear, a Coreia do Norte poderia provocar um massacre na Coreia do Sul. Da zona desmilitarizada à capital, Seul, são 40 quilómetros, um pouco mais da distância que vai de Lisboa a Sintra. Um míssil com as coordenadas de Seul demoraria entre “zero e seis minutos” a chegar, segundo a agência Associated Press, que falou com vários especialistas.

Em cerca de uma hora, o Norte podia lançar 4.000 peças de artilharia. Este “primeiro round” mataria cerca 2.800 pessoas, pouco menos do que as que morreram no ataque às Torres Gémeas, a 11 de setembro de 2001. Há 21.500 peças de artilharia pesada prontas a serem disparadas e o site de informação The Vox estima que 100 mil pessoas morreriam apenas nos primeiros dois dias de conflito. O sul estaria completamente à mercê dos bombardeamentos do norte, sem muito para onde fugir.

Foi por isso que o insuspeito Steve Bannon, até há duas semanas um dos mais próximos conselheiros de Donald Trump, entretanto afastado, disse, numa entrevista polémica que a hipótese militar não podia estar em cima da mesa: “Até alguém me explicar aquela parte da equação que mostra que 10 milhões de pessoas não morreriam em Seul nos primeiros trinta minutos de guerra eu não sei do que estão a falar quando falam de opção militar. Não existe nenhuma opção militar”.

Depois, há a parte nuclear. Nem os analistas que produzem gráficos gerados por ondas térmicas vindas do subsolo onde se enriquece o urânio e o plutónio na Coreia do Norte sabem dizer exatamente quanto material nuclear o país já armazenou. Mas há uma coisa que já toda a gente sabe, e essa informação chega para colocar os potenciais inimigos do regime totalitário de Kim Jong-un num alvoroço: a Coreia do Norte tem as instalações e as competências necessárias para produzir com esse material radioativo bombas nucleares capazes de causar severos estragos aos seus vizinhos — e também aos Estados Unidos, com um bocadinho de combustível extra. “Vamos lá enfrentar a realidade”, pede o The New York Times, “a Coreia do Norte pode atingir território norte-americano com uma bomba nuclear”.

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E se há um dia esta informação poderia parecer ainda uma coisa de um futuro mais ou menos distante, o que aconteceu esta madrugada de domingo torna-a assustadoramente real. Pyongyang garante que o teste nuclear foi feito com uma bomba de hidrogénio com tamanho suficiente para ser colocada num míssil balístico internacional, que pode chegar aos Estados Unidos.

Coreia do Norte anuncia ter uma bomba nuclear “mais avançada”

Esta era, aliás, uma informação já fornecida ao diário norte-americano Washington Post por membros dos serviços de informações norte-americanos: de que os norte-coreanos já foram capazes de reduzir de tal forma o tamanho das suas ogivas nucleares que em breve elas poderão caber dentro de um míssil de grande alcance, como o que foi testado no passado dia 4 de julho.

Segundo as análises dos peritos, a Coreia do Norte disparou nesse dia um míssil balístico intercontinental com capacidade para atingir o Alasca ou o Havai, o famoso Hwasong-12. O míssil esteve em ascensão durante cerca de 45 minutos, o que equivale a uma distância percorrida de 3.700 quilómetros, antes de se despenhar perto da Zona Económica Exclusiva japonesa, ao largo da ilha de Hokkaido. Se tivesse sido lançado numa trajetória normal, o cenário seria muito diferente. E agora, a ser mesmo verdade o que diz Kim Jong-un, dentro desse míssil pode ir uma bomba de hidrogénio.

“Se tivesse sido lançado para atingir um alvo, o míssil poderia ter percorrido mais de 10.000 quilómetros”, escreveu David Wright, diretor do Programa de Segurança Global no grupo União de Cientistas Preocupados, que se uniram contra Donald Trump em defesa da importância da investigação científica que o acusam de ter descurado durante a campanha. “Nesse caso, e sem contar com a rotação da Terra que aumenta a velocidade dos mísseis, Los Angeles, Denver ou Chicago estariam bem dentro do seu alcance e Nova Iorque também, apenas um pouco mais à tangente”, acrescentou o especialista.

Por isso mesmo, os serviços de informações do Departamento de Defesa norte-americano cortaram dois anos à estimativa do tempo que a Coreia do Norte ainda precisaria até conseguir uma bomba nuclear perfeitamente funcional. A cronologia aponta agora para o próximo ano: 2018. Ainda não se sabe se esta data será revista depois do teste realizado este domingo, que foi registado pelos serviços meteorológicos com um impacto de 6.3 na escala de Richter, que foi sentido a 400 quilómetros da zona de impacto, no nordeste da China.

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“Fogo e fúria” e muitas, muitas mortes

O lançamento deste míssil intercontinental, a 4 de julho, marcou o início de um capítulo mais agressivo na história dos duelos verbais entre Donald Trump e Kim Jong-un. Trump prometeu responder com “fogo e fúria” em proporções que o mundo “nunca antes testemunhou” e Kim chamou aos americanos “uns sacanas” e ao seu presidente alguém “desprovido de raciocínio”.

Durante o “reinado” de Kim, que ainda só tem quatro anos, Pyongyang já testou 66 mísseis, mais do que duas vezes o número de testes realizado durante os dezassete anos que o seu pai, Kim Jong Il, passou à frente dos destinos nucleares do país. Só em 2017, os lançamentos já ultrapassaram as duas dezenas. Nos últimos dois anos, os Estados Unidos e a Coreia do Sul têm andado a treinar para a eventualidade de terem que lançar um ataque dissuasor. O plano de guerra, OPLAN 5015, inclui instruções detalhadas sobre a localização das centrais nucleares norte-coreanas; da maioria dos armazéns de armamento; mas também fala de “decapitações” — o que, neste caso, se refere aos planos para acabar de vez com a liderança da Coreia do Norte e todos possíveis tentáculos dinásticos próximos.

Uma das hipóteses equacionadas pelos americanos é o lançamento de vários ataques a alvos específicos que garantissem que a capacidade de retaliação da Coreia do Norte ficaria severamente afetada. Mas se os Estados Unidos falhassem — e é praticamente impossível atingir todos os armazéns de armas, todas as centrais nucleares e destruir todos os aviões e todos os tanques — então cerca de 25 milhões de pessoas na área metropolitana de Seul, capital da Coreia do Sul, e os mais de 38 milhões de pessoas em Tóquio, capital do Japão, estariam em sério risco de sofrer ataques. Isto fora as dezenas de milhares de membros do exército norte-americano presentes em bases ao longo do nordeste da Ásia e todas as outras pessoas fora das cidades, que ficariam também vulneráveis a ataques e aos efeitos da radiação nuclear. Nem que só sobrasse uma única bomba, os norte-coreanos com certeza que a usariam contra alguém.

Se fosse uma como aquela que a Coreia do Norte lançou em setembro de 2016, com um poder duas vezes superior à que os Estados Unidos lançaram sobre Hiroshima em 1945, seria uma catástrofe sem paralelo. Mas há outras formas de provocar morte e destruição. A lista de doenças fulminantes que a Coreia do Norte pode enviar, numa pequena cápsula presa num dos seus mais básicos mísseis, para território sul-coreano é arrepiante. Segundo estimativas do centro de análise à ameaça nuclear Nuclear Threat Initiative, que se baseia em estudos de várias entidades sul-coreanas, a Coreia do Norte pode ter entre 2.500 e 5.000 metros cúbicos de agentes químicos e biológicos, incluindo gás sarin e antraz, mas também cólera, febre hemorrágica, febre tifoide, febre amarela, malária, entre centenas de outras doenças.

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Questionado sobre as perspetivas de vitória dos Estados Unidos numa potencial guerra com a Coreia do Norte, o Secretário da Defesa norte-americano, James Mattis, descreveu um cenário bastante cinzento. “Eu penso que venceríamos, mas a um custo de sofrimento humano muito maior do que alguma coisa que tenhamos visto desde 1953. Envolveria necessariamente o bombardeamento de pelo menos uma capital aliada, que é uma das mais densamente povoadas do mundo”, disse Mattis, referindo-se a Seul e à data da assinatura do cessar-fogo entre as duas Coreias, acrescentando que seria uma guerra “séria e catastrófica, especialmente para as pessoas inocentes” que vivem nos países aliados dos Estados Unidos e que, “provavelmente”, a guerra envolveria o Japão.

Sam Gardiner, um antigo comandante da Força Aérea norte-americana que se dedica agora a conduzir simulações de guerra no National War College, estimou que o uso de gás sarin poderia matar um milhão de pessoas. Mas, depois de testemunhar o horror causado recentemente na Síria, foi obrigado a rever os números: talvez morressem afinal três ou quatro vezes esse número. O assassinato do meio-irmão de Kim, Kim Jong Nam, na Malásia, com um gás neurotóxico chamado VX, 100 vezes mais poderoso do que o gás sarin, foi uma amostra do que está na posse do regime de Pyongyang. Ambos os químicos são altamente tóxicos e provocam a paralisação da maioria dos músculos do corpo humano, incluindo do diafragma, e destroem as ligações nervosas do corpo ao cérebro. A morte não demora mais de 10 minutos. O próprio Kim Jong Nam morreu apenas com um breve toque na cara por parte de duas mulheres que se cruzaram com ele durante meros segundos.

A sombra de uma guerra inacabada

Durante a Guerra da Coreia, que durou de 1950 a 1953, cerca de 2.7 milhões de coreanos morreram, um número ao qual temos que somar ainda 36 mil norte-americanos e 800 mil chineses. Os Estados Unidos enviaram 1.7 milhões de homens para o terreno, as Nações Unidas cerca de 40 mil e a Commonwealth britânica mais 20 mil. Foram três anos de luta intensa, mas uma segunda guerra da Coreia podia ser muito pior. Uma das razões é óbvia: o poderio militar da Coreia do Norte, meio século depois, é incomparavelmente maior.

Se estivermos em Pyongyang, para onde quer que estejamos virados estaremos na direção de arsenais bélicos esmagadores que podem disparar para vários alvos. A Coreia do Sul e o seu maior aliado, os Estados Unidos, a sul, e depois logo ali ao lado a China, o Japão e, não tão longe assim, a Rússia.

A artilharia norte-coreana está escondida, acreditam os vizinhos do sul, em centenas de túneis que podem mesmo chegar a penetrar, debaixo do solo, território sul-coreano. Um outro lado ajuda-nos a entender os verdadeiros objetivos da Coreia do Norte: cerca de 80% de todo o seu arsenal de guerra está localizado a menos de 100 quilómetros da DZM, a zona desmilitarizada que separa a Coreia do Norte da Coreia do Sul.

A grande batalha de Pyongyang sempre foi unir ambos os países sob o desígnio dos escolhidos — a dinastia da qual Kim é apenas um dos representantes. “A mitologia racista de que a raça mais pura do mundo nasceu no Monte Paektu, e que daí advém o direito quase divino a governar, impregna toda a propaganda norte-coreana e diz-nos algumas coisas sobre a quase impossibilidade de que Kim aceite, apenas com o coordenado esforço diplomático de algumas suas nações vizinhas, ceder o seu lugar em prol de um governo partilhado com Seul — isto para não falar de abandonar o seu programa nuclear, que vê como a única forma de garantir a continuidade do regime”, diz ao Observador Jeffrey Lewis, diretor do Instituto de Estudos Internacionais de Middlebury.

A segurança dos sul-coreanos é o maior trunfo dos norte-coreanos. Parece um paradoxo, mas não é. É do conhecimento dos países da NATO que a Coreia do Norte tem milhares de mísseis apontados à capital do sul, que fica a 40 quilómetros da DZM. Um estudo do Nautilus Institute diz que o Norte poderia disparar 4.000 rockets por hora, matando perto de 65 mil pessoas nas primeiras três horas do conflito.

Os quatro cenários: “Imagens horríveis 24 horas por dia”

“Podemos teorizar, mas não há boas opções militares”, diz ao Observador Bruce Bennett, investigador na área da Defesa e especialista na Coreia do Norte no Instituto RAND. Apesar de a grande maioria dos especialistas em defesa e armamento considerarem uma potencial guerra com a Coreia do Norte uma “loucura”, Bennett diz que “haverá sempre alguém preparado para atirar com aquela frase do General Buck Turgidson no filme “Dr. Strangelove”, quando ele admite que milhares de vidas serão provavelmente perdidas: “Bom, ninguém disse que não íamos desalinhar os cabelos”.

Segundo Donald Trump, “todas as opções estão em cima da mesa” e a que é citada com mais frequência é o chamado ataque preventivo ou dissuasor: um ataque em força que destruísse o arsenal de bombas nucleares da Coreia do Norte e boa parte do seu poder militar e eliminasse as principais figuras do regime.

Apesar de a Coreia do Norte ter mais de um milhão de homens e mulheres no seu exército, capacidade nuclear e armas biológicas, o alcance dos seus mísseis, pelo menos por agora, continua, em grande parte, a ser regional. Um ataque súbito antes que as capacidades nucleares de Kim se fortaleçam é uma opção que pode aliciar os Estados Unidos. Deixar Kim desenvolver o seu programa até à perfeição e depois entrar em guerra não é uma opção muito inteligente. Mas poderia ser moralmente indefensável lançar o primeiro ataque sem provocação.

“Durante o Vietname não vivíamos nestes tempos de consumo sôfrego de informação e os protestos tomaram conta das principais cidades norte-americanas. Hoje seríamos invadidos por imagens horríveis 24 horas por dia e em todas as redes socais. O custo pessoal de um primeiro ataque seria muito difícil de suportar para qualquer governo: principalmente contra um plano de fundo onde se perfilam os desastres na Síria, no Iraque, no Afeganistão”, acrescenta Bruce Bennet.

Até Richard Nixon escolheu, em 1969 — muito antes de Pyongyang ter mísseis, quanto mais armas nucleares –, não retaliar quando dois aviões norte-coreanos atingiram um avião-espião americano, matando as 31 pessoas a bordo.

“Não há escudo anti-míssil suficientemente forte para defender Seul da chuva que o Norte lançaria se provocado. O Norte já ameaçou tornar toda a área metropolitana num mar de fogo e, entre os 25 milhões de pessoas que vivem na capital sul-coreana, estão cerca de 100 mil americanos. É uma questão de sabermos se o ‘América em primeiro lugar’ do Presidente Trump chega ao ponto de pôr em primeiro lugar a segurança interna dos Estados Unidos, independentemente de quantos japoneses, sul-coreanos ou imigrantes e militares americanos possam sucumbir”, diz Bennett.

O problema com esta opção é que não pode ser feita nem cirúrgica, nem rapidamente, apesar de ser precisamente esse o objetivo. A Coreia do Norte é um país montanhoso, que canaliza milhões e milhões de dólares para a Defesa. Muitos dos seus tanques, aviões e lança-rockets estão guardados dentro de espaços ocos, protegidos depois com betão, ou dentro de bunkers subterrâneos.

É um dos países mais isolados do mundo. Como é que a Coreia do Norte se tornou uma potência nuclear?

A maioria dos analistas considera impossível atacar a Coreia do Norte sem que isso se torne, muito rapidamente, numa guerra aberta. “Provavelmente demoraria muitos dias, semanas, e envolveria centenas de ataques com mísseis a partir do mar do Japão, onde os Estados Unidos têm a sua força naval. Durante este tempo, o Norte estaria a ripostar contra o sul com tudo o que tem. Não é um ataque com alvos, é uma guerra”, disse ao Sidney Morning Herald Robert Kelly, um especialista em assuntos da Coreia do Norte que vive na Coreia do Sul com a família (que toda a gente conhece depois de terem aparecido na sala onde o pai dava uma entrevista à BBC).

Cirurgia? Não. “Fantasia”

Jeffrey Lewis, especialista em controlo de armamento no Middlebury Institute of International Studies, disse ao Observador que esta opção “é uma fantasia” e chama a História em seu auxílio. “Olhemos para o Iraque em 1991 e 2003. Os Estados Unidos não foram capazes de encontrar uma única arma antes do lançamento do ataque.” Para Lewis, “a ideia do ataque cirúrgico funciona muito bem com a opinião pública, mas na realidade é impossível” no caso da Coreia do Norte. Lewis acrescenta: “Os exercícios militares que temos observado na Coreia do Norte mostram que a intenção de Pyongyang é usar grandes quantidades de armas nucleares contra as forças norte-americanas no Japão e na Coreia do Sul para evitar uma invasão”. Segundo o analista, “alguns norte-coreanos que conseguiram fugir do país dizem que a esperança do regime é conseguir causar um número o maior possível de mortos para dissuadir os aliados de tentarem tomar o país”.

A segunda opção presente no plano dos Estados Unidos é “pressionar”, ou, como lhe chama a revista The Atlantic, “apertar os parafusos”. Neste caso, um ataque militar “convencional” cuja ideia é mostrar à Coreia do Norte a capacidade militar dos aliados, destruindo alguma da capacidade dos norte-coreanos, mas suficientemente pequeno para não ser entendido como uma declaração de guerra. Kim ficaria no poder, mas consciente de que teria que abandonar o seu plano para apetrechar mísseis de longo alcance com material nuclear.

Um ataque inicial dos norte-americanos poderia atingir alvos importantes, como a central nuclear de Punggye-ri ou a de Yongbyon, que produz plutónio usado nas bombas nucleares. Atacar qualquer um destes sítios enviaria de certo uma mensagem bem clara, e talvez até viesse a impedir durante um tempo o desenvolvimento nuclear da Coreia do Norte (apesar de as reservas de material radioativo estarem espalhadas por vários locais no país), mas os bombardeamentos em si seriam arriscados.

A quantidade de poluição radioativa que poderia resultar de um ataque desses faria Fukushima parecer um desastre fácil de limpar. Então, a outra opção seria destruir os mísseis e os seus propulsores, mas esses estão ainda mais espalhados e são em número incomparavelmente maior.

“O problema com este ‘rodar da faca’ é que, depois de o tiroteio começar, é impossível prever onde irá levar. Lá por os Estados Unidos dizerem que o ataque é apenas localizado, como um aviso, não quer dizer que seja assim lido pela Coreia do Norte. Qualquer ataque pode ser o início de um ataque/contra-ataque. E, se sobrassem algumas bombas nucleares, seriam logo disparadas”, argumenta Lewis.

Nesta equação entra também a ideologia e a forma como o regime de Kim funciona — e todo um sistema político-militar norte-americano que, mesmo com Trump na liderança, é muito mais equilibrado. Trump tem muito mais barreiras a ultrapassar para conseguir lançar um ataque, e é obrigado a levar em conta a opinião pública própria dos regimes democráticos. “Pyongyang, como qualquer outro regime autoritário, vive de exagerar as ameaças externas, ganha apoio interno quando há crises. Donald Trump, por outro lado, tem militares responsáveis à frente dos principais ramos do exército, além de uma oposição saudável de um grande número de congressistas. Kim está desimpedido. Não vai haver protestos nas ruas”, diz ainda o analista.

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Eliminar Kim ou deixar tudo como está?

A terceira opção é a “decapitação”. Segundo documentos do plano para uma eventual guerra que chegaram às páginas da imprensa sul-coreana, até já há treinos nesse sentido. Em que sentido? O de “remover a estrutura militar norte-coreana”, nas palavras de Han Min-koo, ministro da Defesa sul-coreano. No início de 2017, o ministro disse que estava a ser treinada uma “brigada especial” para o efeito e, em março, um exercício militar conduzido em conjunto com os Estados Unidos serviu precisamente para testar esta possibilidade.

O jornal sul-coreano JoongAng Daily disse mesmo que uma equipa de SEALS tinha sido enviada para o território para treinar para uma eventual missão de “neutralização da liderança” de Pyongyang. Os norte-coreanos, por seu lado, disseram que tinham conseguido deter uma tentativa de assassinato do seu líder por parte da CIA. Os Estados Unidos negam que algum dia tenham tentado levar a cabo esta “decapitação”.

Um plano deste tipo teria quase de certeza que contar com apoio interno. Vendo o tratamento que Kim oferece a quem se lhe opõe, onde iriam os Estados Unidos encontrar alguém suficientemente próximo do seu núcleo protegido com arame farpado, rede elétrica e espingardas acionadas por sensor de calor, capaz de levar a cabo a tal “neutralização”? Um bombardeamento durante, por exemplo, um evento público, poderia matar Kim e não os seus homens mais próximos, que ainda poderiam autorizar uma retaliação.

Ainda assim, Jeffrey Lewis acredita que será este o plano principal dos Estados Unidos e dos seus aliados. “Não, a ideia dos sul-coreanos e dos norte-americanos não é ir bombardear nada, é ir atrás de Kim e do seu círculo e liquidar a liderança antes de ele dar a ordem para atacar”. Só que, mais uma vez, a História põe o pé no travão das intenções. “Como vimos em 2003, os Estados Unidos tentaram encontrar Saddam Hussein e, pasme-se, não foi assim tão mais fácil do que tentar encontrar as suas armas de destruição em massa”.

E, por fim, há a possibilidade de aceitar o estado das coisas. A Coreia do Norte vai continuar a desenvolver armas, vai continuar a lançar mísseis que não caem sobre áreas habitadas (até agora só atingiram o mar ou o próprio solo norte-coreano) e vai continuar a empregar a sua retórica inflamada contra os inimigos no Ocidente. Os Estados Unidos continuam os esforços diplomáticos, porventura até robustecidos, e o mundo espera que as ambições nucleares deste país — e de todos os outros que também possuem arsenais nucleares — se dissipem com o tempo.

“O mais natural será, para já, a aceitação. Não há boas opções militares e pode até ser bastante assustador pensar que em breve um regime como o da Coreia do Norte possa conseguir lançar um míssil que atinja os Estados Unidos. É ainda mais grave pensar numa guerra nuclear”, diz Bennett. Até porque, continua, “há muito tempo que Pyongyang tem capacidade para atingir Seul e as forças norte-americanas na região e nunca se passou nada de muito sério. Porque eles sabem que não sairiam em bom estado de uma guerra com os Estados Unidos”. Há dezenas de milhar de tropas norte-americanas, muito mais do que, por exemplo, as vítimas do 11 de setembro — um ataque que levou os Estados Unidos a invadir dois países poucos meses depois.

“Não tenho dúvida de que, se Kim sonhar que o que o espera é um fim como o de Kaddafi ou Saddam Hussein, dará a ordem para atacar primeiro”, diz Lewis. Ainda assim, na opinião de ambos os especialistas, a única solução que devia estar a ser considerada é a diplomacia, por muito que o homem à frente do crescente arsenal da Coreia do Norte aja de forma errática.

“A minha maior preocupação é que ou Trump ou Kim ataquem pensando que o outro vai atacar. Pode haver informação errada, conselheiros nervosos. Os generais de um e outro lado podem muito bem dizer que, se é para atacar, é melhor fazê-lo em primeiro lugar, do que ficar para segundo. Kim pode pensar, e com alguma razão, que se não atacar primeiro não conseguirá de todo atacar“, diz Lewis.

O que pode ser feito dentro do perímetro da diplomacia já está a ser feito. No início de agosto, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou sanções económicas à Coreia do Norte que poderão implicar uma redução de quase um terço do valor anual de exportações do país — mais ou menos 2.5 mil milhões de euros.

E o que se faz com uma Coreia do Norte “livre”?

Imaginemos que tudo corre bem. Que os Estados Unidos neutralizam a ameaça até à última bala, o que, segundo os especialistas ouvidos, e a grande maioria dos outros que produzem relatórios quase diariamente para dezenas de centros de investigação em todo o mundo, é altamente improvável. Mesmo que isso aconteça, o que é que resta? Uma Coreia do Norte perdida no mundo, sem aliados, com uma das mais débeis economias do planeta. São 25 milhões de pessoas formatadas desde a nascença para odiar os Estados Unidos, os mesmos Estados Unidos que estariam agora a ocupar o seu país.

Ajuda humanitária seria uma necessidade imediata para prevenir uma onda de fome e doença. Seria preciso um governo interino.

Renúncia às armas nucleares é condição para diálogo com Coreia do Norte

O solo estaria radioativo, tal como muitos dos rios. As armas nucleares e o material para as fabricar teria que ser todo localizado e destruído e ninguém sabe muito bem como destruir material nuclear. Ainda haveria metros e metros cúbicos de vírus terríveis, agora sem dono nem cadeado. Em 2016, na revista The Atlantic, o autor e investigador norte-americano do Center for a New American Security , Robert D. Kaplan, escreveu que “lidar com o vazio de poder político e económico da Coreia do Norte seria para o mundo — na verdade, para o exército americano — um esforço de estabilização como não se vê desde o fim da Segunda Guerra Mundial”.

Quanto tempo demoraria para os militares de Kim que não tinham sido capturados a montar uma insurgência com o espírito de sacrifício e o tamanho da que fez um exército tão poderoso como o dos Estados Unidos definhar no Vietname? E quantos refugiados receberia a China, a Coreia do Sul ou o Japão? “Uma situação que faria a tragédia que se abateu sobre a Síria um problema fácil de resolver”, escreveu Kaplan. E isto tudo é se de facto houver um esforço de reconstrução do país. Há menos de duas semanas, Donald Trump reafirmou o seu compromisso com a luta contra o terrorismo, enviando pelo menos mais 3.900 homens para o Afeganistão. Quando anunciou este reforço do contingente deixou também outra coisa bem clara: “Nós não vamos para lá reconstruir nações, vamos lá matar terroristas”.