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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Os efeitos económicos da pandemia: uma análise austríaca

Não existem atalhos milagrosos para sair de uma crise tão grave como aquela que foi provocada pela Covid-19. Mas qual deveria ser o papel do Estado e das empresas? Ensaio de Jesús Huerta de Soto

Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

Os teóricos da Escola Austríaca prestam atenção aos ciclos recorrentes de auge e recessão que afectam as nossas economias. A Teoria Austríaca dos Ciclos Económicos explica como os processos de expansão do crédito, impulsionados pelos bancos centrais (e executados pelo sector dos bancos privados, sem um aumento real da poupança voluntária), induzem erros sistemáticos de investimento, gerando uma estrutura de produção insustentável. Assim, surgem inevitavelmente processos de reversão, que põem em manifesto os erros cometidos e a necessidade de restruturar a economia, transferindo os factores de produção (bens de capital e mão-de-obra), desde os locais onde se empregaram por erro, para novos projectos, menos ambiciosos, mas verdadeiramente rentáveis.

Ainda que os economistas austríacos tenham proposto as reformas necessárias para acabar com os ciclos recorrentes, sempre salvaguardaram que não podem evitar crises económicas não-recorrentes, consequência de, por exemplo, transtornos sociais, desastres naturais ou pandemias, e se produza um grande incremento da incerteza com modificações súbitas na procura por dinheiro e, eventualmente, na taxa social de preferência temporal, mudanças que podem induzir modificações nas etapas da estrutura produtiva.

No presente trabalho, vamos analisar até que ponto uma pandemia como a actual pode desencadear estes e outros efeitos económicos, e até que ponto a intervenção coerciva dos estados pode aliviar os efeitos negativos das mesmas ou se, pelo contrário, pode ser contraproducente, agravando esses efeitos.

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Efeitos das pandemias sobre a estrutura produtiva real: mercado de trabalho, processo de etapas dos bens de capital e impacto da incerteza

1.1. Mercado de trabalho

O aparecimento de uma doença altamente contagiosa constitui um cenário catastrófico capaz de provocar toda uma série de consequências económicas relevantes. Destaca-se o custo em termos de vítimas humanas, muitas delas ainda plenamente criativas e produtivas. Estima-se que a “Gripe Espanhola” tenha provocado entre 40 e 50 milhões de vítimas, devorando principalmente jovens robustos em plena idade produtiva. Por contraste, a actual pandemia de Covid-19, ainda que grave para 15% da população, requer hospitalização para um terço destes e causa a morte a cerca de um quinto dos hospitalizados graves, principalmente pessoas idosas ou com patologias prévias importantes.

"Ao longo da história, diversas pandemias tiveram um impacto bastante maior sobre o mercado de trabalho. Destaca-se a Peste Negra, que se estima tenha reduzido num terço o volume total da população. Fruto da grande escassez de mão-de-obra, verificou-se um aumento dos salários reais nas décadas subsequentes."

Portanto, a pandemia não está a ter efeitos apreciáveis sobre a oferta de mão-de-obra e talento no mercado de trabalho, pois os falecimentos em pessoas em idade de trabalhar são relativamente reduzidos. Esta situação contrasta com a que se gerou durante a “Gripe Espanhola”, após a qual se registou uma contracção da oferta de trabalho, a nível agregado mundial de mais de 2%. Esta escassez relativa não deixou de exercer uma pressão de subida dos salários reais durante os “loucos anos vinte”, processo que foi simultaneamente acompanhado por uma grande expansão creditícia que assentou as bases da “Grande Depressão”, sentida a partir da grave crise financeira de 1929.

Ao longo da história, diversas pandemias tiveram um impacto bastante maior sobre o mercado de trabalho. Destaca-se a Peste Negra, que se estima tenha reduzido num terço o volume total da população. Fruto da grande escassez de mão-de-obra, verificou-se um aumento dos salários reais nas décadas subsequentes. É exasperante constatar como economistas de tipo monetarista e, principalmente, Keynesiano, continuam a referir os supostos efeitos “benéficos” de guerras e pandemias (supõe-se que com excepção dos milhões de falecidos e empobrecidos). Ludwig von Mises, com habitual perspicácia, qualifica “destrutivismo económico” essas teorias políticas e económicas, que justificam e procuram aumentar a oferta monetária per capita e o gasto das administrações públicas.

1.2. Estrutura produtiva e bens de capital

À parte destes efeitos sobre o mercado laboral, devemos considerar o impacto de uma pandemia sobre a taxa social de preferência temporal e, portanto, sobre a taxa de juro e etapas da estrutura produtiva de bens de capital. É compreensível que as valorações subjectivas se orientem ao consumo imediato, se se generalizar a convicção de que existe uma alta probabilidade de falecimento a curto prazo: que sentido tem poupar e empreender projectos de investimento, se nem nós nem os nossos filhos estaremos cá para os aproveitar? O resultado lógico que, por exemplo, se pôde observar na Florença do séc. XIV, assolada pela peste bubónica, foi o abandono em massa de granjas, gado, campos e oficinas, e o consumo sem reposição dos bens de capital. Este fenómeno pode ilustrar-se graficamente de forma simplificada utilizando os famosos triângulos Hayekianos, que representam a estrutura produtiva de uma sociedade.

Gráfico 1

Como se vê no Gráfico 1, neste caso produz-se um súbito e intenso aumento da taxa social de preferência temporal, que incrementa o consumo monetário imediato (figura b), em detrimento do investimento. Várias etapas do processo produtivo, representadas pela área sombreada na figura (c), são abandonadas, uma parte muito importante da população deixa de trabalhar e os que sobrevivem dedicam-se a consumir bens (cujos preços disparam, perante a contracção da sua oferta e a diminuição da procura por dinheiro).

Contrastando com o cenário anterior, não existem indícios de que, na actual pandemia, se tenha produzido uma modificação significativa da taxa social de preferência temporal (mais além do incremento temporal da incerteza). As circunstâncias actuais não se assemelham às de uma pandemia tão grave como a descrita. Como indicámos, a mortalidade previsível da população em idade de trabalhar é praticamente irrelevante e as expectativas em relação ao culminar dos processos de investimento permanecem inalteradas. Se não se produziu uma mutação significativa na taxa social de preferência temporal, também não se produz uma alteração da estrutura de etapas de produção de bens de capital descrita de forma simplificada no gráfico Hayekiano, salvo por três efeitos: um de muito curto prazo, outro de duração de médio prazo (entre 1 e 3 anos) e o terceiro de duração mais prolongada, inclusivamente indefinida.

O efeito temporalmente reduzido que têm sobre a estrutura produtiva os confinamentos coercivos em que a “paragem” económica afecte principalmente o esforço produtivo mais afastado do consumo final. Supondo que a procura monetária dirigida ao consumo não se veja significativamente alterada, a estrutura produtiva em termos monetários terá oscilado ao longo de um curto espaço de tempo, de forma pendular, tal como se mostra abaixo (gráfico 2):

Gráfico 2

Terminado o período de “desconexão” forçada e com os factores de produção de volta ao seu emprego habitual, o processo de produção pode reiniciar-se no ponto em que ficou parado. À diferença do que aconteceu em 2008, a estrutura produtiva não se viu irremediavelmente danificada, pelo que não será necessário um doloroso processo de reconversão e realocação em massa de mão-de-obra e factores de produção: simplesmente se requere que empresários e trabalhadores voltem ao trabalho no ponto em que se interrompeu.

Em relação a este efeito a muito curto prazo, deve-se aclarar que o mesmo também teria tido lugar, se bem que de forma muito menos traumática, sem dar lugar a uma oscilação tão pronunciada do movimento pendular indicado no gráfico (2), se os confinamentos se tivessem feito de uma forma voluntária e selectiva.

Existem, no entanto, diversos sectores, relacionados com a etapa de consumo final, cuja procura se vai ver drasticamente reduzida para lá do final do confinamento. Sectores como o turismo, transportes e espectáculos, requerem uma mudança mais profunda, que terá um impacto na estrutura produtiva mais prolongado. Se as pessoas consomem menos em transporte, hotéis, restaurantes ou teatros: ou vão consumir mais de outros bens e serviços alternativos; ou dedicar uma maior parte do rendimento ao investimento; ou incrementar os seus saldos de tesouraria. Deixando de parte este último, que discutiremos mais adiante, é obvio que a estrutura produtiva terá de se adaptar temporalmente às novas circunstâncias, tirando o melhor partido possível dos recursos que continuem activos nos sectores afectados, que terão que realocar-se às linhas de produção alternativas em que possam encontrar um emprego produtivo.

"Ainda que a pandemia possa acelerarar a adopção de determinados hábitos de conduta por parte da maioria dos consumidores, na prática talvez se esteja a exagerar o seu impacto, sobretudo se se compararem estas mudanças com as que ocorreram desde o início do séc. XXI, tanto com a globalização mundial do comércio, como em relação à revolução tecnológica que a acompanhou e tornou possível."

Assim, por exemplo, determinados restaurantes permanecerão abertos reconvertendo a sua oferta e ajustando as suas obrigações a fim de reduzir os prejuízos e o consumo do capital. Outros vão optar por “hibernar”, fechando temporariamente os seus negócios, mas deixando as correspondentes infraestruturas preparadas para reabrir. Um terceiro grupo, daqueles projectos empresariais marginalmente menos rentáveis, ver-se-á obrigado a fechar e liquidar definitivamente os seus negócios.

Todos estes movimentos e decisões empresariais podem e devem tomar-se com celeridade e minorando os custos, algo apenas possível numa economia dinamicamente eficiente, que promova o livre exercício da função empresarial e não a obstaculize com regulações prejudiciais e impostos desincentivadores. Isto porque não serão nem o governo nem os seus funcionários, mas sim os empresários, os que serão capazes de tomar as decisões mais adequadas em cada momento, nas suas circunstâncias particulares de tempo e lugar.

Em termos do triângulo simplificado da estrutura produtiva, o mais que se pode representar (ver Gráfico 3), sob o pressuposto de que não se produz uma alteração significativa na taxa social de preferência temporal, é um vaivém horizontal da hipotenusa do triângulo, primeiro à esquerda, para registar o impacto agregado da menor procura nos sectores afectados, e de novo à direita, à medida que a procura seja substituída por outra alternativa e se recupere grande parte da procura perdida pelos sectores mencionados.

Gráfico 3

Obviamente que o gráfico (3) não permite captar as inumeráveis decisões empresariais e de investimento que implica a oscilação horizontal representada pelas setas de sentido duplo. Mas permite visualizar o risco que supõe empreender políticas tendentes a tornar a estrutura produtiva mais rígida, mantendo em funcionamento empresas “zombies” que deviam ser liquidadas quanto antes, ao mesmo tempo que dificultam o efeito de retoma. A intervenção fiscal e regulatória arrisca-se a fixar indefinidamente a estrutura produtiva na posição BB, impedindo a sua retoma em direcção a AA.

Escusado será dizer que todos estes processos de rápido ajustamento e recuperação requerem um mercado de trabalho flexível em que se possa despedir e voltar a contratar com rapidez e mínimo custo. Há que recordar que, ao contrário do que aconteceu em 2008, é possível realocar de forma sustentável, rápida e permanente a mão-de-obra e os factores de produção, para o qual é imprescindível que os correspondentes mercados laborais e de factores de produção sejam o mais livres e ágeis possível.

Faltaria analisar a possibilidade de que se produzam e consolidem como definitivas determinadas mudanças de hábitos de consumo da população que requeiram modificações permanentes nas etapas da estrutura produtiva de investimento em bens de capital da sociedade. Há que referir que, em qualquer economia de mercado não-intervencionada, a estrutura produtiva está sempre a adaptar-se, de forma gradual e não traumática, às mudanças nos gostos e necessidades dos consumidores. E ainda que a pandemia possa acelerar a adopção de determinados hábitos de conduta por parte da maioria dos consumidores, na prática talvez se esteja a exagerar o seu impacto, sobretudo se se compararem estas mudanças com as que ocorreram desde o início do séc. XXI, tanto com a globalização mundial do comércio, como em relação à revolução tecnológica que a acompanhou e tornou possível. Com esta perspectiva, o impacto a longo prazo da actual pandemia deve ser minimizado num contexto de mudanças muito maiores e mais profundas, às quais continuamente se adaptam as economias de mercado.

1.3. Incerteza e procura por dinheiro

Em princípio, o impacto de uma pandemia na oferta de dinheiro pode oscilar entre dois extremos antagónicos. Por um lado, o caso de uma pandemia tão grave que produz na população a certeza dos dias contados. Nessas circunstâncias, é compreensível que a procura por dinheiro colapse e que este perca grande parte do seu poder aquisitivo, num contexto em que ninguém se quer desprender de bens nem prestar serviços cuja produção em grande parte se desmoronou e que a maioria deseja consumir o quanto antes.

Para os efeitos que nos importam, maior interesse têm as pandemias menos graves, como a actual, nas quais se produz uma escalada da incerteza a respeito da extensão, evolução e rapidez dos contágios e dos efeitos económicos e sociais. Os saldos de tesouraria são o meio por excelência para fazer frente à incerteza, pois permitem que os agentes económicos mantenham as opções em aberto, podendo adaptar-se, com rapidez e facilidade. Este efeito pode ser visualizado (Gráfico 4) com os esquemas triangulares de estruturas produtivas em termos de procura monetária, como um movimento uniforme para a esquerda da hipotenusa, caso a preferência temporal não se modifique (Gráfico “a”); como um movimento para a esquerda com maior investimento relativo (se os saldos se acumulam, diminuindo o consumo) (Gráfico “b”); ou como maior consumo relativo (se o novo dinheiro se acumula por venda de bens de capital e activos financeiros) (Gráfico “c”):

Gráfico 4

Ainda que qualquer destes resultados seja teoricamente possível, o mais provável, nas actuais circunstâncias, é uma combinação dos mesmos, especialmente de (a) e (b). Existem, no entanto, três considerações importantes sobre o aumento da incerteza e da procura por dinheiro em resultado da pandemia.

O aumento da incerteza (e incremento da procura monetária) é temporário, pois tenderá a reverter-se assim que surjam as expectativas de melhora.

Na medida em que os novos saldos monetários se acumulem por via da diminuição da procura de bens de consumo (gráficos “a” e “b”), esta menor procura monetária de bens de consumo tenderá a deixar por vender um volume significativo dos mesmos, para fazer frente tanto à desaceleração da sua produção, como à procura de todos aqueles que deixaram de trabalhar. O aumento da procura por dinheiro cumpre uma importante função de acomodamento perante o choque na oferta provocado pelo confinamento obrigatório na produção de bens de consumo, evitando-se assim que os preços relativos disparem, com prejuízo para amplas camadas da população.

A incerteza pode incrementar-se como resultado do intervencionismo monetário, fiscal e impositivo. Este pode gerar um clima adicional de desconfiança que obstaculize a rápida recuperação do mercado e corte o processo empresarial de regresso à normalidade.

Pandemias: burocracia e coerção governamental sistemática versus coordenação social espontânea

2.1. O Teorema da Impossibilidade do Socialismo e a sua aplicação à crise actual

A reacção dos diferentes governos e autoridades públicas perante o surgimento e a evolução da pandemia, as medidas de intervenção que tomaram e o seguimento dos efeitos das mesmas, constituem uma oportunidade única para comprovar e aplicar a um caso histórico o conteúdo essencial do “Teorema da Impossibilidade do Socialismo”, de Ludwig von Mises. A trágica irrupção do Covid-19 ofereceu-nos um exemplo real que ilustra e confirma aquilo que a teoria afirmava: que é teoricamente impossível que um planificador central consiga dar um conteúdo coordenador aos seus mandatos, independentemente do quão necessários estes pareçam, quão nobre seja o objectivo que persegue ou a boa-fé e o esforço que coloque na consecução dos mesmos.

Dado o impacto da actual pandemia, evidencia-se a plena aplicabilidade do teorema a respeito de todas as medidas de intervenção estatal. Os governos não podem dissociar-se da essência coerciva que é a sua característica mais íntima. Quando a exercem, surgem e reproduzem-se iniludivelmente os efeitos negativos previstos pela teoria.

A ciência económica demonstrou ser teoricamente impossível que o Estado possa funcionar de maneira dinamicamente eficiente, já que se encontra sempre numa situação de ignorância inerradicável que lhe impossibilita dar um conteúdo coordenador aos seus mandatos. Isto deve-se principalmente a quatro motivos:

Primeiro, devido ao imenso volume de informação e conhecimentos necessários, não só de tipo técnico ou científico, mas principalmente quanto à infinidade de circunstâncias pessoais e particulares de tempo e de lugar; segundo, devido ao carácter essencialmente subjectivo, tácito, prático e não-articulável de dito conhecimento; terceiro, porque como esse conhecimento não está dado nem é estático, vai depender de informação prática que ainda não foi criada; e quarto, porque, ao impor os seus mandatos pela força, o Estado obstaculiza a criação e o aparecimento do conhecimento de que precisa para dar um conteúdo coordenador aos seus mandatos. Deste modo, com carácter típico e generalizado, surgem os desajustes e descoordenações, a actuação sistematicamente irresponsável da autoridade (que não se apercebe do cega que está em relação à informação que não possui, e ao verdadeiro custo em que incorre com a suas decisões), a geração contínua de escassez, a falta de abastecimento e má qualidade dos recursos que trata de mobilizar e controlar, a manipulação informativa para se reforçar politicamente e a corrupção dos princípios essenciais do Estado de Direito. O aparecimento de todos estes fenómenos pôde ser constatado de forma sucessiva, concatenada e inevitável desde o surgimento da pandemia. Estes não resultam de más práticas dos gestores públicos, sendo antes inerentes ao sistema que se baseia no uso da coerção para planificar e tratar de solucionar os problemas sociais.

Como amostra, podemos referir as semanas perdidas quando, desde o dia 13 de Fevereiro de 2020, os médicos lutaram sem êxito por obter autorização das autoridades sanitárias para que se fizessem testes de coronavírus às amostras extraídas de um paciente que tinha falecido com sintomas que suspeitavam poder ser de Covid-19. Chocaram contra a dura realidade: os órgãos de planeamento central sanitário recusaram reiteradamente a autorização, por o paciente suspeito (que depois se demonstrou ter falecido por Covid-19) não reunir as condições que tinham sido fixadas pela autoridade. Num sistema descentralizado de liberdade empresarial que não restringisse a iniciativa e a criatividade dos agentes implicados, esse erro não se teria produzido. Ter-se-iam ganho algumas semanas chave de conhecimento e prevenção.

Outro exemplo: as ordens de apreensão do material sanitário e as requisições nas alfândegas, que provocaram a perda de milhões de máscaras, quando os fornecedores preferiram enviá-las a outros clientes por medo que o governo lhes apreendesse a mercadoria. Tudo isto agravado pelo engarrafamento na produção, derivado da inexistência de zaragatoas para extrair as amostras, que se podia ter solucionado se se tivesse deixado a liberdade aos produtores espanhóis. Ou a falta de abastecimento generalizado que reinou no mercado de máscaras, géis, desinfectantes e luvas de nitrilo, como resultado da regulação estatal e da fixação de preços máximos. Um rosário sem fim, que mais se parece à descrição das ineficiências sistemáticas de produção e distribuição da extinta União Soviética. Não se deve estranhar que, num momento de máxima urgência e gravidade, apostassem na coerção, na regulação, na confiscação, etc. – porque essa é, precisamente, a sua função no entramado estatal –, em vez de na liberdade empresarial de produção e distribuição, e em apoiar-se na iniciativa privada e no livre exercício da função empresarial.

2.2. Outros efeitos colaterais do estatismo previstos pela teoria

Para lá dos efeitos básicos de desajuste, descoordenação, irresponsabilidade e ausência de cálculo económico, o estatismo gera toda uma série de efeitos negativos adicionais. Assim, outra característica típica do estatismo e das autoridades que o encarnam é aproveitarem a crise não só para se manterem, mas para incrementarem o seu poder, usando a propaganda política para manipular e enganar sistematicamente os cidadãos. Por exemplo, as autoridades chinesas trataram de ocultar o problema, fustigando os médicos que o haviam denunciado, para depois empreenderem uma descarada campanha de redução do número de falecidos, ocultação e falta de transparência.

"Não se pode saber, à priori, como é que uma sociedade que não esteja manietada pela coerção sistemática do intervencionismo estatal enfrentaria uma pandemia como a actual. Mas é evidente que a reacção da sociedade estaria baseada na criatividade empresarial e em soluções dinamicamente eficientes."

No caso de Espanha, estão documentadas várias mentiras deliberada e sistematicamente lançadas para manipular e enganar os cidadãos, de forma a que estes não pudessem apreciar o verdadeiro custo da gestão governamental. Entre elas, destacamos as seguintes: primeiro, o número real de falecidos (só se reportaram 56,4% dos casos); segundo, o total de contágios reais (entre cinco e dez vezes mais); e terceiro, os dados falsos, facultados deliberadamente ao Financial Times, sobre o número de testes realizados.

Menção à parte merece a cumplicidade, para com o Estado, do coro de “especialistas” e intelectuais, dependentes do poder político, que se dedica a dar uma espécie de sustentáculo científico a todas as decisões emanadas do mesmo, utilizando-se desta forma a aureola da ciência para deixar desarmada e indefesa a sociedade civil. A “engenharia social” é uma das manifestações mais típicas e perversas do estatismo, pois pretende justificar que os especialistas, através do seu supostamente maior nível de formação e conhecimentos, estejam legitimados para dirigir as nossas vidas, e bloquear qualquer queixa ou oposição, escudando-se na suposta base científica das suas decisões. Os governos fazem-nos crer que, por virtude do aparentemente maior conhecimento e superioridade intelectual dos seus assessores científicos, estão legitimados para moldar a sociedade aos seus caprichos, através de mandatos coercivos.

2.3. Pandemias: sociedade livre e economia de mercado

Não se pode saber, à priori, como é que uma sociedade que não esteja manietada pela coerção sistemática do intervencionismo estatal enfrentaria uma pandemia como a actual. Mas é evidente que a reacção da sociedade estaria baseada na criatividade empresarial e em soluções dinamicamente eficientes. É precisamente este ímpeto da criatividade empresarial o que nos impede conhecer em detalhe as soluções que se encontrariam, pois a informação empresarial para tal ainda não foi criada, dado que a coerção monopolista estatal o impede. No entanto, o facto de a criatividade empresarial resolver problemas de forma ágil e eficiente dá-nos segurança neste método. Isto é exactamente o contrário do que sucede com o Estado, independentemente da boa-fé e do trabalho que empreguem nos seus esforços. Ainda que não possamos sequer imaginar a enorme variedade, riqueza e engenho que se mobilizariam para fazer frente aos problemas derivados de uma pandemia numa sociedade livre, dispomos de indícios que nos permitem ter uma ideia aproximada do cenário completamente distinto que surgiria num meio não coagido pelo Estado.

Assim, por exemplo, em comparação com confinamentos absolutos e omnirepressivos, numa sociedade livre seriam preponderantes medidas muito mais descentralizadas. Frente à censura, a informação circularia de forma livre, eficiente, e a enorme velocidade. Frente à lentidão e incompetência na hora de controlar os possíveis contagiados, os empresários e proprietários introduziriam, por seu próprio interesse, esses testes com grande agilidade. Salvo em momentos muito pontuais, numa sociedade e mercados livres não surgiriam problemas graves de falta de abastecimento nem engarrafamentos na produção. Não se desaconselharia o uso de máscaras, nem depois se imporia o seu uso de forma disparatada em todas as circunstâncias. O engenho empresarial focar-se-ia em testar, descobrir e inovar soluções, de maneira policêntrica e concorrencial, e não como agora, onde a planificação central e monopolista do Estado bloqueia e adormece parte do potencial criativo. Isto para não falar da enorme vantagem comparativa que tem a iniciativa individual e a empresa privada para investigar e descobrir novos remédios e vacinas, pois, mesmo nas circunstâncias actuais, os estados viram-se obrigados a recorrer a elas, perante o clamoroso fracasso dos seus retumbantes e bem financiados institutos públicos.

2.4. Servilismo e obediência dos cidadãos

Como conclusão desta parte, convinha perguntar o porquê de, apesar de todas as insuficiências, carências e contradições inerentes à gestão estatal postas em manifesto, a maioria dos cidadãos continuam a obedecer com tanta resignação e disciplina. La Boétie identificou quatro factores que explicam o servilismo do cidadão em relação aos governantes e à autoridade, que continuam a ter plena actualidade: o costume de obedecer a alguém; a perene autoapresentação do poder político com um rótulo de “sagrado”; a constante criação de numerosos incondicionais, que dependem do poder político para subsistir; e a compra do apoio popular mediante a contínua concessão de subsídios que convertem os cidadãos progressivamente em dependentes do poder político. Todavia, basta aprofundar um pouco a questão para que se ponha de manifesto a falta de legitimidade moral e ética da autoridade especial que se atribui ao Estado. Não podemos aqui desenvolver este grave problema, mas, no contexto da análise económica que estamos a fazer, podemos constatar que existe um “vírus” mais letal que o da pandemia e que não é outro senão o do estatismo, “que infecta a alma humana e nos contagiou a todos”.

A pandemia como pretexto para o aprofundamento do descontrolo fiscal e monetário por parte de governos e bancos centrais

3.1. A eficiência dinâmica como condição necessária e suficiente para que a economia recupere de uma pandemia

Qualquer economia afectada por uma pandemia requer uma série de condições que permitam adaptar-se às novas circunstâncias com o mínimo custo possível e, uma vez superada, iniciar uma recuperação sã e sustentável. Isto exige que se desenvolva o processo de formação de preços característico do sistema de livre-iniciativa, para o que será necessário liberalizar os mercados, eliminando as regulações que tornam a economia rígida. Adicionalmente, é preciso que não sejam delapidados pelo sector público os recursos que os agentes económicos necessitam, primeiro para fazer frente aos estragos da pandemia e sobreviver, e depois a fim de construir a recuperação. É imprescindível proceder a uma redução generalizada dos impostos, que deixe o máximo de recursos nos bolsos dos cidadãos e que se libertem de encargos os lucros empresariais e a acumulação de capital. É preciso recordar que os lucros são o sinal imprescindível que guia os empresários no seu insubstituível trabalho criativo e coordenador de detectar, empreender e culminar projectos de investimento rentáveis e sustentáveis. É necessário promover a acumulação de capital se se quer favorecer os trabalhadores, pois o salário que cobram vem determinado, em última instância, pela sua produtividade, quer dizer, pelo volume per capita de capital. No que diz respeito ao mercado laboral, deve evitar-se regulações que reduzam a oferta, mobilidade e plena disponibilidade para os trabalhadores se reincorporarem de forma rápida e ágil nos novos projectos de investimento. Assim, são particularmente prejudiciais a fixação de salários mínimos, o enrijecer e sindicalizar das relações laborais, a obstaculização e a proibição legal de efectuar despedimentos, a criação de subsídios e ajudas que, de forma combinada, podem desincentivar a procura e o desejo de encontrar trabalho. Todas estas medidas devem ser combinadas com o devolver da responsabilidade das pensões, saúde e educação à sociedade civil, permitindo, àqueles que o desejem, subcontratar no sector privado as suas prestações, com a correspondente dedução fiscal.

3.2. Esgotamento da política ultra-permissiva dos anos anteriores à pandemia

Esta pandemia surge num contexto em que os bancos centrais de todo o mundo já tinham iniciado uma política monetária ultra-permissiva, de taxas de juro nulas ou negativas e de injecções monetárias com um grau de intensidade, extensão e coordenação internacional nunca antes visto na história.

"Quando chegue o “maná” dos 750 000 milhões organizado pelas autoridades da UE, é mais que provável que as economias já estejam a recuperar de forma autónoma, pelo que esses fundos vão absorver e desviar recursos escassos imprescindíveis para que o sector privado possa iniciar novos projectos de investimento que, por si só e sem ajudas públicas, podem gerar um elevado volume de emprego sustentável a curto, médio e longo prazo."

As políticas monetárias ultra-permissivas empreendidas pelos bancos centrais previamente ao aparecimento da pandemia tiveram um efeito contraproducente. A injecção monetária maciça foi esterilizada, num ambiente de grande rigidez institucional, por um aumento concomitante e generalizado da procura por dinheiro por parte dos agentes económicos, ao reduzir-se a zero o custo de oportunidade de manter saldos de tesouraria, numa moldura de constante regulação e intervencionismo económico, que frustra as expectativas de lucro e impede que se recupere totalmente a confiança. Adicionalmente, no momento em que os bancos centrais empreenderam as suas políticas de “quantitative easing” e redução a zero das taxas de juro, eliminaram ipso facto os incentivos que os governos poderiam ter para culminar as reformas económicas, regulatórias e institucionais que têm pendentes. A conclusão não pode ser mais clara: numa envolvente de grande rigidez institucional e intervencionismo económico, as políticas monetárias ultra-permissivas só servem para manter indefinidamente a atonia das economias afectadas e para incrementar o endividamento dos respectivos sectores públicos até limites dificilmente sustentáveis.

3.3. Reacção dos bancos centrais perante a surpresa do surgimento da pandemia

Foi neste cenário económico tão preocupante que surgiu a Covid-19. A reacção das autoridades monetárias consistiu em mais do mesmo: redobrar a injecção monetária, incrementando os programas de compra de activos financeiros (cujo preço não parou de subir). Esta só produz efeitos aparentes de expansão. Apenas alguns, poucos, recebem, num primeiro momento, o novo dinheiro, com todas as consequências de incremento da desigualdade na distribuição do rendimento. O novo dinheiro, na medida em que não seja esterilizado pelos bancos privados e pelos sectores industriais desmoralizados, terminará por chegar ao bolso dos consumidores, gerando pressões inflacionistas. Este efeito vai-se tornar cada vez mais evidente à medida que se vá superando a incerteza das famílias e estas considerem que não é necessário manter saldos de tesouraria tão elevados. De qualquer forma, tudo aponta na mesma direcção: uma crescente oferta monetária sobre uma produção contraída como consequência da Pandemia leva inexoravelmente a uma crescente pressão para a subida dos preços.

3.4. O beco sem saída em que se encontram os bancos centrais

Os bancos centrais meteram-se num verdadeiro beco sem saída. Se promovem ainda mais a política de expansão monetária e monetização do deficit público, correm o risco de gerar uma grave crise de dívida pública e inflação. Mas se detêm a sua política monetária ultra-permissiva, então será de imediato evidente a sobrevalorização dos mercados e gerar-se-á uma importante crise financeira e recessão económica, tão dolorosa quanto saudável a médio e longo prazo.

Perante a actual e difícil tessitura, é ilustrativo observar as recomendações e as reacções que vertem especialistas, comentadores, responsáveis económicos e autoridades monetárias: publicam-se continuamente artigos e comentários tendentes sempre a tranquilizar os mercados e que enviam a mensagem de que as taxas de juro a zero (ou negativas) vão permanecer assim por muitos anos. Os bancos centrais, pelo seu lado, anunciam a revisão dos seus objectivos de inflação, com o propósito de os “flexibilizar” (obviamente em alta), para justificar não tomar medidas de controlo monetário, mesmo que a inflação dispare. Tudo exaltado pelos corifeus da chamada “Modern Monetary Theory”, que nem é moderna, nem é teoria monetária. Chegamos assim à última das “ocorrências”: o perdão da dívida pública adquirida pelos bancos centrais.

É obvio que a todos aqueles a favor deste perdão lhes cai a máscara, já que se os bancos centrais sempre vão recomprar, a uma taxa de juro zero, a dívida que se emita, não se percebe para que seria necessário um perdão. O mero facto de que o peçam põe de manifesto o seu nervosismo perante os crescentes sinais de reviravolta inflacionária e o concomitante temor de que as taxas de juro voltem a subir. Nestas circunstâncias, seria fulcral para eles que a pressão sobre os governos esbanjadores se suavizasse com um perdão de cerca de um terço do total da dívida emitida. Mas, ao levar-se a cabo um perdão, revelar-se-ia que os bancos centrais se limitaram a criar o dinheiro que injectaram no sistema através dos mercados financeiros, enriquecendo exorbitantemente a uns poucos, sem conseguir, ao fim ao cabo, efeitos reais apreciáveis. Os bancos centrais perderiam, não só toda a sua credibilidade, como a possibilidade de repetir, no futuro, as suas políticas de compras em mercado aberto. Significaria a morte definitiva da capacidade dos bancos centrais de influir nas economias de forma apreciável com a sua política monetária.

3.5. Os últimos foguetes da despesa pública

Assim chegamos à última receita para sair da crise gerada pela pandemia: nada de sanear as contas públicas nem de emagrecer a despesa pública improdutiva das mesmas; nada de reduzir a pressão fiscal, nem aligeirar a carga burocrática e regulatória aos empresários para que estes recuperem a confiança e se lancem a investir. Nada disso e tudo o contrário: recorrer ao máximo à política fiscal, incrementando a despesa pública de forma desorbitada. Só que este novo estertor da política fiscal é pró-cíclico e perturbadoramente contraproducente. Quando chegue o “maná” dos 750 000 milhões organizado pelas autoridades da UE, é mais que provável que as economias já estejam a recuperar de forma autónoma, pelo que esses fundos vão absorver e desviar recursos escassos imprescindíveis para que o sector privado possa iniciar novos projectos de investimento que, por si só e sem ajudas públicas, podem gerar um elevado volume de emprego sustentável a curto, médio e longo prazo, que contrasta com o emprego sempre precário e dependente de decisões políticas que gera a despesa pública consuntiva. E isto sem que seja preciso mencionar a consubstancial ineficiência do sector público no momento de canalizar os recursos e a inevitável politização na distribuição dos mesmos, sempre muito vulnerável à manutenção do clientelismo político.

Conclusão

Não existem atalhos milagrosos para sair de uma crise tão grave como a gerada pela actual pandemia. Ainda que os governos e as autoridades monetárias se esforcem por apresentar-se perante os cidadãos como os seus imprescindíveis “salvadores”, graças ao seu esforço e actividade frenética e fazendo coisas aparentemente benéficas; ainda que uns e outros sistematicamente ocultem a sua incapacidade intrínseca, como põe de manifesto a Escola Austríaca, para acertar e deter a informação de que precisam para dar um conteúdo coordenador aos seus mandatos; ainda que as suas acções sejam sistematicamente irresponsáveis e contraproducentes, por delapidarem os recursos escassos e impossibilitarem a sua correcta alocação e o cálculo económico racional nos processos de investimento. Apesar de tudo isso, quer dizer, apesar dos governos e dos bancos centrais, daqui a poucos anos a pandemia de Covid-19 será simplesmente uma triste recordação histórica, esquecida pelas gerações vindouras, da mesma forma que já ninguém recordava os muito maiores estragos produzidos pela “Gripe Espanhola”. Agora, como então, vamos seguir em frente como resultado do nosso esforço individual e colectivo, tratando de avançar com criatividade os nossos projectos vitais por entre os resquícios de liberdade de iniciativa e de mercado não intervencionado que, apesar de tudo, continuem abertos.

Jesús Huerta de Soto é um economista espanhol da Escola Austríaca. É professor no Departamento de Economia Aplicada na Universidade Rei Juan Carlos, em Madrid, e pertence ao Instituto Ludwig von Mises.
Tradução: Ricardo Dias de Sousa
Edição e Coordenação: Pedro Almeida Jorge
Este é um resumo preparado especialmente para publicação no Observador pela Oficina da Liberdade. Os leitores podem descarregar aqui a versão integral, muito mais detalhada e com referencias às várias obras citadas.

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