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Charlie Bibby

Charlie Bibby

África, Angola e os crimes das elites do offshore

A venda dos recursos naturais africanos criou uma elite de corrupção que lava o dinheiro na Europa e nos EUA, enquanto as populações definham em miséria. Entrevista ao autor de "A Pilhagem de África".

Tom Burgis é autor de “A Pilhagem de África”. Nele se explica de forma clara o rasto do dinheiro que surge na China, é trocado por recursos naturais em nações africanas com populações miseráveis e volta a aparecer em offshores, sendo depois lavado em empresas portuguesas, francesas, inglesas e americanas.

Como correspondente do Financial Times, Burgis correu África e assistiu em primeira mão à violência brutal e à tremenda miséria a que continuam condenadas as populações dos países africanos que são ricos em recursos naturais. A chegada dos interesses chineses contribuiu para aumentar a escala de delapidação de recursos naturais e também para facilitar a manutenção no poder de déspotas que se recusam a prestar contas aos seus cidadãos. Junta-se a isto a conivência das economias ocidentais, mais preocupadas com o equilíbrio do sistema bancário e a sustentabilidade das suas empresas: está dada a receita para a criação das elites do offshore, que não prestam contas a ninguém e vivem em cima de fortunas fabulosas amealhadas em cima da miséria dos seus cidadãos.

O texto de Burgis, que resulta de uma investigação de seis anos, salta facilmente entre as explorações de minério e os detalhes das operações financeiras globais, ligando os pontos entre o nepotismo global e a condenação à morte de gerações de africanos. Não deixa de apontar o cinismo dos governantes do primeiro mundo nem a hipocrisia dos consumidores – ou seja, de todos nós. Também por isso a obra é poderosa, tendo o Observador publicado em exclusivo o primeiro capítulo, dando agora voz ao autor.

Este livro mostra que a maioria do continente africano está perdida na “maldição dos recursos”, em que os países com riquezas naturais sofrem de corrupção, caos e pobreza extrema. O cenário tem neste momento muito a ver com a presença chinesa, no que parece um novo colonialismo. É mesmo assim?

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Numa certa medida sim, mas o problema é muito mais antigo. Muitas companhias extrativas dos recursos naturais já trabalhavam nestes países antes ainda das independências e, embora o cenário colonial seja parecido, há uma parte do negócio que se privatizou. Agora o poder estrangeiro tende a ser corporativo e não nacional.

Ao mesmo tempo, a chegada da China é outro aspeto disso. Tem havido um esforço claro por parte dos chineses em distanciarem-se da imagem, dizendo: “sim, nós queremos os recursos naturais e não temos problemas em lidar com ditadores, mas ao mesmo tempo estamos empenhados em construir infraestruturas”. Nalguns casos isso acaba por fazer diferença para as pessoas, porque melhoram as acessibilidades.

Mas a oferta chinesa é como um presente envenenado: os chineses dão a infraestrutura para que as sociedades africanas sigam o caminho seguido por Pequim, o de uma industrialização massiva. Ao mesmo tempo aumentam o preço das matérias-primas e perpetuam a dependência dos recursos naturais – que eram a razão original para esses países não se terem industrializado.

A oferta chinesa é como um presente envenenado: os chineses dão a infraestrutura para que as sociedades africanas sigam o caminho seguido por Pequim, o de uma industrialização massiva. Ao mesmo tempo aumentam o preço das matérias-primas e perpetuam a dependência dos recursos naturais

Portanto a globalização só veio piorar esta situação. Certo?

Vários líderes políticos africanos dizem que a chegada dos chineses é positiva. Eles estão fartos de receber miúdos de 25 anos do FMI com ordens sobre como conduzir as políticas locais, e os chineses chegam com dinheiro fresco e dizem formalmente que não se envolvem na política. Embora obviamente o façam, porque suportam financeiramente os regimes que fazem negócios com eles.

E sim, claro que a globalização ajuda a eternizar os problemas. São o que chamo as “elites do offshore”, que se vêm no Zimbabue, Nigéria, Gabão, na Guiné Equatorial, em Angola. As elites estão separadas da nação. Claro que dominam politicamente o país e controlam as fronteiras físicas, por isso há a militarização que há em Cabinda e no delta do Níger, por exemplo… Mas estas elites são empresas, o Futungo é uma empresa que está deslocada do país que controla. A elite africana tem filhos que estudam na Europa, vão ao médico na Arábia Saudita, o dinheiro que roubam é lavado em Nova Iorque, em Londres e no Dubai. São verdadeiros cidadãos do mundo, adequadamente globalizados.

E isto acontece porque é tão incrivelmente fácil mover o dinheiro de forma escondida! Todos os escândalos de corrupção estão ligados, de uma forma ou de outra, a paraísos fiscais onde se pode evitar o escrutínio das populações.

Mas ao mesmo tempo esses mesmos líderes políticos sabem o estado em que a população vive, sabem as condições de vida que existem no país. Como é que se distanciam tanto?

Isso é uma pergunta fascinante, é muito difícil responder. No livro (p. 289) coloquei um poema de Achebe, Abutres, que fala do abutre que retira o olho de um cadáver e depois vai aninhar a cabeça junto da companheira… É um bocadinho assim, não quero dizer com isto que estes políticos são abutres, mas o poema fala de um padrão de comportamento em que o ser humano é capaz de cometer atrocidades e amar no mesmo dia – e a verdade é que eu conheci estas pessoas todas e nenhuma delas se vê como o vilão. São pessoas com uma dissonância cognitiva que lhes permite ser parte da engrenagem e ao mesmo tempo ter sentimentos em prol dos seus cidadãos. Manuel Vicente é um caso extraordinário, ele disse-me: “não podemos ter estas pessoas todas com fome, isto não é… confortável!”

Estas elites são empresas, o Futungo é uma empresa que está deslocada do país que controla. A elite africana tem filhos que estudam na Europa, vão ao médico na Arábia Saudita, o dinheiro que roubam é lavado em Nova Iorque, em Londres e no Dubai. São verdadeiros cidadãos do mundo

Você conheceu Manuel Vicente e Isabel dos Santos.

Sim, são pessoas muito diferentes. Manuel Vicente é um homem muito interessante, relaxado e jovial. Estive 45 minutos com ele e fiz as perguntas todas sobre as participações pessoais nos negócios secretos e a relação com a China e ele nunca perdeu a compostura, fez aliás questão de dizer que é cristão, que acredita em deus e que está empenhado em reduzir a pobreza. Isabel dos Santos é diferente, muito mais reservada, talvez até vagamente melancólica. Ela pensa muito cuidadosamente no que diz e não gosta de falar do imenso império que possui – o ponto que faz questão de reforçar é que é uma mulher de negócios por direito próprio, admite que talvez tenha beneficiado do facto de ser filha de quem é mas recusa sempre o epíteto de princesa do poder. Mas ambos são parte da máquina que transferiu imensas quantidades de dinheiro público de Angola para a esfera privada. É incrível.

Outra pessoa que refere várias vezes ao longo do livro é Sam Pa, o representante dos interesses chineses em África e noutras partes do mundo. Ele é uma das pessoas mais poderosas do planeta?

Ha! Não sei se isso não é um bocadinho excessivo… falei com muita gente que o conhece, ele é uma espécie de “fantasma”, com um dos meus entrevistados diz no livro. De todas as pessoas que inquiri sobre ele, sobressaem duas ideias: uma é que ele é um homem extremamente poderoso, altamente influente nos círculos militares, políticos e económicos em Pequim e um símbolo destes homens que se movem tranquilamente entre os assassinos a soldo de Mugabe e os banqueiros do Crédit Agricole e tudo o que está pelo meio; há outra ideia de Sam Pa, que é a de que ele foi capaz de projetar esta ideia muito chinesa de “guanxi“, das ligações que tem e que, sendo verdade que tem imenso poder, é capaz de projetar mais do que realmente tem.

Há algum tempo ficou na moda ter uma ideia positiva de África. O livro mata isso de forma clara.

Uma das coisas que sempre me irritou sobre essa moda é que tende a ver o continente como movendo-se numa única direção. Isso é patético. Nem sequer ao nível nacional se podem fazer estas comparações: o que está a acontecer em Lagos é impressionante em termos de empenho cívico, mas ao mesmo tempo o nordeste do país está refém do Boko Haram… Por isso é impossível generalizar.

E eu espero bem que o livro não cometa o mesmo erro na direção contrária: é verdade que há casos dramáticos pela praga dos recursos naturais, mas há casos como o do Botswana, da Tanzânia e de outros onde o panorama é bem mais risonho. Tem havido imensas melhorias nalguns locais, mas é um continente imenso e tem sido uma tremenda irresponsabilidade o modo como os jornalistas deixaram de retratar os cenários de sofrimento só porque alguns banqueiros quiseram lá investir e fizeram espalhar uma imagem positiva.

Tem sido uma tremenda irresponsabilidade o modo como os jornalistas deixaram de retratar os cenários de sofrimento só porque alguns banqueiros quiseram lá investir e fizeram espalhar uma imagem positiva.

No fim do livro recorda que somos todos responsáveis, não é? Nós, consumidores ricos que não queremos saber quanto sangue está agarrado aos nossos telemóveis.

Sim, nós temos uma ideia sobre os diamantes, por causa do filme do Di Caprio. E temos uma ideia dos problemas do petróleo por causa das guerras no médio oriente. Mas se perguntarmos a alguém de onde vem o petróleo africano, as pessoas não fazem a mais pequena ideia… E menos ainda no que toca ao cobre que vem do Congo ou à bauxite da Guiné. E passa-se esta coisa ridícula: se compramos café étnico queremos saber que o agricultor tem uma vida decente e é pago de forma justa, se compramos uma t-shirt queremos que não tenha sido uma criança a fazê-la. Mas não damos atenção aos produtos sofisticados que compramos e que sustentam todo este sistema, é verdade.

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Todo o livro acaba por ser um argumento extremamente consistente contra o capitalismo global, ou pelo menos contra o nepotismo que se serve do modelo capitalista. Qual é o caminho para acabar com isto?

Algumas coisas podem ajudar. São ações objetivas: por exemplo, tem-se falado em ter um registo público global da propriedade das empresas. Isto seria feito obrigando os grandes centros empresariais a apenas aceitar empresas com proprietários reconhecidos, mantendo uma lista negra de indivíduos que não estão autorizados a operar nestes mercados. Isso resolveria o problema de forma muito rápida, e quem o diz nem sou eu, são especialistas que acompanham estes problemas há muito tempo. O segredo ajuda a que muitas regiões estejam a saque, o segredo dos offshores propaga os crimes globais.

Outra coisa simples seria pura e simplesmente fazer exercer as leis que estão em vigor e que são ignoradas. Quase todos os países da OCDE têm, de uma forma ou de outra, leis que atacam a corrupção estrangeira. É simples: processem estas pessoas.

E também seria importante reforçar as exigências do FMI e do Banco Mundial sobre as economias destes países, cujos lucros são aplicados em nome privado nas economias dos países desenvolvidos. Não se pode olhar só para a origem do dinheiro, é preciso ter em conta o destino. Portugal é um exemplo perfeito, com a quantidade de dinheiro a chegar de Angola – não duvido que algum seja legítimo, mas com um país de onde num ano desapareceram 32 mil milhões de dólares das contas públicas, dólares esses que começam a espalhar-se pela economia portuguesa, é fácil fazer as contas. Tenho a certeza que a elite angolana está deliciada com esta irónica inversão da situação colonial! E isto revela o desespero cínico da Europa ocidental, que está preparada para não pensar na origem suja deste dinheiro que tanto ajuda as suas economias.

Portugal é um exemplo perfeito, com a quantidade de dinheiro a chegar de Angola. Não duvido que algum seja legítimo, mas com um país de onde num ano desapareceram 32 mil milhões de dólares das contas públicas, dólares esses que começam a espalhar-se pela economia portuguesa, é fácil fazer as contas. Tenho a certeza que a elite angolana está deliciada com esta irónica inversão da situação colonial!

Acredita que as próximas gerações africanas podem ajudar a mudar o desequilíbrio do poder ou estão mesmo estes países condenados a uma espiral de corrupção endémica?

Essa é uma das perguntas assustadoras. Uma das partes do livro que mais me deprime é quando um dos meus entrevistados (p. 107) mais otimistas prevê o futuro de África nestes termos: “vai ser uma mina. E os africanos serão os criados do mundo.” O modelo instalado é um dos pilares estruturais da globalização, e infelizmente vai ser difícil ver mudanças rápidas neste aspeto.

Ao mesmo tempo noto mudanças. Como na Nigéria, onde falei com muita gente talentosa que me disse que só queria distância da política por causa de toda a podridão que ela implica – e agora, com a eleição que renovou a classe dirigente, já estarão dispostos a envolver-se. E em Angola também notei que agora as pessoas estão mais impacientes, passou-se daquela geração que dizia “não me interessa que me roubem desde que me deem paz” para uma geração que já não aguenta a falta de serviços e de possibilidades na vida enquanto ouve falar de vidas fabulosas e de hotéis de cinco estrelas onde uma sandes de queijo custa quarenta euros.

Em resumo, depois de tudo isto, quão pessimista está sobre o futuro desta África dos recursos naturais?

Reforço que não é possível nem lógico estar otimista ou pessimista sobre um continente inteiro. Há razões estruturais tremendas que me fazem ser pessimista, mas há bolsas de talento, pessoas extraordinárias que conheci, que me levam também a ter esperança no futuro.

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