Diana de Carvalho Pereira não sabe explicar porque é que as práticas que viu entre janeiro e março no serviço de cirurgia geral do Centro Hospitalar Universitário de Faro (CHUA) estão erradas. Não sabe porque é médica interna e não tem ainda “capacidade técnica” ou “experiência” para saber, por contraposição, como é que se faz bem. Mas sabe que, precisamente enquanto cumpria a formação específica no Hospital de Faro, encontrou evidências de más práticas clínicas que terão chegado a resultar em morte e em lesões corporais.
A primeira denúncia de Diana de Carvalho Pereira, que tirou Medicina na Universidade de Coimbra e fez a formação geral também em Faro, aconteceu a 1 de abril. Nesse sábado, a médica de 27 anos natural do Porto dirigiu-se à Polícia Judiciária de Faro com histórias de “erro” e “negligência” alegadamente cometidos pelo cirurgião Pedro Henriques, seu ex-orientador da formação específica, e encobertos pelo diretor do serviço de cirurgia do Hospital de Faro, Gildásio Martins dos Santos.
Só que as denúncias vão além dos atos clínicos praticados entre as quatro paredes dos blocos operatórios. Em entrevista ao Observador, a médica interna acusou os cirurgiões com que trabalhou na formação específica de “não quererem, pura e simplesmente, saber dos doentes” — às vezes por causa da sua idade ou orientação sexual. Em causa, estarão comentários sobre como a origem de lesões exibidas por um doente do sexo masculino ser as práticas sexuais em que participava por ser homossexual.
O caso foi entretanto transmitido ao Ministério Público, que confirmou ao Observador estar a investigar os relatos da médica interna em cirurgia através de um inquérito que corre termos no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Faro. Tudo se tornou público este domingo, quando Diana de Carvalho Pereira publicou no Instagram uma longa mensagem sobre a violação da “legis artis”, isto é, das regras e princípios técnicos e científicos por que se devem pautar todos os atos clínicos.
Ministério Público está a investigar alegadas más práticas médicas cometidas no Hospital de Faro
“Relatei onze casos ocorridos entre janeiro e março deste ano daquilo que considero erro/negligência”, apontou a médica: “Três morreram, dois estão internados nos cuidados intermédios, os restantes tiveram lesão corporal associada a erro médico, que variam desde a castração acidental, perda de rins ou necessidade de colostomia para o resto da vida. Um dos doentes esteve uma semana com compressas no abdómen”.
Em declarações ao Observador, Diana de Carvalho Pereira detalha o caso de um homem a quem, durante uma cirurgia ao reto, lhe terão lacerado o ducto deferente, as vesículas seminais e parte da próstata — órgãos do sistema reprodutivo masculino sem os quais, segundo a médica, o doente ficou estéril. “Não que isso interesse em termos práticos porque ele tinha 70 e tal anos”, considerou a médica, “mas não foi para isso que foi operado: “Foi para tirar um tumor do reto”, especificou.
Noutro caso, uma mulher foi operada para retirar um tumor do intestino esquerdo — mas, durante a intervenção cirúrgica, foram-lhe cortados os dois ureteres, que unem os rins à bexiga. A equipa cirúrgica, só terá detetado a laceração de um dos ureteres e o tubo foi corrigido durante aquela mesma cirurgia, mas “ninguém chamou a urologia, que é a equipa competente por uma lesão do ureter”, condenou Diana de Carvalho Pereira.
A médica, que não participava ativamente na cirurgia e estava apenas a observar os procedimentos médicos, disse ter estranhado o modo como a intervenção estava a decorrer. “Percebi que aquela cirurgia não tinha sido feita como eu tinha visto fazer nos vídeos”, explicou, referindo-se a imagens disponibilizadas em portais online para os internos estudarem as intervenções cirúrgicas. “Tive muito medo que aquele ureter não sarasse em condições, que a ligação que fizeram entre as partes laceradas não sarassem bem”, prosseguiu.
O receio de Diana de Carvalho Pereira ter–se-á comprovado uns dias depois, quando a mesma doente deu entrada no hospital por causa de um líquido que estaria a escapar do local da intervenção cirúrgica. Era urina, revelaram as análises, que estaria a escapar de um dos drenos. “A equipa cirúrgica não quis logo falar com urologia, andei dois ou três dias até conseguir que eles me deixassem falar com eles”, denunciou em conversa com o Observador: “Quando lá foram, tiveram de operar a senhora três vezes e mesmo assim não lhe conseguiram salvar o lado direito, que era o que estava a extravasar a urina para o abdómen.”
As cirurgias não eram como nos vídeos: “Encontrei coisas que me envergonham”
Diana de Carvalho Pereira sabe que, na prática, as cirurgias nem sempre acontecem como se descreve nos livros: “Há sempre formas de fazer as coisas de modo diferente, e se o cirurgião tiver uma boa justificação para fazer diferente, não há problema nenhum em fazer isso.” Mas a médica interna diz que encontrou os primeiros sinais de que alguma coisa não estaria bem no serviço de cirurgia do CHUA logo no primeiro dia da formação específica, uma quarta-feira, em que escreveu sozinha os diários de 20 doentes.
Os diários são relatórios médicos que descrevem a evolução de um doente ao longo do seu percurso no hospital. Diana de Carvalho Pereira estava ciente de que esta tarefa não agradaria aos especialistas — mais satisfeitos com a prática clínica propriamente dita do que com as tarefas burocráticas da função. O que não esperava encontrar, no entanto, era diários com informações em falta desde a semana anterior. “Era como se não tivessem sido vistos”, afirma a médica.
O trabalho evoluiu por corredores que Diana de Carvalho Pereira conhecia bem. Naquele mesmo hospital, mas integrada noutra equipa de cirurgia, tinha realizado a formação geral junto a clínicos contra os quais não tinha “nada a apontar”. “Este ano, com a equipa em que fiquei não tive a mesma realidade e não pude viver a mesma realidade. Encontrei coisas que me envergonham enquanto profissional de saúde”, desabafou a médica interna.
Diana diz agora que já suspeitava o que ia encontrar porque já se tinha cruzado com Pedro Henriques durante a formação geral em turnos extraordinários de urgências: “Quando soube que seria ele o meu orientador de formação, ponderei desistir logo do internato de formação específica”, afirma a médica, sugerindo também que alguns doentes se recusam a ser acompanhados pelo cirurgião com receio das suas verdadeiras “competências” para o cargo.
Ficou “por uma questão de paixão pela especialidade”, “para tentar não atrasar” a formação médica e para dar “o benefício da dúvida” ao médico em causa. Mas ter-se-ão seguido três meses de “cansaço e frustração em todos os sentidos”, que culminaram num diagnóstico de ansiedade relacionado com o contexto laboral: “É algo de que não padecia em dezembro e de que passei a padecer desde que trabalho neste serviço em particular”, assegurou ao Observador.
Segundo Diana de Carvalho Pereira, o quadro de ansiedade diagnosticado pelo psicólogo clínico que a acompanha revela-se na preocupação excessiva que tem com os doentes, mas que não existiria se “tivesse especialistas em quem pudesse confiar” e que “não pusessem em causa as práticas médicas”. “Como eu vi reiteradamente que estes cirurgiões não queriam saber dos doentes, cheguei a um ponto em que não confiava em nenhum deles”, admite. Por isso, pedia exames sempre que suspeitava de práticas clínicas indevidas. Descobriu que estava correta “em muitas das vezes”, assegura.
Da Ordem ao Hospital de Faro, as reações (e as críticas) do sistema de saúde
Na mensagem deixada no Instagram no domingo, a primeira em que tornou públicos os relatos de negligência, Diana de Carvalho Pereira afirmava que já tinha contactado a Ordem dos Médicos, a Entidade Reguladora da Saúde e a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Ao Observador, o bastonário Carlos Cortes confirmou que tinha recebido uma queixa na noite de domingo e que já tinha telefonado diretamente à médica sobre este caso.
Carlos Cortes adiantou que a Ordem dos Médicos está a intervir nesta matéria, notificando as entidades competentes — neste caso, o Ministério da Saúde, a Administração Regional de Saúde de Lisboa (ARS) do Algarve, o conselho de administração do hospital, o Ministério Público e a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS). De acordo com o bastonário, está a ser planeada uma visita ao local para tentar perceber melhor o problema porque “as queixas reportadas são graves”.
Diana de Carvalho Pereira também afirmou que fez chegar os relatos ao ministro da Saúde, Manuel Pizarro, “através de conhecidos em comum”. Ao Observador, fonte do Ministério da Saúde adiantou que não recebeu uma denúncia formal relativa a este caso, mas que vai dar início às “diligências necessárias” junto do hospital e também à IGAS. Por sua vez, o inspetor-geral da saúde, António Caeiro Carapeto, confirmou que mandou investigar os relatos, mas diz que ainda não recebeu qualquer informação diretamente por parte da médica.
No hospital está a tratar do assunto “com a serenidade que lhe cabe e com os meios que lhe cabe”, garantiu Horácio Guerreiro, diretor clínico do Hospital de Faro, em entrevista ao Observador. O primeiro passo, no dia em que a cúpula do serviço e da administração soube das denúncias pela própria médica interna, foi instaurar um inquérito interno. O médico não quis adiantar quem está à frente dessa investigação, mas revelou que se trata de um médico cirurgião sénior do próprio Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), que trabalha na Unidade de Portimão.
“É um médico muito conceituado e reconhecido, uma pessoa muito idónea e muito competente”, classificou Horácio Guerreiro: “É a pessoa mais capaz de conduzir um inquérito destes no CHUA no sentido de apurar todas as circunstâncias e verificar os factos.” A eles juntar-se-á, na sexta-feira, a equipa da Ordem dos Médicos — mais especificamente do Conselho Regional do Sul — que vai visitar o serviço de cirurgia geral “para averiguar os factos”.
Diana desenvolveu ansiedade desde a segunda semana de trabalho: “Achei que não tinha estofo”
Entretanto, Diana de Carvalho Pereira diz estar a ser alvo de represálias pelas denúncias que realizou. “Inventaram uma história para me difamar junto ao hospital inteiro”, acusou nas redes sociais: “Alegam insanidade, quando a minha queixa é referente a atos clínicos, baseada em provas com meios complementares de diagnóstico e relatos cirúrgicos. Alegam insanidade. Eu nunca fui um perigo para nenhum doente, ao contrário deles. Querem que a minha queixa seja anulada por esse mesmo motivo.”
A médica descreveu que está a receber acompanhamento psicológico desde a segunda semana da formação específica. Não consegue dormir bem, trabalha sempre horas a mais — chegou a fazer 100 horas de trabalho por semana, afirma — diz estar sujeita a níveis elevados de stress laboral, ser alvo de “chacota” pelos superiores por ser hiperativa, por tratar os telefonistas por “colega” e por ser “empática” com os doentes. Diana chegou a acreditar que o “problema” era dela, que não tinha “estofo” para funcionar em condições “mais pesadas” numa especialidade “tão dura”. Mas “as consultas ajudaram-me a perceber que tal não se verifica”, concretizou.
Certo é que, para Horácio Guerreiro, a “conduta da médica também não é muito habitual”: “Uma pessoa que está numa especialidade há três meses, uma formação demora três anos, não sei o que motiva a médica e qual é a sua capacidade de discernimento sobre estas matérias.” A principal crítica do diretor clínico é Diana de Carvalho Pereira ter reportado o caso a entidades externas (nomeadamente a PJ) antes de o comunicar ao serviço de cirurgia ou à direção clínica.
Mas a médica interna assegura que o diretor de serviço conhece as queixas, mas decidiu não tomar medidas e afastar o cirurgião. “É, portanto, conivente com os atos e foi também, pelo mesmo motivo, alvo das queixas”, acusa. Mais: Diana de Carvalho Pereira acusa Gildásio Martins dos Santos de lhe ter dito várias vezes que ela, como interna do primeiro ano, “não tem de opinar”, por ter reunido à porta fechada com outros especialistas para lhes dizer que a interna não confia nesses médicos; e de a ter informado que não tinha autorização para praticar qualquer ato clínico sem supervisão.
Ao Observador, Horácio Guerreiro assegurou que o CHUA quer “uma avaliação independente”: “Interessa-nos tranquilizar as pessoas, apurar os factos e corrigir o que houver a corrigir. Se se verificar má prática, retiraremos as nossas ilações em relação aos intervenientes, não poderá ser de outra forma”: “Esta é uma situação que afeta muito a imagem do hospital”, admite o médico, apontando outra crítica a Diana de Carvalho Pereira: “É um pouco estranho que a médica continue a prestar declarações públicas, é invulgar se há um processo de inquérito em curso”.