Entre maio e setembro de 2020, a herdade da Torre Bela, no concelho da Azambuja (Lisboa), perdeu centenas de hectares de eucaliptos. As imagens de satélite impressionam: em quatro meses, parece ter desaparecido metade da mancha verde que cobre a enorme e centenária herdade onde, em dezembro, 540 animais foram mortos numa caçada de grandes dimensões que causou uma onda de indignação no país, levou o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) a suspender a licença de caça da herdade e até já motivou a abertura de um inquérito por parte do Ministério Público. Em paralelo com a desflorestação, ao longo dos últimos meses, a quinta intensificou a atividade de caça para diminuir significativamente o número de veados, gamos e javalis que ali vivem. O objetivo da retirada de árvores e de animais é a preparação do espaço para que ali possa ser instalada uma central de energia solar — cuja avaliação de impacte ambiental, que ainda se encontrava em consulta pública, também foi suspensa na sequência da polémica caçada.
Embora impressionantes, as imagens de satélite refletem um processo aparentemente normal: dos 685 hectares de eucaliptal que fazem parte da propriedade da Torre Bela, 608 hectares (ou seja, 89%) correspondiam a árvores que se encontravam na terceira rotação — ou seja, no último ciclo da vida útil, pelo que já estava na altura de serem cortadas. Por isso, com ou sem central fotovoltaica, aquelas árvores iriam desaparecer. “Está previsto serem feitos arranques de eucaliptos de terceira rotação (eucaliptos em fim de vida útil), independentemente da implementação, ou não, deste projeto”, lê-se no estudo de impacto ambiental sujeito a consulta pública. “O que quer dizer que, na ausência do projeto, em vários talhões, está previsto a reflorestação.”
Já relativamente aos animais, é menos claro como regressarão à herdade caso o projeto não avance. Um dos principais métodos de retirada das centenas de animais que ali vivem (a quinta é também uma tapada de caça de grande porte, incluindo de javalis, gamos e veados) tem sido o aumento da intensidade da caça no terreno, de acordo com informações da proprietária da quinta, citadas no estudo. “Na expectativa da implementação deste projeto, a proprietária tem desenvolvido várias ações de caça que resultou numa grande redução do efetivo existente, e complementarmente tem permitido a saída dos animais da zona onde se prevê que fiquem instaladas as centrais fotovoltaicas, para uma zona adjacente localizada a nascente, e que também está inserida na Reserva de Caça Turística da Torre Bela”, lê-se no estudo. “Esta evolução, ainda que esteja a ocorrer no território previamente à instalação do projeto, é uma consequência do mesmo, ou seja, na ausência do projeto seria de esperar que se mantivesse esta zona com caça.”
Noutro ponto do estudo confirma-se que “a proprietária da Quinta da Torre Bela tem vindo a desenvolver ações cinegéticas [de caça] com maior regularidade, estando o efetivo destes animais vindo gradualmente a ser reduzido”. “Têm também sido transferidos animais para a zona adjacente à área de implantação das centrais fotovoltaicas que se localiza a nascente, prevendo-se que à data de instalação do projeto já não existem animais de grande porte na zona” onde será colocada a central solar, salienta o estudo de impacto ambiental.
Corte de árvores não precipitou caçada, garante a herdade
A montaria que ocorreu na Torre Bela no final de dezembro foi o mais recente episódio desta intensificação da atividade de caça — mas também o mais polémico. A morte de 540 animais, e sobretudo a divulgação das imagens nas redes sociais por parte de um conjunto de caçadores estrangeiros, deu origem a uma onda de indignação. A própria quinta já apresentou um processo contra os caçadores, acusando-os de terem violado os direitos de caça. Segundo a proprietária, a herdade só tinha disponibilizado 105 selos para a montaria de dezembro — ou seja, só deveriam ter sido mortos 40 veados e 65 javalis, e não as mais de cinco centenas de animais.
Herdade da Torre Bela apresenta queixa-crime contra responsáveis pela caçada
A nível local, porém, a polémica já era anterior à montaria de dezembro. Num comunicado recente, o PSD, que lidera a oposição autárquica na Azambuja, acusou os proprietários de estarem a levar a cabo uma grande destruição da fauna e da flora da Torre Bela ao longo do último ano com a conivência da câmara socialista. Segundo os sociais-democratas, a aprovação da declaração de interesse público municipal para o projeto “deu conforto ao iniciado arranque e abate de árvores numa área aproximada de 750 hectares da Quinta da Torre Bela, destruindo de forma irremediável parte significativa do património e habitat ambiental existente para muitas espécies”.
“O objetivo desta massiva eliminação é óbvio: limpar o território para a colocação de mais de 638 de mil painéis fotovoltaicos! Foi na prossecução deste mesmo objetivo que foram chacinados 540 animais em terreno aberto, murado e sem qualquer vegetação”, acusou o PSD.
De facto, o estudo de impacto ambiental reconhece que a “área de implantação da central” é “uma zona de caça turística”, pelo que “todo este conjunto cénico cria condições de alimentação, esconderijo e sobrevivência das várias espécies cinegéticas aí existentes atualmente, nomeadamente veados, gamos e javalis”. Porém, a área de eucaliptos que foi desflorestada não colocou em causa os habitats dos animais, garante ao Observador fonte oficial do ICNF — uma vez que as zonas de eucaliptos não constituíam a área de alimentação dos animais.
“Importa referir que qualquer área vedada tem uma capacidade de suporte limite dependendo do tipo de coberto existente e da disponibilidade de alimento que essa mesma área consegue gerar”, diz o ICNF. “Apesar do acima exposto, salienta-se que as espécies abatidas, essencialmente veados e gamos, têm como principal fonte de alimentação pastagens naturais, sendo essa alimentação complementada em determinadas alturas do ano por glandes caídas ao chão provenientes de quercíneas, nada apontando por isso que a desflorestação levada a cabo (manchas arborizadas com eucalipto não constituem áreas de alimentação) implicasse a inexistência de vegetação suficiente para efeitos de alimentação daquelas populações.”
Também em resposta ao Observador, fonte oficial da herdade da Torre Bela explicou o racional por trás do abate dos eucaliptos em 2020, rejeitando uma relação entre o corte das árvores e a montaria realizada em dezembro e a instalação da central solar. “O corte de árvores está relacionado com um projeto florestal de eucaliptos”, explicou a mesma fonte, sublinhando que um eucaliptal dura três ciclos de corte, uma vez que a produtividade da floresta começa a diminuir. “Os cortes ocorrem a cada 10-12 anos, dependendo da zona do país e do tipo de solo, o que significa que uma florestação de eucaliptos deve ser substituída ao fim de 30-36 anos, pois a produtividade é muito baixa”, disse a mesma fonte, acrescentando que “a produtividade do terceiro corte é de cerca de 60% do segundo e o segundo de 90% em relação ao primeiro”.
Ora, a herdade da Torre Bela recebeu os primeiros eucaliptos entre 1985 e 1986, numa altura em que era propriedade da Soporcel e Portucel, que ali começaram a explorar aquela espécie. O primeiro corte foi efetuado “12 anos depois e o segundo há 11 anos”, informou a herdade. Isto significa que aquele eucaliptal chegou em 2020, em grande parte, ao fim da sua vida útil, motivo pelo qual este seria o desenlace inevitável. “Enquanto projeto florestal, este é o período adequado para fazer o repovoamento”, disse a herdade, acrescentando que a proprietária “mantém muitas outras áreas florestais de dimensão equivalente à que foi cortada”.
Afastando qualquer polémica envolvendo o corte de árvores e uma destruição do habitat dos animais que levaria à intensificação da atividade de caça, a herdade reiterou ao Observador que “não existe qualquer relação entre o corte de árvores e a montaria realizada ou qualquer outro projeto da Herdade, nomeadamente a instalação de uma central fotovoltaica”. As informações prestadas pela proprietária do terreno corroboram o que já era dito no estudo de impacto ambiental e que já fora noticiado: com ou sem central, as árvores seriam mesmo arrancadas em 2020 para dar lugar a outra floresta.
A questão mais controversa continua a ser, ainda assim, a relativa à intensificação da caça ao longo do ano, como forma de reduzir o número de animais no terreno. Apesar das críticas surgidas em público — nomeadamente as acusações do PSD segundo as quais o corte das árvores havia destruído os habitats dos animais, obrigando a um acelerar da caça —, a herdade insiste que isso não aconteceu. “Com o corte de eucaliptos iniciado em maio de 2020, os animais foram naturalmente sendo encaminhados para outra zona da Reserva de Caça, sem necessidade de qualquer intervenção ou vigilância humana”, assegura fonte oficial da herdade. “É um método que utiliza um processo físico de retenção, de onde não há retorno à zona inicial, e que ocorre pela maior facilidade de alimentação que se disponibiliza aos animais. Esse método ainda se mantém.”
O Observador perguntou também à herdade da Torre Bela quantos animais já haviam sido retirados do terreno ao longo de 2020, uma vez que a proprietária da herdade assume ter aumentado a intensidade da caça com o objetivo de diminuir o número de animais na zona onde se prevê a instalação da central solar. Porém, a proprietária respondeu que “a montaria de 17 de dezembro foi a primeira (e única) montaria realizada na herdade da Torre Bela nesta época venatória”, que começou no verão. “Neste momento, pela proximidade da data da caçada, ainda não é possível efetuar quaisquer censos que permitam obter números com fiabilidade. Iremos proceder a contagens nos meses de janeiro e fevereiro, tendo sempre em conta que os censos são processos morosos.” A herdade não esclareceu o número de animais caçados ao longo de todo o processo de intensificação da caça, mas reiterou que não houve nenhuma relação entre o corte das árvores e a necessidade de caçar mais animais.
Se for construída, a central fotovoltaica da herdade da Torre Bela irá incluir mais de 638 mil painéis solares e representará um investimento de cerca de 170 milhões de euros. Mas o projeto solar será apenas o capítulo mais recente na longa história da herdade, que faz parte da paisagem rural portuguesa há quase 400 anos e foi palco de episódios relevantes da história recente do país.
O muro de 18 quilómetros com pedras do Convento de Mafra
É possível, com efeito, recuar praticamente quatro séculos para começar a contar a história daquela herdade, com cerca de 1.700 hectares, na zona da Azambuja. De acordo com informações oficiais da quinta, o enorme terreno fazia parte das posses do bispo D. Luís de Sousa, nascido no Porto em 1630. Depois de passar por Bona, na Alemanha, o bispo chegou, em 1675, ao cargo de arcebispo de Lisboa e o papa Inocêncio XII elevou-o ao lugar de cardeal. D. Luís de Sousa foi o último arcebispo de Lisboa antes de a diocese da capital portuguesa ter sido elevada à dignidade de patriarcado (isso só aconteceu em 1716, pelo papa Clemente XI, de modo que só o sucessor de D. Luís de Sousa, D. Tomás de Almeida, é que recebeu o título de cardeal-patriarca). D. Luís de Sousa era também o confessor do rei D. Pedro II, que governou Portugal entre 1683 e 1706.
A 17 de fevereiro de 1718, o rei D. João V criou um novo título nobiliárquico destinado a favorecer D. Pedro Henrique de Bragança, neto do seu antecessor D. Pedro II: o ducado de Lafões. Através do decreto régio que instituiu o novo título, numa altura em que já tinham passado quase vinte anos desde a morte do cardeal, o rei determinou que a grande propriedade que pertencera ao bispo passaria a fazer parte dos domínios do recém-investido duque de Lafões. A herdade ficaria nas mãos daquela família durante mais de 250 anos — em 1975, quando foi ocupada pelos agricultores da região, ainda pertencia a D. Miguel de Bragança, sobrinho-tetraneto do primeiro duque de Lafões.
É ao início do século XVIII que remonta também a história do enorme muro que rodeia a propriedade. Na altura em que o terreno passou para a posse do duque de Lafões, o Convento de Mafra estava em construção — os trabalhos começaram em 1717. Foi das obras de Mafra que vieram as pedras que permitiram construir um muro de 18 quilómetros em torno da propriedade, que durante mais de dois séculos serviu essencialmente para as caçadas do duque de Lafões e dos seus convidados. Apesar de uma pequena parte da herdade ser cultivada (com olival e vinha, mas também com trigo, para a caça), a maioria do terreno era composta por mato e pinhal, onde o gado bravo vivia.
A história da herdade da Torre Bela desenrolou-se relativamente sem sobressaltos até ao 25 de Abril. A reforma agrária implementada depois da revolução, que proclamava querer pôr fim ao domínio dos grandes latifundiários e devolver “a terra a quem a trabalha”, ameaçou as grandes propriedades privadas, sobretudo no Alentejo, mas também na zona do Ribatejo. “Os latifundiários e, nas últimas décadas, os grandes capitalistas agrícolas constituíram o estrato social dominante no campo durante o fascismo”, dizia a lei de 1975 que aprovou as expropriações destes grandes terrenos. “A liquidação do domínio dos grandes agrários é parte integrante e essencial do processo de destruição do fascismo e das suas bases sociais e surge, como condição fundamental, no caminho da libertação e emancipação dos operários agrícolas e dos pequenos agricultores no caminho da construção de uma sociedade democrática.” O decreto era claro: “Os dispositivos legais contidos no presente diploma constituem apenas um quadro geral de ataque à grande propriedade e à grande exploração capitalista da terra”.
A lei de 1975 determinou que ficavam sujeitos à expropriação todas as propriedades privadas com mais de 700 hectares e aquelas que não estivessem a ser bem aproveitadas do ponto de vista agrícola. A Torre Bela não escaparia à ocupação.
Ocupação da Torre Bela: “Vocês ocupam e a lei há de vir”
O episódio mais célebre da história contemporânea da Torre Bela é seguramente a sua ocupação por parte de dezenas de agricultores no Verão Quente de 1975, com o objetivo de ali estabelecerem a Cooperativa Agrícola da Torre Bela. Durante o processo revolucionário do pós-25 de Abril, foram muitas as terras, fábricas e outras propriedades privadas que foram ocupadas por trabalhadores agrícolas e operários com o objetivo de implementar cooperativas. A ocupação da Torre Bela tornar-se-ia, contudo, num dos principais momentos representativos deste período da história portuguesa: por um lado, tratava-se na altura da maior herdade murada do país; por outro, a cooperativa foi implementada sem a participação do PCP, enquanto a maioria das restantes cooperativas eram marcadamente apoiadas na sua organização pelo Partido Comunista; por fim, a presença de estrangeiros na cooperativa, nomeadamente o cineasta alemão Thomas Harlan, que filmou o processo, e o jornalista francês Francis Pisani, que escreveu um livro sobre o seu período na Torre Bela, contribuiu para um maior reconhecimento público daquela “experiência de socialismo em concretização”, como lhe chamou o historiador José Filipe Costa, autor de um documentário sobre a ocupação da herdade.
Foi no dia 23 de abril de 1975, quando estava prestes a completar-se um ano desde a revolução, que cerca de uma centena de agricultores invadiu ilegalmente a herdade e a ocupou para estabelecer a cooperativa. A maioria das pessoas eram oriundas das aldeias vizinhas, incluindo Manique do Intendente, Ereira e Maçussa. Pobres, habituados a trabalhar à jorna e de forma precária (eram comuns as praças de jorna, onde os trabalhadores podiam ser contratados para um dia de trabalho) e seguindo o espírito revolucionário, os agricultores liderados por um jovem de 27 anos, Wilson Filipe — que morreu recentemente, no dia 26 de dezembro, na Azambuja —, invadiram a quinta ilegalmente, mas com o apoio dos militares do MFA. De resto, Thomas Harlan soube que a Torre Bela ia ser ocupada quando ainda estava em Lisboa nesse mês de abril, através de contactos nos meios da extrema-esquerda militar. “Não devem estar à espera que legalmente saia um decreto a dizer que vocês podem ocupar. Vocês ocupam e a lei há de vir”, disse o tenente-coronel Luís Banazol aos agricultores. A ocupação começou ilegal, mas seria legalizada em 1976, quando a herdade foi expropriada por proposta do IRA (Instituto da Reorganização Agrária, criado pelo segundo governa provisório, em setembro de 1974, para coordenar a reforma agrária) ao seu antigo dono — o então duque de Lafões, D. Miguel de Bragança.
Morreu Wilson Filipe, um dos líderes da ocupação da Torre Bela em 1975
O terreno pouco cultivado da herdade servia sobretudo para as caçadas do duque e dos seus convidados. Por isso, rapidamente se percebeu que seria abrangido pela lei das expropriações. Em 17 de maio de 1976, um ano depois da ocupação, o ministro da Agricultura e Pescas fez sair uma portaria para oficializar uma série de expropriações no concelho da Azambuja. Na lista, surge claramente a quinta da Torre Bela, então com 1.437 hectares, expropriada aos “herdeiros de Caetano Segismundo de Bragança (duque de Lafões)”.
Ao contrário do que aconteceu com a maioria dos movimentos de ocupação, que foram apoiados logisticamente pelo PCP, os agricultores da Azambuja pediram apoio à LUAR, movimento revolucionário de que fazia parte Camilo Mortágua (pai das deputadas do Bloco de Esquerda Joana e Mariana Mortágua). O ativista foi enviado pela LUAR à herdade, onde dirigiu as operações — e onde conheceu a mulher com quem teria as filhas, Maria Inês Rodrigues. Mas a cooperativa não duraria muito tempo. Ainda durante o ano de 1976, a experiência levada a cabo por centenas de agricultores e testemunhada por diversos estrangeiros que procuraram em Portugal a experiência da revolução começaria a diluir-se. A história oficial da quinta, escrita pela atual proprietária, fala em “falta de gestão” e “desmotivação dos cooperantes, que viram esgotados os recursos agrícolas e de caça na propriedade”.
Os relatos e os testemunhos daquele tempo comprovam isso mesmo. “Era difícil gerir a Torre Bela porque as pessoas eram alcoólicas, antes eram pagas em vinho, não resistiam às ordens, eram malnutridas”, disse Mariana Mortágua, lembrando os relatos da sua mãe, numa reportagem feita pelo Público em casa dos Mortágua em 2015. O historiador José Filipe Costa, citando os testemunhos recolhidos por Francis Pisani de estrangeiros que visitaram a experiência da herdade, lembra as “queixas de quatro voluntários alemães que em lugar de encontrarem naquela estrutura a imagem que se coadunava com a sua ideia precisa do que devia ser a Revolução, depararam-se com falta de organização e alcoolismo”. Numa entrevista à SIC em 2012, Wilson Filipe, o líder da ocupação, lembrou que o projeto da cooperativa “foi criado com pessoas alcoólicas”, porque “os mais necessitados eram aqueles que mais bebiam para esquecer as suas amarguras”. Wilson Filipe defendeu a experiência: “Criámos ali uma liberdade muito grande entre todos nós, uma fraternidade, criámos uma creche, tínhamos uma cooperativa de consumo, tínhamos um refeitório. (…) Naquela altura, tínhamos vinho, plantávamos o milho, plantávamos o trigo, cultivávamos a azeitona, tínhamos a pecuária.”
Um dos exemplos mais claros da dificuldade que os líderes da ocupação tiveram em passar a sua mensagem política ficou plasmado numa das filmagens mais famosas entre as horas de gravação captadas por Thomas Harlan. Durante vários minutos, Wilson Filipe tenta convencer um agricultor de que a sua ferramenta deve passar a ser da cooperativa, mas sem sucesso. O agricultor, sem entender a lógica, argumenta que a sua enxada passaria a ser da “comprativa”, enquanto outros não contribuíam com ferramentas e usariam as dele. No documentário do cineasta alemão, é possível encontrar múltiplos momentos que ilustram como na cooperativa imperava a desorganização e a incapacidade de tornar a herdade produtiva.
A ocupação terminaria formalmente ao fim de quatro anos, depois de a “Lei Barreto” — aprovada durante o curto período de António Barreto como ministro da Agricultura — ter travado uma reforma agrária em Portugal à base de expropriações.
Os donos atuais, o regresso da caça e a polémica no Brasil
O fim da cooperativa levou a que o Estado tomasse conta do terreno. Por decisão da Direção-Geral das Florestas, a herdade, que tinha sido de caça e passara a complexo agrícola, foi aproveitada para a plantação de um pinhal de pinheiro bravo. Mas também aquela opção não duraria muito: votada ao abandono, a herdade seria palco de grandes incêndios.
Em 1985, dez anos depois da ocupação ilegal, a herdade foi devolvida pelo Estado aos antigos proprietários, a família do duque de Lafões. Naquela altura, a família vendeu a propriedade à Soporcel, empresa que ali plantou eucaliptos para a produção de pasta de papel. Foi para esse fim que a herdade serviu durante mais de uma década. Nos anos 90, a Torre Bela chegou a acolher um centro de investigação florestal, implementado pela Soporcel e pela Portucel (duas empresas que hoje compõem a Navigator). Só no final da década, em 1997, é que o terreno chegaria às mãos dos atuais donos, que em 2003 completaram a aquisição de toda a propriedade. Uma das prioridades dos novos donos foi devolver à herdade a prática da caça, que havia sido abandonada depois da ocupação de 1975, e reintroduzir no terreno um conjunto de espécies, como o veado, o gamo, o corço e o javali; as informações oficiais dão ainda conta da melhoria das pastagens com o objetivo de passar a criar vacas leiteiras.
Herdade da Torre Bela apresenta queixa-crime contra responsáveis pela caçada
Atualmente, a herdade da Torre Bela pertence à Sociedade Agrícola da Quinta do Convento, uma empresa familiar que detém várias propriedades naquela região e que é liderada por Cristina Albuquerque (dona de 80% do capital) e pelo sogro, Josué de Assunção Carvalho. De acordo com a revista Sábado, a empresa de Cristina Albuquerque cedeu, em março de 2020, os direitos de superfície de duas parcelas da herdade da Torre bela a duas empresas internacionais, com o objetivo de ali construírem a central solar. Os direitos da propriedade (160 hectares para uma empresa, 615 para a outra) foram cedidos “livres de quaisquer pessoas, bens, ónus ou encargos e sem quaisquer condições ou restrições que possam limitar ou impedir a construção, instalação e exploração” da central fotovoltaica — motivo pelo qual as ações de preparação do terreno, incluindo a retirada de árvores e animais, deveriam estar prontas a tempo do início dos trabalhos por parte das duas empresas.
Além da Sociedade Agrícola da Quinta do Convento, Cristina Albuquerque detém participações em várias empresas do setor agrícola e turístico, em Portugal e no estrangeiro. Segundo outro artigo da revista Sábado, a dona da herdade da Torre Bela está há vários anos envolvida numa polémica ambiental no estado da Bahia, no Brasil, devido à alegada destruição de vegetação nativa numa região costeira onde uma das suas empresas detém um hotel de luxo. A empresa da portuguesa é ainda acusada pelos moradores locais de ter vedado os acessos à praia junto do hotel, impedindo a comunidade local de a frequentar, com o objetivo de assegurar a privacidade dos hóspedes. A tensão já levou a vários protestos dos moradores de Massarandupió e a processos em tribunal, que ainda correm na justiça brasileira.
Artigo atualizado em 16 de julho de 2024 para clarificar que os testemunhos citados por José Filipe Costa foram recolhidos por Francis Pisani.